Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. João Guimarães Rosa
Era um homem de uma demora nos modos, não mais que distração. Acordava tarde, eis que nas noites se ocupava de sua existência surpreendida numa cama. Deitava-se qual uma sobra da vida, um extra do dia. E vivia mais à noite; era vasta a vida de uma só vez, a expansão das pálpebras teimosas, resistentes e vigilantes.
Mas de manhã não pesava a traição de acordar. Sem reclamação – os olhos abertos agora vinham da conquista do sono. Esticava-se aproveitando todo o corpo, bocejando continuado para o enfado não destruir a manhã.
O café simples o libertava da noite ainda pousada no silêncio à mesa. A filha e o genro a essa altura já haviam aprovado em cumprimento o dia, ao passo que a neta, apaziguando o jejum, depositava no avô o contentamento de não testemunhar toda a manhã.
─ Laurinha, acordou!? ─ enterneceu-se, enquanto enchia mais uma xícara de café e confirmava na fala o amanhecer.
─ Já, vô, mas estou nas férias ─ defendeu-se a neta.
Antônio Soares Monteiro pouco escutava o prenome. Mas o Antônio restaurava o escasso registro de sua juventude. Já o Monteiro abastecia sobremaneira as veias com o sangue dos umbelinos, berço de sua geração, embora a causa também fosse de direito do Soares, haja vista a origem comum dos pais. Mamãe Sinhá, que Deus tenha, interrompia a respiração, num meditar a fazer do sobrenome Soares a outra soma que inaugura a orfandade.
─ No Tanque, interiorzinho onde nasci, era fartura de leite; papai Manoel foi vaqueiro do titio Antônio Umbelino ─ apertou os lábios trêmulos de orgulho, sem perceber que a neta já havia se retirado.
Desde quando, por força do divórcio, acertou ir morar com a filha Vitória, a atmosfera da nova morada se evidenciou na satisfação de pai acolhido. Conferia sua armadura: o chapéu posto à prova sobre os cabelos grisalhos, cuja harmonia se manifestava na estatura mediana de um homem de bermuda e camisa de botão, adereços que o conduziam à humildade da face. Agora era só considerar a porta e sair.
Com os pés sobre as ruas, Olho D’água ganhava delicadeza de cidade. Não sua cidade, pois que Água Branca, apesar do pó do matrimônio, ficava na saudade umbelina ─ não sua cidade, mas aquela cidadezinha dando lugar ao Antônio remanescente de si mesmo, das noites mal dormidas e do café simples, seu convite de vida.
Ao avançar a Avenida Nossa Senhora das Dores, a vida se espaçava. Ali fora, havia o patriarca sozinho no mundo, na missão de experimentar a inércia do caminho, o perigo de não existir ou de sobrar sono se perdia no corpo. Os músculos, ainda se espreguiçando, encarregavam-se dos primeiros passos em direção favorável ao que era bom: chegar. O objetivo do passeio público surgia na chegada, numa obediência que em si é comunicação, na tranquilidade em não perceber estar tranqüilo.
Quando os outros o cumprimentavam, não dava conta de si. Na sua surpresa, num esforço para sorver atentamente os cumprimentos, era transferido para as cotidianas descobertas; a conquista da conversação lhe dava o ar secreto da genialidade. Em verdade, repetia diálogos, ligava-os com o não - dito e enfim estabelecia, com um e outro entusiasta, o que preside os corações à beira de uma estrada.
─ Esta noite tive um sonho. Não lembro direito, mas sei que sonhei. Eu acordei apressado – inquietou-se, com um meio sorriso lhe corando a face.
─ O senhor deve ter ceado tarde ou quem sabe nem sonhou, replicou um passante, sem interromper a viagem.
─ Até...
Para ele havia no andante uma segurança de vagueza, uma potência de vida vulnerável ao acaso. Os indivíduos nas ruas o deixavam intenso e efêmero. A timidez desse homem se rendia ao gosto pela vida. Entusiasmava-se com o jogo de viver, embora resultasse do ingênuo silêncio sua inteira força e natureza. Sob o sol de quase dez horas, o andarilho de si via bem os jardins e as casas. Olhando lentamente, as coisas lhes eram largas, facilitadas, nascidas para rebentar no recurso de ser. Fixava as calçadas, os cercados, as portas de onde moradores apareciam em glória e submissão ao dia.
─ Vitória é esperta nos negócios do comércio. Ontem esteve vendo somas dos velhacos. Lá vai o Camilo! ─ exclamava ele a um vizinho, em tom de alegria boba.
─ Seu Monteiro, aquele carro não é o do seu genro, examinou o vizinho, realizado e tolerante.
─ Meu Padre Cícero! Toda D20 é igual...
Dentro em pouco, voltou-se às coisas imediatas, cruzou os braços, aprumou o corpo corcunda para estabelecer-se ante o mercado público. Com o queixo rígido, ajeitou a gola, sustentou o olhar que parecia vir de fonte leal e desconhecida. Dali a pouco ressurgia um sorriso raro e flagrante aos conhecidos do açougue, dos bares e das quinquilharias. O sorriso crescia e, mesmo com a sucessão dos acontecimentos, vencia a alteração do rosto. Os transeuntes olharam-no habituado, pois a satisfação era para dentro.
─ Trouxe carne para mim, João? Ainda bem que hoje é sexta-feira, gracejou, mas o repentino silêncio do transeunte lhe forçou a discrição.
─ Ora! Hoje o almoço é na 414, retribuiu a simpatia.
─ Eita terra de unha de fome, retornou Monteiro, resgatando o gesto espirituoso.
─ E veio pousar logo aqui?
─ Ora não!
Foi quando a memória ao X-Crepe se uniu à coincidência de reencontrar os companheiros de praça. Eles lhe faziam vez em instantes de goles de cerveja. O instante era breve, bom e vago ─ o entusiasmo amistoso advertia o estado de embriaguez. Mas o reencontro agora era de um desafio maior que se tem, quando, sem armas, a consciência se apega ao valor didático das coisas e ao espírito da reparação.
─ Duvido se o senhor desconfia de como se prepara um crepe ─ desafiou um deles, enquanto Monteiro mordia a panqueca.
─ Mas no bar da Maria não ocorre essa cartilha ─ respondeu Monteiro carismático e sorrateiro na investida.
─ Pois lhe digo que o crepe se descobre de repente ─ retumbou uma terceira voz, com um quê de fanfarrice concludente.
─ Minha filha mais velha sabe tudo de massas.
Nesse último momento, Antônio discursou mais pausadamente. Parecia querer adivinhar o amor da filha e, nessa luta fácil, ganhar a gratidão de pai que precisou sair de casa. A filha Clara, em recordação tornando excessivo nele o silêncio escondido,salvou-o não apenas do debate, mas sobretudo da solidão em ter nela necessidade de vida. Olhava a primogênita como se para ser amoroso fosse preciso sofrer. O olhar vagaroso tinha o cuidado de não ser visto, de cruzar o olhar dela num silêncio de aproximação. Dali a pouco, a intensidade paterna lançou os companheiros do X-Crepe para longe da disputa e retrocedeu às impressões da visita à filha, dias antes:
─ Pai, não ponha Sara em costume. Quando ouve sua voz, ela já fala em biscoitos ─ observara Clara, com voz suave e materna.
─ É que minha netinha é tão magra ─ rebatera o pai.
─ Mas não por não comer, dissera Clara, com gesto protetor e agora mais do que nunca dentro do jogo de ternura.
─ Está magra, convencera-se, numa sonoridade que conciliara nele o avô e o pai.
A reminiscência lhe acertou o peito, atingiu-o com violência e sensibilidade. A profundidade na alma o fazia sentir-se irregular. Por certo transbordava, e o excedente umedecia o amor preso à garganta. Sob a copa do chapéu, tirava do bolso o rapé para espirrar seu sentimento fora de hora, sua extensão desconhecida. Tremia e novamente espirrava; parecia conferir no espirro seu cuidado irrefletido. Doía-lhe aquele amor desabrochando ausente, quase precisando de escuridão para ser bem-vindo à luz do dia. Era preciso dizer: “Até logo, minha filha!” para reconhecer corajosamente o terreno do amor. Com pitadas de rapé na mão, o amor se tornava mais antigo do que ele próprio. Não acompanhava o curso e a sabedoria daquele sentimento tão bem guardado em solidão necessária. Entre um e outro espirro, restava a ele amar. O rapé parecia-lhe entender o coração.
Suspirou fundo. Logo mais, retornou à Avenida Norberto Lima, a mesma que o trouxe ao agasalho da nova morada e se encurtou, até quando, impaciente, o coração pousou o tempo a lhe desaguar os setenta e um anos todos no rosto.
─ Setenta e um anos resistem à fé no Senhor ─ defendia, com o sobrolho erguido e baralhado. ─ Vou com Cristo, na vinda de Cristo Jesus ─ respondera ofegante, sem cessar, profético, ao filho de Teresina, nas horas das palestras no fio da convicção e da condição humana. ─ Vou na vinda de Cristo ─ insistia.
A noção fugidia de percurso para a morte dava a sensação de adiamento.
Em visita ao pai, o filho vira no velho o homem enfraquecido às próprias certezas; o velho o encarara com alegria aflita, com dois braços magros e nervosos ao que lhe havia de melhor para pai e filho firmarem contato.
Urgente em atravessar a Norberto Lima, com o filho da capital ainda em caprichosa gebada paterna, sentiu o peso de ser responsável pelo passeio, o peso do pátrio poder ao nomear, ao vento, o cotidiano consanguíneo. “Este é meu filho” ─ prefaciara os encontros eventuais, num diálogo de si para si e conferira a verdade na expressão, sem maneira de dizê-la. E também ao filho mais novo, num tom de aventura na vida, em risco, à construção da própria história, dissera: “Este é meu filho”. E os filhos também disseram: “Este é meu pai”, e a confissão íntima acordava-os aos poucos, quase parando; é assim o silêncio esquecido para concebê-lo.
─ Meus quatro filhos,... ─ dizia, com a alma nos olhos e no relógio.
O sol já alto converteu a lágrima na lembrança do retorno a casa e do almoço. O sol, sua bússola ligeiramente simulada pelos melodiosos pés. Os pés, tão contraídos às divisas da pequena cidade, não diziam ao certo por onde trilhar, mas o sol bem alto lhe decifrava o vazio das ruas.
No almoço, a comida fria de esperar, a casa em sesta, a refeição breve, despercebida, o ruído saciando a própria solidão. Enquanto mastigava ou espantava moscas, encontrava-se entre a sonolência e a solidão cheia de paz. Os quadros na parede, os móveis disponíveis, tudo harmonizando o prato à perspectiva familiar. Se agora tudo se calava, a família estaria sob controle; cada um cumprindo sua sorte, poupando-o de supor-se abandonado.
Àquela hora se amiudava no sono, anúncio das suas tardes. Dali em diante, dormia com o esforço único de conferir o que estivesse à disposição do sono. Dormia já quase acordando e a esperança sonífera não o afligia, porque não se amolava ante uma cessação do aconchego sublime. Mas as sestas aconteciam quase sempre calmas; vez ou outra aos poucos um chamado, uma correspondência de que ficava incumbido da mediação. Se houvesse interferência, ocorria-lhe apenas a impressão do mero cumprimento das horas.
Ao acordar, sobrava o resto do dia todo acolhido no sítio da filha anfitriã. Ali, Antônio Monteiro vivia em tempo real. Por entre a pequena vegetação, havia a memória dos banhos de riacho e das veredas de unha-de-gato, onde sua mãe Sinhá o persuadira dentro do mugido de bois, guiados pelo chefe da casa. Havia a memória dos cercados de estacas, erguidos por herança sanguínea. Deus abençoe meus plantios..., pensava sorrindo, de chapéu nas mãos, sem hesitar.
Mas aquela sexta-feira de junho não excederia seu costume de vida. Custa relatar os últimos instantes de Monteiro, o dia no qual a vinda do Cristo lhe custou o mistério dos tempos. Logo mais prosseguirá uma narrativa impossibilitada de beleza menos tímida que se estar vivo ainda, um ensinamento concebido numa negação, quando se pede ao mundo uma urgência de lucidez e o mundo, de sua misericórdia, basta em silêncio.
Antônio Monteiro esteve pronto demais à missão diária de ir ter com o sítio num dia de vida. A narrativa seguinte padece de dados acabados; mas há mesmo o que salvar, senão a careta ao provar-se o cálice, porque não se é Deus?
Não havendo mais o que dizer; a tarde aconteceu. Decidiu pedalar a bicicleta, enquanto houve tarde nos músculos. As residências se enovelaram com a gente e com a movimentação no despontar da tarde. Casas velhas, vidas contínuas, a vez do outro... A vida sem começar nem terminar. Tudo sendo. A cidade por entre a pequena praça do mercado, os capins margeando lotes de terras, a igrejinha católica, as crianças correndo descalças e sujas, os bêbados monótonos, cercas escondidas por trepadeiras, latadas apoiando maracujazeiros... A natureza encaminhando-o a seu pequeno paraíso ─ o sítio da filha Vitória. Lá tudo fora plantado por esse homem e, com a mesma afobação, o verde brotava, cheirava, renascia; a natureza, agora dada por ele, o fazia ganhar o cuidado de pertencer a um mundo que não era seu. Ele ia, avançava e, antes de cruzar a alameda de acesso ao sítio, os canteiros dos quintais talvez escondessem as melhores verduras e as galinhas quem sabe ciscassem como nunca. A vida sem falsificação, a natureza resistindo enquanto Monteiro afastava-se um pouco. Perdia as coisas por um momento para ganhar delas todo o valor.
Pedalava, pedalava sem antecipar um lume de paradeiro, porque era sempre muito tranquilo estar certo de algum lugar, e a serena certeza excluía nele um planejamento, uma exatidão. Saber que ia bastava; os porquês vinham das realizações ao chegar.
Os fins de tarde no sítio eram tão tranquilos que, se na ida barrasse em alguma distração, perdia a hora, a noite descia. Mas depois se lembrava sobressaltado do sítio e seguia feito quem ajusta a hora.
Pisava o chão e só de volta percebia, com o mesmo desinteresse, a pegada misturada a de tantos. Que jogo a vida capturada por deixar de prendê-la. A vida, apenas sê-la. Os outros pés viveram até quando na pegada? Se há sol e chuva para justos e injustos, importa saber? A vida preenchia o que não se sabe, única forma de entendimento e de aceitação.
Monteiro se transformou no homem da tarde – sua coragem vinha de não avaliar incertezas, mesmo podendo sofrê-las. Eis sua ignorância auxiliadora. Explorara bem o que não conhecia, abraçando-o com a doce falta de desafio. Mas não se constatava nele covardia, porque covardia precede uma avaliação. O homem da tarde era macio, de olhos alegres, acovardados pela própria inocência, doces e urgentes. Suportava o desconhecido, deixando-o existir. Nascido para aceitar, tinha nos negros olhos um cuidado involuntário de quem não se compromete. Perdoava antecipadamente as coisas da vida, porque eram antes dele, da “vontade de Deus”.
A tarde, aos poucos devorada por ela mesma, como um silêncio intensificando-se na comunicação com outros silêncios. Silêncio e calor testemunhavam tetos enegrecidos onde pombos e pardais formavam pequenas surpresas. As árvores vigiavam sem prestar socorro. A árvore é um socorro em si. Eu morrerei e ela permanecerá na frieza da sua inocência, filosofava ausente.
Um cachorro era um cachorro; a rua lhe concebia sê-lo. A estrada ia e vinha incomunicável. Exclusivamente travessia. Não havia despedida de uma música passando: Fizeram-na para ser tocada. Os corpos, sim, iludem-se; de resto, não há distância. Sem dor, vivia em espera involuntária. Não sabia mesmo da espera. Se soubesse, ela acabaria. A maior resposta estava em não precisar mais de resposta. Era de ver-se a vida e a continuidade se somando para fazer haver o sítio.
Correu no peito uma inspiração, um desejo inquietando o silêncio. Não. Seria o vapor do asfalto conservando-o. Quando muito, um vento levado a ele, eclipsando o fenômeno de viver no que há de modesto e penetrante. Quem sabe fosse uma paixão.
Ver sucedia simultâneo aos olhos – não havia percepção sem se converter em travessia no sorriso. Ver a tarde residia em todo o sentido, era sua circunstância particular.
Um passeio sempre repetindo o anterior, sempre tão anterior quanto o próximo, fizera dele o homem concentrado na sucessão dos passos, acostumado e surpreendido com o estado de rua. Um menino, ao conferir o pai do lado, o reparou. O gesto deu a Antônio um destino vago ao não os mirar mais. Mas o apreço estava em observar a boca aberta do pequeno. Se pudesse vê-lo novamente, teria da gratidão o exercício primitivo de não enxergar perigo na vida.
Estou esperando a vinda de Cristo, repetira aos que consomem com sucesso a fatalidade de viver. Porém soaram dezesseis horas. Quem saberia com que dor não teve tempo de conhecer Caim?A bondade em estar sossegado tornou perigosa a inocência de viver. Não houve uma surpresa tenebrosa dando a ele a chance do medo ou da coragem, nem foi possível viver sua morte. Do alpendre, o corpo lançado fora da casa, as horas surdas, por trás da tarde. Soaram dezesseis horas. Não. Deve-se subir às dezesseis e trinta. Não basta. Foi o sorriso do menino, o sítio a galope, a estrada de chão, os amores ganhos em acostumar-se com eles... Talvez se acerte dizer isso ou aquilo, o além da tarde... Aposta-se numa resposta somente a si mesmo; aos mais delicados, apenas o porém.
Numa tarde de junho, conta um antigo morador que A. S. M...
(...)
E porque se integrou ao verde infinito, não há que escrever: o sítio radiante e a espera pela vinda de Cristo.
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*Conto premiado na antologia Literatura sem Fronteiras – do Brasil para Buenos Aires, da Editora Eterna Cadência em Palermo, Argentina.
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