(Michel de Montaigne)
Montaigne perde as estribeiras e desacata o seu costumeiro racionalismo quando se detém sobre a produção literária do seu tempo, em grande parte semelhante ao que se faz em nossa época dominada pelo império das aparências. Por isso, reivindicou uma polícia para as letras que fosse capaz de coibir os excessos de autores sem distinção intelectual, meros compiladores da obra alheia e de anedotários, como vemos entre nós uma caterva de escrevinhadores vaidosos e medíocres assaltando o livro e o jornal e neles imprimindo com impudor, como triunfadores, suas abusadas ejaculações precoces.
Tais fazedores de livros, existentes em grande número em todas as épocas, mas especialmente na nossa, em consequência da democratização dos meios de reprodução gráfica, seriam o equivalente, segundo o severo juízo montaigniano, daqueles indivíduos que se dedicam à vadiagem e, por isso mesmo, deveriam estar sujeitos às leis que punem os desocupados e vagabundos.
Realmente o excesso de autores indica uma distorção. No mínimo, considera-se o descaso para com a qualidade que, como disse Lênin, há de estar presente em tudo, especialmente na elaboração de um artefato estético que implica em uma exaustiva busca do conhecimento e uma aplicação paciente e contínua ao estudo dos meios e processos de expressão que parecem faltar, evidentemente nesses pseudo-autores, muitos dos quais regiamente mantidos em sinecuras pagas pelo contribuinte .
Em sua República das Letras, escrevinhadores banais e incultos seriam peremptoriamente banidos, pois a biblioteca seria o lugar de autores distintos que têm algo a dizer-nos, sem a estridência espaventosa do ridículo que amamenta as vaidades comezinhas e anedóticas que proliferam diante do absenteísmo de uma crítica praticada por uma gente calejada pelo hábito e desprovida daquela virtude que faz parte da essência de um verdadeiro crítico – o prazer de associar-se a um autor de talento, cuja obra passa a ser, também, de sua responsabilidade.
Criador do ensaio, gênero através do qual a cultura dialoga com o leitor, Montaigne amplia o pensamento dos séculos que o precederam, ao escrever na solidão de sua torre-biblioteca, realizando em plena Renascença francesa um ideal herdado de Roma – o do ócio com dignidade, somente possível para alguém, como Montaigne, que era herdeiro de um sólida cultura humanística, possuía abundantes recursos intelectuais e, como um grão-senhor, vivia confortavelmente de rendas, sem quaisquer outras preocupações pela subsistência.
Aqui, o mais tolerante dos homens mostra-se especialmente irritável, ao deparar-se com a profusão de obras caracteristicamente medíocres que assolam então os prelos e sobrepujam a dignidade da escritura produzida em paciente conluio das palavras com as ideias longamente pensadas e repensadas. Crítico em ação, Montaigne não tem, porém, o dogmatismo que provém, geralmente, do homem de um livro só. Amplo é o seu espectro intelectual, que só não condescende com a má qualidade que hoje parece estar em toda parte sob as mais diversas embalagens e rótulos, alardeados pela propaganda.