João nasceu em plena noite do domingo de carnaval. Chegou saudado pelos tambores dos maracatus do Recife, dos afoxés da Bahia e das escolas do Rio. Nasceu imerso na folia sazonal que assola este País, quando uma amnésia coletiva empurra nossas eternas mazelas para o mês de março. João nasceu num momento em que uma euforia mal-fundada comemora a maioridade econômica do País, elevado à sexta economia do mundo. E aqui começam os problemas de João.
Ele não sabe ainda, mas escolheu um momento muito complicado para nascer. Já faz tempo que um certo mal-estar avisa a seus pais, tios e avós que alguma coisa muito séria vem acontecendo. Ninguém está dormindo bem. Uma insegurança generalizada em relação ao futuro nos leva a mudanças bruscas de humor. Não se pode confiar na velha regularidade das estações. A chuva inunda cidades, enquanto o sol racha as terras com tradição de fertilidade. A morte dos nossos semelhantes tornou-se uma coisa banal. Cada vez menos somos comovidos pelo sofrimento dos nossos vizinhos, morem eles em outro continente, num país próximo ou na casa ao lado.
Não quero assustar João enquanto ele mama no seio da mãe ou é embalado pelo pai. Não vou falar dessas coisas enquanto agita os braços ou ensaia um sorriso para a irmã. Tenho vergonha de mostrar a ele um planeta ferido de morte pela nossa ganância. Quando João souber que temos tecnologia suficiente para acabar com a fome do mundo e preferimos usá-la para destruir a vida dos nossos semelhantes, certamente vai ficar com raiva de nós. Por isso, peço desculpas ao meu neto João. E ao mesmo tempo nutro a esperança de que os Joões e Marias recém nascidos saberão construir um mundo melhor com os entulhos do mundo que entregamos a eles. Um mundo que mereça ser saudado pelos tambores de todas as tribos, de todas as nações.
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