Convidado a almoçar, por Mario Sawatani, acordei cedinho, tomei demorado banho, comi duas frutas e o esperei na sala, diante do computador. Reli uns poemas de Fernando Pessoa, outros de Francisco Carvalho e um pouquinho de Dércio Braúna. Buzinou desesperadamente e ainda gritou meu nome cinco ou seis vezes, para espanto dos gatos sonolentos e das vizinhas que varriam as calçadas.
Passei do chão ao carro, com algum temor: aquilo me parecia vindo dos primitivos tempos da invenção das máquinas. O bicho (não semelha, nem de perto, uma engenhoca) saiu aos solavancos (feito touro brabo), a roncar (feito porco), a soltar fumaça por tudo quanto era buraco (feito um dragão). Trêmulo, benzi-me (logo eu, um quase ateu). Durante o percurso (do Monte Castelo até a Gentilândia), não tive coragem (talvez ânimo) de pronunciar o menor monossílabo. Mario, pelo contrário, falava (matraca) à maneira de duas carolas a caminho da igreja: a literatura cearense não existe, é uma piada; aqui não temos escritores de verdade; ninguém se salva, etc. Irritei-me (o medo de morrer explodido havia desaparecido, como por encanto): “Nem José de Alencar?” Meu amigo nem olhou para meu terror: “Nem ele nem você. Aliás, o velho está morto e esquecido há muito tempo. Dele só resta o nome num teatro”. Indignei-me. Não dissesse tamanho disparate. “Alencar foi e é um dos nomes fundamentais da literatura brasileira”.
Chegados à rua onde se localiza o restaurante, senti-me aliviado e desci do veículo, quase às pressas. Queria ver a marca, o modelo e o ano daquela geringonça. E ele (Mario), sempre obsequioso e muito educado, informou: “Fiat 147, ano 1976”. Pensei, com alguma tristeza: “Mais velho do que o dono”. Mesmo assim, o jovem não parecia embaraçado, infeliz ou doido para mudar de assunto. “Adoro esse bichinho”. Caminhamos na direção da casa de pasto. Nenhuma placa a indicar nada. Só uma porta escancarada e alguns rapazes cobertos de cabelos assanhados, brincos de prata, tatuagens, a pitar cigarrinhos de palha.
Apresentou-me a uma senhorita, imagem e semelhança daquelas moças dos anos 1960, de vestidos coloridos e compridos, faixa amarrada à testa (make love, not war), chinelinhas de rabicho. Pôs-se a explicar o cardápio do dia: folha de alface com berinjela, seguido de suco de manga (sem açúcar) ou pimentões verdes com casca de gengibre. Mario parecia muito feliz por me proporcionar momentos de tanta ventura gastronômica. Talvez me imaginasse a levitar, feito pena de ganso, voar, voar, e alcançar a bem-aventurança celestial.
Voltamos ao assunto literatura, José de Alencar, esquecimento e morte. Senti vontade de morrer (não fisicamente, mas apenas espiritualmente). Degustei as folhas, não sem deixar no prato algumas lagartas e lesmas. “Muito gostoso, não é, mestre Nilto?” Não consegui dar (encontrar) resposta. Fingi estar engasgado. “A partir de agora, você será outro homem. Mais leve, mais puro, mais natural”. Fiz das tripas coração, para não vomitar, e o convidei a voltarmos. “Para onde?” “Para o Fiat”. “Que Fiat?” “O fiat lux genesíaco, meu caro Mario”. Caminhamos, devagar (eu entontecido, prestes a desmaiar), no rumo do automóvel. Meu amigo nem usou chave para abrir a porta. “Você se esqueceu de trancar?” Um sujeitinho sujo, cabeludo e cheirando a bode velho se apressou a fazer a cobrança pelo serviço de vigilância: “Doutor, fiquei o tempo todo de olho no seu BMW”. Meu amigo, advogado e professor de direito, mostrou, mais uma vez, discernimento de sábio: não se irritou e ainda deu um real ao vigilante. Não se conteve, porém, e pronunciou a frase dita inconscientemente, talvez: “Não precisava; ninguém nunca se interessou por ele”.
Refestelados no assento dianteiro, meu dadivoso admirador (confessou ter lido e relido meus vinte livros publicados; e mais leria, fosse eu menos avesso a editoras e livrarias) me fez a pergunta certamente engendrada há muito tempo (o almoço seria apenas um pretexto para nos distanciarmos de nossas casas): “E você, Nilto Maciel, se salvará do esquecimento?” Não titubeei: “Ora, se nem José de Alencar, um gênio, não se salvou, o que dizer deste pobre escritor provinciano, medíocre, pequeno. Aliás, sou esquecido desde a publicação do primeiro soneto. Se escrevo e publico, é por teimosia, pirraça, ociosidade ou burrice. Ou tudo isso junto. Como os judeus, os cristãos, os muçulmanos e todos os religiosos, os crentes na vida eterna, não quero morrer. Não sou do tipo apressadinho, desses que atam bombinhas ao corpo e correm para o abraço”.
O velho Fiat saiu pelas ruelas da Gentilândia, no rumo da Avenida da Universidade, a pular e roncar. Os transeuntes, assustados, colavam-se às paredes, acuados. Os mais afoitos ou desesperados, atravessaram a via, aos brados de socorro. Os motoristas aceleravam os carros. Nos ônibus, alguns moleques se puseram a nos vaiar. Mario olhou, com desdém, para os lados e sentenciou: “Essa gentinha, esse povinho cearense não perde oportunidade de ser canalha. É, Nilto, estamos longe de chegar perto do primeiro mundo”. E deu uma arrancada terrível, capaz de esfarelar o sedan em mil pedaços. Não sei como não me espatifei todo. Devo ser pessoa de muita sorte. Cheguei inteiro ao Monte Castelo. Despedi-me de Mario, apertei-lhe a mão suada e fria, agradeci pelo almoço, pela companhia, pela conversa sadia e sábia e me afundei no Gol 2012, que todo dia me leva ao mundo e traz para casa. Fui direto para um restaurante, comer carne de porco, arroz branco e feijão mulatinho. Ciente, porém, da minha finitude.
Fortaleza, 17 de junho de 2012.
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