“Eu sou aquele menino
Que cresceu por distração.”
(Paulo Bomfim)
A criança que há em mim acorda chupando o dedo, com saudade do bico, consolo do fim da noite, no berço da rede branca, de varandas brancas. Em gostosa preguiça infantil. Quando flagrado em pesadelo, o mijo na rede, batismo do medo.
Levanta-se, acorda de olhos ainda fechados, água fria a abrir os olhos para a luz do dia, resquícios de sonho nas remelas a colarem as pálpebras sonolentas. No café, nunca foi de ter fome. O estômago inda não acordara, e o leite com açúcar a passar por entre os dentes cerrados. “Gut, gut, gut. Vamos! Gut, gut, gut.” A voz de minha mãe, Djanira, a me encorajar a esvaziar o copo, grande. “O café da manhã é a mais importante das refeições.” Conselho que, nos dias atuais, repasso credulamente para os meus rebentos.
A criança que há em mim caminha com timidez em meio a homens e mulheres, fingidamente decididos, a socarem o chão com os seus sapatos apressados, sempre simulando compromissos inadiáveis, quando, na verdade, rodam em círculos, atrás do rabo de si e do nada.
A criança que há em mim adora parar na praça desabitada e sentar, sozinho, no banco mais ao fundo. Sem pressa, para ouvir a sinfonia sem regra dos pássaros. Passaredo a executar a matinê orquestrada. E, do meu canto, flagrar os velhos, presos pelas famílias às molduras das janelas. Seres de olhos capiongos, a catarem reminiscências nos becos e nas ruas, defronte do seu inexpugnável e vazio exílio.
Em torno do meio-dia, a criança retorna para a Rua Mateus Mendes, 75, e abre o portão da casa em Santana chamando pelos irmãos: “Dedé, Baía, Tito, Dr. Stygma! Onde estão vocês?” Lembrança que dói, e como dói.
A criança que há em mim consagra a madorna após o almoço à memória dos antepassados; costume que corre o rio de tantas existências, hábito de carne, espírito e osso. Por todas as gerações. Assim seja, amém. “Não atrapalhem o meu sono!” O aviso diário de Zequinha, o Arcanjo pai. De vez em quando, dado às barulhentas travessuras, o ringir dos armadores. E, “pernas pra que te quero!”, no aviso do Baía; aquele que ficasse para trás seria brindado com a sova do dia. Uma palmada na bunda. Hoje, bem sei, ela doía mais na mão de Zequinha de que em nossas nádegas.
A criança que há em mim sempre gosta de futebol. Futebol do drible certo, do passe preciso, da marcação sem falta, da jogada inesperada a gerar a festa do gol... mesmo sendo um péssimo jogador. A raça a suplantar a magia. No máximo, aplicado zagueiro. “Menino do Catecismo, você nunca foi de bola!”; goza-me o meu terceiro pai, o Chico de Neco Carteiro.
Nas partidas na tevê, sinto muita falta da companhia de Dederardo, de Gordinho, de Gazumba, de Totonho, de Gatinho... Enfim, de toda a meninada de Licânia. Quanta saudade!
A criança que há em mim, parece, hoje pouca coisa nova vive, apenas relembra, e recupera, as maravilhas que deixou enterradas nas ribeiras do passado. Gloriosa botija deste quase cinquentão.
Algumas vezes, distraído, flagro-me em gaitadas longas e gostosas, e acabo me dando conta de que serei sempre criança, mesmo que isso se dê por mera distração.
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