Antes da reflexão sobre o conto “Os Outros”, de Nilto Maciel, é importante discutirmos algumas questões que norteiam a análise desse texto literário. Questões estas que nos possibilitam pensar o fazer literário a partir da gestão de seu próprio contexto, relacionando o processo de criação ao conceito de paratopia, tomado a um só tempo como condição e produto da criação literário.
Na busca de sanar a eterna lacuna deixada pelos tradicionais analistas da literatura que privilegiavam, por um lado, uma abordagem interna caracterizada por uma perspectiva estilística que via a obra literária como uma entidade fechada em si mesma, produto exclusivo de uma consciência criadora, e, por outro, uma abordagem externa que considerava a história literária a partir de uma concepção filológica em que a obra se inscrevia como expressão de determinado tempo; as teorias da enunciação linguística, as correntes da pragmática e da análise do discurso, já na trilha aberta pelos estudos bakhtinianos sobre o caráter dialógico da linguagem, “impuseram progressivamente uma nova apreensão do fato literário na qual o dito e o dizer, o texto e o contexto, são indissociáveis” (MAINGUENEAU, 2009, p. 7). A partir de então, a obra literária passa a ser vista de múltiplas perspectivas, todas envolvendo conceitos que desestabilizam as antigas oposições entre o exclusivamente “linguístico” e as instâncias “extralinguísticas”, entre um “dentro” e um “fora” da literatura.
Aderimos, em especial, à perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa (doravante AD), a qual partilha de uma visão que relaciona o fazer literário às coerções de uma instituição discursiva, que percebe a obra como o reflexo das condições de sua própria enunciação. Não sendo o contexto algo que se coloca no exterior da obra, mas antes “o texto é na verdade a própria gestão de seu contexto” (Ibid, p. 44).
O esquema que outrora entendia a criação literária como um processo linear, em que o escritor, isolado em sua ilha de produção, seguia etapas bem delimitadas de redação, divulgação e legitimação da obra, dá espaço para “os de dispositivos de comunicação que integrem ao mesmo tempo o autor, o público e o suporte material do texto, que não considerem o gênero invólucro contingente, mas parte da mensagem, que não separem a vida do autor do estatuto do escritor, que não pensem a subjetividade criadora independentemente de sua atividade de escrita” (Ibid, p. 45). A obra literária, então, inscreve-se em um espaço literário que relaciona aparelhos e práticas institucionais (editores, críticos, cânons, concursos, prêmios), campo discursivo (lugar de confronto entre posicionamentos estéticos) e arquivo (memória).
Embora a noção de “espaço” ou “campo” evidencie a participação do espaço literário na sociedade, a enunciação literária rompe com a representação convencional que temos de um lugar estável. A literatura se apresenta a partir de sua inserção na fronteira entre o funcionamento tópico da sociedade e as forças que superam a própria natureza humana. Sua existência não se confunde com a sociedade comum, tal como acontece com outros domínios da atividade humana, muito menos está fechada em si mesma, visto que participa da realidade. Em outras palavras, a literatura está fadada a uma “localidade paradoxal, paratopia, que não é ausência de lugar, mas uma difícil negociação entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que retira vida da própria impossibilidade de estabilizar-se” (Ibid, p. 68).
O escritor se encerra em um pertencimento impossível tanto à sociedade quanto ao campo literário. Age antes por uma negociação conflituosa do que pela absorção em uma dessas instâncias. É o típico caso, por exemplo, dos boêmios em oposição aos burgueses no século XIX: considerados artistas, ao mesmo tempo em que pertenciam à sociedade burguesa, afastavam-se dela. E, “basta que seja estabelecida na sociedade uma zona percebida como potencialmente paratópica”, tais como a dos boêmios, marginais e excluídos de uma sociedade (paratopia social: meu grupo não é meu grupo), ou a de todos os exilados (paratopia espacial: meu lugar não é meu lugar), para que o escritor se identifique e “a criação literária a possa explorar” (Ibid, p. 99).
A obra literária reflete, então, no próprio universo que constrói, as condições de possibilidade de sua própria enunciação. Estamos diante do que poderíamos chamar de embreagem paratópica, a qual mobiliza os embreantes – elementos que “participam simultaneamente do mundo representado pela obra e da situação paratópica da qual se institui o autor que constrói esse mundo” (Ibid, p. 121).
Assim, no conto “Os Outros”, de Nilto Maciel, essa abordagem permite que apreendamos o personagem-protagonista a partir das posições máxima e mínima. O protagonista-narrador do conto “Os Outros” encontra-se num percurso que pressupomos sair de uma posição máxima, definida pelas coerções sociais, na qual a família (representada pela vivência com Sibila), o emprego, o não questionamento da realidade, a vida normal sem excentricidades apresentam valor significativo, até uma posição mínima, caracterizada pela instauração de uma realidade insólita, pela exclusão (“os antigos amigos se afastaram”), pelo abandono familiar (“Sibila desistiu de mim” (p. 15)).
Ao mesmo tempo em que Rafael participa da sociedade comum, problematiza sua permanência nela. Tal como o escritor que pretende superar sua condição paratópica através do fazer literário, ele busca um outro lugar “Há tempos me imagino astronauta, a saltitar no solo seco do satélite” (p. 13), no entanto, acaba sendo refém da paratopia de pertencer a “dois mundos”: o banheiro, lugar que problematiza a pertinência do protagonista na sociedade tópica, se constitui como o local paratópico por excelência, pertence ao mundo sem lhe pertencer de fato.
A pessoa/escritor Nilto Maciel põe em jogo, no engendramento da própria narrativa, a paratopia que seu empreendimento criador implica. Não que o personagem seja o retrato do autor, mas é através dele que este dá vazão à situação insustentável de pertencer simultaneamente ao campo literário e à sociedade.
No conto “Os Outros”, o narrador-personagem se depara com uma situação inusitada: ao se olhar no espelho do banheiro vislumbra a fisionomia de outras pessoas. Essas pessoas são muito parecidas com ele, embora apresentem traços de “outros”. E apenas no banheiro é que se lhe apresentam. Essa situação o coloca em um lugar-limite que desestabiliza a harmonia social, situando-se na fronteira do espaço social: tal como os cafés do século XIX que recebiam uma legião de artistas, boêmios, todos em oposição ao mundo burguês, o banheiro possibilita a comunhão do protagonista com todos esses “outros” que partilham consigo algo em comum, gerando um confronto com Sibila, sua provável esposa, representante da sociedade tópica, a qual passa a considerá-lo “[...] doido. Parasse de beber. Aquilo era alucinação.”, e, mais adiante no texto, promete levá-lo “[...] à força a um hospital para doentes mentais.” (p. 14).
O fato de Rafael ser colocado por Sibila no grupo de bêbados (boêmios), doidos ou doentes mentais, evidencia como a própria situação paratópia do escritor o leva a identificar-se com indivíduos que parecem não estar incluídos na estratificação da sociedade. Para construir sua obra, o escritor Nilto Maciel explora Rafael, que, por sua vez, se identifica com personagens ou personalidades que estão na mesma situação de um pertencimento impossível a um lugar: são vistos por ele, mas não por Sibila. Há tempos que ele se imagina astronauta, pretende uma fuga dessa condição insustentável; da mesma forma que o escritor, tomando a paratopia como condição e produto, não vê outra saída a não ser fugir, uma fuga para a frente, que se constitui com a elaboração da obra.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2009.
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