(Toulouse Lautrec)
Para Aécio Cândido de Sousa
Manhã de quarta-feira passada, logo cedo, ganhei as ruas do Centro. Alguns compromissos financeiros levaram-me a enfrentar a fúria das ruas do comércio. Esbaforido e ainda tangido pelos carros de campanha política, a anunciar “os anjos e anjas”, candidatos a vereador e a prefeito de nossa província, driblava, rápido e cabisbaixo, a tumultuária multidão. Quando dobrei a esquina, dei com o Duart’s Café. Não perdi tempo, embrenhei-me no recinto, cuidando de fechar bem a porta de vidro atrás de mim.
— É o alto preço que temos que pagar pela pretensa democracia.
Era a indefectível voz do Companheiro Acácio, velho amigo de tantas outras guerras.
— Você aqui, Companheiro Acácio?! Veio sorver o néctar da nobre rubiácea do amigo Rafael?
— Sim, e não.
— Como sim, e não?
— Sim, porque, você bem sabe, adoro um café donzelo. O do Rafael, não é porque esteja na presença dele, é um dos melhores desta terra de Dorian Jorge Freire. Não, porque não vá pensar você que entrei aqui apenas atraído pela dose desse líquido que eu diria dos deuses.
Nesse momento, pus os olhos sobre a mesa à frente do Companheiro. Papéis e lápis, em confusa arrumação.
— O que anda a escrever?
— Então, agora, já sabe o que me prende a este recinto. Trata-se de um projeto de lei.
— ...
— Não vá pensar besteira. Não estou candidato ao legislativo municipal! Você bem sabe que sou um anarquista convicto. Inimigo da falsidade que empesta as nossas agremiações partidárias.
Disse-o no costumeiro tom de revolta. Olhei para os lados, com receio de que o ambiente abrigasse algum dos nossos políticos.
— Projeto de lei?!... Sobre o quê?
Pediu-me para sentar, afastando um calhamaço de livros de Direito. Sobre a mesinha, ao canto, a nossa Lei Magna. Tomada por dezenas de marcadores coloridos.
— Ando cada vez mais irritado com a verborragia que assola a nossa província, Clauder Arcanjo. Não há nenhuma sessão, nenhuma estreia, nem sequer o menor ato administrativo em que não sejamos solapados por discursos infindos. Certo dia, nem gosto de me lembrar, fui à inauguração de um pequeno sebo — coisa discreta, sem presença de medalhões, apenas com o fito de ocupar o mercado livresco dos didáticos —, quando o coitado do proprietário, antes de considerar o recinto aberto ao público presente, caiu na suprema “besteira” (desculpe-me a impropriedade) de facultar a palavra. Meu amigo!, nem lhe falo. Saiu, lá das profundezas da retaguarda, um sujeito baixinho, vestido com um paletó preto, do século XIX, ainda recendendo a naftalina (escrivão aposentado, segundo fiquei sabendo depois), sacou do verbo e... mandou ver, como dizem os mais jovens. Duas horas de maçante improviso. Isso mesmo, cento e vinte minutos. Não mais, nem menos. Maltratando o latim, a gramática e os ouvidos dos incautos presentes. E não ficou por aí, não. Um desafeto do “pretenso Demóstenes” pediu para ser anunciado, réplica ao inimigo, e aí a coisa resvalou para o sono. Orador monocórdio, entrava e não conseguia sair de onde entrava. Um discurso em oito. Perdido em seu dédalo oral, baixava, cada vez mais, o tom de voz em busca do seu fio de Ariadne e... nunca vi sonífero maior. Quase duas horas depois, fomos salvos pela falta de luz. Até hoje não sei se aquilo foi obra do proprietário do estabelecimento ou falha da concessionária de energia elétrica. O público aplaudiu. De pé. Nunca vi aplauso mais forte e aclamador de uma salvadora escuridão.
— E o que tem tudo isso a ver com o seu projeto, Companheiro?
— Fácil e simples. Explico. Como não sou homem de pensar e de não agir, resolvi, eu mesmo, minutar um projeto de lei estabelecendo o imposto sobre a palavra. Contribuição acaciana ao próximo legislativo. Em essência: todo aquele ou aquela que fizer uso da palavra — em qualquer evento, público ou privado — ficará sujeito a tal tributo. Proporcional e progressivo ao tempo de que fizer uso. Prático e de uma clareza solar. Outro detalhe: a verba recolhida com esse imposto será destinada ao ensino da nossa língua pátria. Com um reforço, capítulo especial, no campo da síntese. Sem esquecer, no achincalhe à verborragia oratória compulsiva.
Nesse exato momento, entrou no café o presidente da Associação dos Defensores dos Bem-te-vis do Beco das Frutas.
— Nobres amigos, que bom encontrá-los em tão augusto local. Sei que serão signatários do nosso abaixo-assinado em favor dos bem-te-vis do Beco das Frutas. Antes, porém, peço vênia aos presentes, para expor as razões que nos levaram a criar a nossa associação, bem como o que nos move à defesa de tão excelsas aves. Para dar início à minha rápida exposição, me valerei de uma citação de Rui Barbosa, o Águia de Haia...
Quase três horas após, sob o inclemente sol do meio-dia, conseguimos deixar o ambiente. Confesso que não assinei o abaixo-assinado em defesa dos bem-te-vis; aliás, passei, a partir de então (perdoem-me os amigos ecologistas), a detestar tais pássaros. Obra e graça do presidente da infausta associação.
Antes de rumar para casa, anunciei, a plenos pulmões, ao Companheiro Acácio:
— Considere-me um serviçal do seu projeto, Acácio. Um pedido apenas: aumente ainda mais a alíquota básica, tá bem? Cambada de oradores de meia-tigela!...
Clauder Arcanjo — Escritor
clauderarcanjo@gmail.com
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