(Airton Monte)
“Nunca abrirei mão dos meus sonhos, mesmo que eles se transformem em pesadelos”, dizia ele. 1. Airton Monte viveu sempre na era de Aquário. Menino de colégio marista. Adolesceu no frigir dos anos 60, jogou peladas, pintou e bordou, sem esquecer-se de ler e estudar. Depois, já médico, andava com Rogaciano Leite Filho, entre outros, curtia os bares do Benfica, o Estoril, já na decadência, e amava a vida. Parecia o Leminski, a dizer: “Haja hoje para o tanto ontem”. 2. Tímido como um monge trapista, limpava as grossas lentes ao ver os balanços das cadeiras. Não as de sentar. 3. Deu-se um tempo nas traquinagens e casou-se com a prima, Sônia, sabedora de seus poréns, amante e companheira que lhe deu os filhos Bárbara e Pablo, hoje adultos e abalados pela perda do irmão maior que os adorava na sua esquisitice. Agora, eles são o Airton para a Sônia. Lutem pelo futuro para discernir o resultado do presente.
4. Sabia-se leitor e daí, sem deslize, passou a escrever. Como disse a poeta Cora Coralina: “Estamos todos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo”. O primeiro tempo, poemas. Vieram contos. A crônica já estava em seu alforje de letras fortalezenses, amante da cidade que se circunscrevia ao badalo, a casa e ao trabalho em hospitais de doentes mentais e, depois, como psiquiatra cooperado da Unimed. 5. Desajeitado com o computador – presente do Carlos Augusto Viana – sofria com a “coisa”. Ele me ligava e eu já enviava a colaboradora Josilene Lima a sua casa para mexer no “bicho” que emperrava e, entre copos de cerveja, aplacar a sua saudade da senil máquina de escrever. Como dizia Borges: “O tempo é a substância de que sou feito”. Ele tinha pressa. 6. Pedi-lhe, certa vez, para cuidar de um jovem com transtorno de pânico e o fez hígido em pouco tempo. Poucas pílulas, boas risadas e papos entre um cigarro e outro. Era “assim, assim” com o citado Carlos Augusto que o transmudava do seu “solar suburbano” para os altos de um prédio mirando o mar entre rochas da Volta da Jurema.
6. Quando seu pai, também Airton, estava na UTI, perguntei-lhe: já foi lá? Não tive coragem, disse-me. Apronte-se, vou apanhá-lo. E lá fomos nós ao hospital. Ele, olhos marejados, de comprida bata branca, parecia uma criança ao velar o pai inconsciente. Na volta, mãos enfiadas nos bolsos da bata fez do silêncio a dor do seu semblante. 7. Há alguns anos queixou-se do corpo e o Dr. José Teles ataviou-se de irmão mais velho, cuidou de tudo e estava lá na cirurgia que se esperava salvadora. 8. Foi amado por José Teles, colega medical e seu anjo da guarda na vida e na morte. Cuidou dele no último lustro e até o traficou do calor do ciumento Clube do Bode para o refrigério do restaurante do Ideal Clube. Passou a beber cerveja sem álcool. O achaque retornou.
Por fim, prostrou-se e, resignado, voltou à sua casa de fachada verde, como a ouvir Fernando Pessoa: “Ouço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair”. 9. Estive lá há alguns dias. A filha Bárbara me recebeu. Pilha de jornais não lidos. Depois, entrei em seu quarto. Televisão ligada, ele sentado na cama. Sem camisa, comia pipoca vagarosamente, floco a floco. Pediu água e, depois, um refrigerante. Conversamos, rimos até. Voltava a ser menino, parecia querer ver o pai que se fora. 10. Terça, 21 de setembro de 2012, 17h30, seu ataúde foi fechado. Batemos palmas. Era a última cena.