A Obra-Prima de Humberto Mauro
Se de filme para filme
amplia-se e solidifica-se o domínio de Humberto Mauro (Volta Grande/MG, 1897–1983) sobre o entender e o fazer
cinematográfico, em Ganga Bruta (1932)
esse aprimoramento atinge sua plenitude, revelando cineasta perfeitamente
consciente do fenômeno cinematográfico.
À semelhança de Machado
de Assis, não é só sob o aspecto técnico-formal – e nem poderia sê-lo sob pena de não se perfazer – que abarca os recursos mecânicos da
câmera, a elaboração estética da imagem e a percepção das possibilidades
oferecidas pela montagem, que Mauro apresenta aperfeiçoamento constante até
alcançar o clímax desse processo.
Essa trajetória
ascensional também ocorre na compreensão da natureza humana e na filigranagem
significativa de suas manifestações e no conteúdo e modos do
inter-relacionamento entre os indivíduos.
Como sua temática
essencial (e única) centra-se até então em torno do relacionamento amoroso de
personagens na faixa etária de sua eclosão e resolução, esse específico (e
especial) modo de união entre as pessoas é não só revelado em algumas de suas
variações como, principalmente, mais aprofundado e até mesmo tragicizado.
A linha evolutiva do
conhecimento e das concepções de Mauro sobre o mundo caracteriza-se, pois, por
enfeixar todo o complexo fílmico-ficcional, conquanto, como acontece com
qualquer outro criador, balizada e condicionada pelos elementos culturais (em
seu amplo e abrangente sentido), temporais e espaciais, que informam e moldam
seu entendimento das coisas e do mundo.
Em Ganga Bruta, como nos filmes que o antecedem, também surgem
obstáculos ao comércio sentimental, interrompendo sua espontânea manifestação.
Contudo, a diferença é não só de natureza como de intensidade e gravidade. Por
primeiro, esse óbice é íntimo num dos parceiros, traumatizado por anterior
comoção.
Essa tecla é trabalhada
pelo cineasta tanto ao nível do significante quanto do significado, do conteúdo
e sua exteriorização, quanto do modo de conduzi-los narrativa e imageticamente.
As notas, soantes e
dissonantes, e a tessitura relacional daí decorrentes constroem-se e fluem sob
condução segura e visualmente requintada.
A imagem cinematográfica
e sua montagem atingem sofisticada elaboração estética e perfeita concatenação
dialética, em que a ação provoca não simples reações, mas, consequências que se
articulam num encadeamento ininterrupto.
Pode-se afirmar que isso
é o que normal e naturalmente deve ocorrer nas construções artísticas ficcionais
e estar-se-á enunciando verdade axiomática.
Todavia, em poucas obras
consegue-se imantar, articular e conduzir seus componentes com a argúcia e a
pragmática demonstradas em Ganga Bruta,
mormente a partir de elementos triviais, dos quais se extrai a natureza íntima,
imprimindo-lhe concomitantemente beleza estética, que a transmuda, valoriza e
universaliza.
Tirante algumas cenas
cinematograficamente pouco expressivas, o filme é um continuum de sofisticadas construções imagéticas, em que se fundem
o olhar (as possibilidades fotográficas e angulares da câmera) e a imagem dele
resultante.
Esse olhar ultrapassa a
direta (e altamente complexa) visualização da matéria que enfoca para mostrá-la
simultaneamente como se apresenta em sua solidez e concretude e também – e, no caso, principalmente – em sua beleza, quase sempre
imperceptível à verificação meramente mecânica e/ou orgânica.
Ganga Bruta é, pois, resultante da observação e percepção de
estético e dialético olhar do artista no processamento da transfusão de matéria
e ideia, ação e contemplação, visão e beleza.
Suas imagens mais
elaboradas e a sutileza relacional que estabelece entre os protagonistas,
notadamente na série (e variabilidade) expressional da heroína, antecedem os
grandes cineastas europeus dos anos cinquenta que dilataram seu alcance e
profundidade.
As cenas iniciais do
filme transcorridas no âmbito do palacete residencial, palco da tragédia, por
sua vez antecipam (e são de igual nível) às de Orson Welles nove anos depois,
em Soberba (The Magnificent
Ambersons, EE.UU., 1942).
(do
livro Seis Cineastas Brasileiros
editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em
2012-www.institutotriangulino.wordpress.com)
Foto
da capa do livro em anexo.
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Guido
Bilharinho é advogado atuante em Uberaba e editor da revista internacional de
poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda
autor de livros de literatura, cinema e história regional e nacional.
(Publicação autorizada pelo
autor)/////