(Tonho França)
Eu
não deveria iniciar esta crônica com um chavão, mas não temerei a cara feia de
ninguém: A Internet é uma maravilha. Pronto, está escrito o chavão. E por que
isto? Porque, não fosse a Internet, eu
não teria conhecido dezenas de escritores. Ora – dirão os eternos insatisfeitos –, muitos não valem nada, não sabem escrever,
são uns principiantes. Pois tenho tomado conhecimento de centenas de bons
escritores, primeiro na tela do computador, depois em livros. Esta semana foi a
vez de Tonho França, que mora em Guaratinguetá, São Paulo, nasceu em 1965,
publicou quatro obras e, com outro jovem escritor, Wilson Gorj, criou a Editora
Penalux. (No prelo, mais um manuscrito meu. Umas memórias literárias. Porém,
isto é assunto para depois).
Não
fosse o prazer de conhecer escritores jovens ou velhos, a Internet ainda me deu
(e dará) a felicidade de me aproximar de pessoas maravilhosas. Sem ela, não
teria me abeirado de Sofia Correia. Conto como foi: Acordei um dia cedinho
(costumo sair da cama com o sol a meio caminho do zênite), liguei o computador
e fiz uma busca: Sophia Loren. Por que isso? Porque horas antes tivera um
sonho: encontrava-me com a atriz em Roma. Caminhávamos pela Via Appia, chovia
fininho, fazia frio, era
noite. Súbito, aparecia um sujeito com cara de Marlon Brando jovem e se punha a
me chamar de vagabondo, plebeo, gaglioffo.
E eu despertava. Como observou o eterno
William, pelos lábios de Hamlet: “There are more things in heaven and earth, Horatio, /
Than are dreamt of in your philosophy”. Pois não é que outra Sofia me
apareceu naquela mesma manhã? Assim: deixei a Loren de lado e passei ao correio
eletrônico (todo dia leio primeiro as mensagens de meus amigos e da gente nova,
depois de deletar as armadilhas dos hackers).
E lá se achava, na primeira linha, certa Sofia Correia. Em três dias de
mensagens curtas, eu já sabia trinta curiosidades dela: amava os Beatles e os
Rolling Stones, lia Julio Cortázar todo dia, gostava muito de meus “textos”,
tinha uma cadela chamada Teresa, etc.
Volto
ao assunto principal desta crônica: recebi semana passada, de Tonho França, seu
mais novo rebento: O bebedor de auroras
(Rio de Janeiro: Futurarte Poesias, julho de 2009). A capa, de Luiza Romar (em
azul, preto, branco e amarelo), é um primor. O prefácio vem de meu amigo
Tanussi Cardoso. O impresso tem 80 páginas: versos, prefácio, posfácio (de Igor
Fernandes), sumário, etc. Li-o em seis dias, entre um gole de Hamlet e um naco
de Cortázar. No sétimo dia, deu-se o pecado: a menina dos Rolling Stones surgiu
em traje de ninfeta aos meus olhos cansados de letras. E pus-me a ler para ela
os tantras de Tonho França: “Na soleira, deixo minhas rotas e meus mapas
antigos”. Ela bateu palmas: O viajante, o explorador, o aventureiro, o poeta
que parte livre. Sim, deve ser isso – exaltei-me, e corri à geladeira para lhe
trazer suco de uva. Ela pediu para ler em voz alta: “Não percebo mais minha
estrela polar / e todas as preces que sabia”. Tentei dar uma opinião. Ela me
fez calar e eu me embasbaquei. Pensei: Para que servem guias e pedidos de
proteção? Ela continuou a leitura, enquanto molhava os lábios de roxo: “A mesma
xícara de todos os dias / onde me sirvo numa entrega plena, completa / num
ritual todo íntimo / como cabe à solidão e ao poeta”. Pensei em fugir. Fiquei e
balbuciei: Eu não disse?
Deixo
de novo a doçura de lado e me atenho ao que Tanussi Cardoso anotou (a essência
da arte de Tonho): “Distanciando-se de um tipo de poesia, ora anódina e de
conteúdo inócuo, ou de uma outra, que considera a realidade objetiva como tese
de poesia e não de prosa, os poemas de Tonho França têm a propriedade de
iluminar o cotidiano”.
De
volta à realidade, sugeri a Sofia uma leitura mais amena, como o “Cântico dos
cânticos” de Salomão. Ela recusou a troca: Hoje prefiro este poeta. E voltou a
ler: “Tenho nas mãos uma lua e duas moedas antigas / brinco de jogar pedrinhas”.
Fiz nova interrupção: É a brincadeira, a infância, a pureza, que é poesia, que
é metáfora. Ela fechou o volume: E há poesia sem pureza? Sim, há. Pois o que é
o absurdo, o “demoníaco”, o inaceitável? Ela se levantou do sofá: Este poeta
prefere ser divino e, ao mesmo tempo, visível. Abriu de novo o tomo: “o vento
que toca em meus cabelos longos / é íntimo conhecedor de destinos”. Olhei para
o céu, pela porta entreaberta: Ora, pois, é o vento (são os ventos) quem nos
conduz.
Quando
ela se retirou, reli o prefácio de Tanussi: O
bebedor de auroras “tem certos motivos preponderantes: emoção à flor da
pele, poemas autobiográficos, preocupação existencial e social, visão ambígua
do cotidiano, musicalidade, boa escolha vocabular, imaginação vertiginosa, a
imensa solidão do poeta, o fazer literário, e uma eterna ‘viagem’ como símbolo
abstrato de uma liberdade, mais sensorial do que real, em que o poeta se
debate, entre ‘estrelas e luares’ e o caos urbano”. Ufa! Sim, ufa. No entanto,
era isto o que eu queria dizer.
Não
sei se por culpa de Sofia, saí da leitura de O bebedor de auroras como quem entra num outro mundo, numa outra
dimensão. Como se tivesse morrido e aqui estivesse para constatar a enorme
diferença entre vida e morte, entre ser e não-ser, entre o real e o sensorial. Lembro-me
de ter lido para ela: “Há os que precisam ancorar / Há os que desejam se
perder”. E ela comentou, muito séria: Chegar e partir. Aportar ou sair aos
mares. Li trecho do posfácio de Igor Fagundes: “Tonho França parece bastante
ciente de que a poesia, então, não é uma fuga à realidade, a um reino da
fantasia que se lhe opõe, mas, arrebatadoramente, significa o encontro
intensivo como o que, na realidade, persevera com sua potência e vigor”.
Encerramos
aquela tarde (eu ia dizer fagueira, mas pareceria tão fora de moda o adjetivo,
que me calo) com mais versos de Tonho: “Um ponto no horizonte, as dores nunca
mais, / Quem dera pudesse, o adeus do cais...”
A
fagueira (agora ouso usar este romântico adjetivo) Sofia Correia, tão adornada
de rubros lábios, se despediu de mim e saiu. Guardei os saltérios de Tonho numa
estante e fui dormir. Talvez sonhasse com Sophia Loren, sem Marlon Brando por
perto.
Fortaleza,
3 de outubro de 2012.
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