Quase
todo dia batem palmas diante de minha casa ou acionam a sirena do portão.
Ninguém me vê, pois o muro é alto e a grade de metal não tem brechas. Se
quiser, posso enxergar a rua, pelo olho mágico. Se não desejar sair ao jardim,
dirijo-me à janela de um dos quartos: Quem é? Na maioria das vezes, são
missionários cristãos. Queremos falar da palavra de Deus. Desculpem, mas estou
de saída. Arranjo sempre uma desculpa (mentira), para não abrir as portas de
minha morada aos pregadores.
Ontem,
porém, decidi não mentir. Escancarei o portão (tudo planejado há uma semana,
que sou mesmo sagaz como os psicopatas mais perigosos) e fiz a proposta mais despiedosa
de minha vida de agnóstico ou ateu. Receberei vocês (eram três mulheres, entre
30 e 50 anos, segundo meus cálculos), ouvirei calado o que quiserem dizer, de
agora (eram 14 horas) até o anoitecer. A cada cinco minutos, interromperei a
fala de vocês e terei direito a falar pelo mesmo tempo. Outra exigência: não
façam prédicas ou comentários, apenas leiam a Bíblia. Uma delas revidou: Mas é
preciso explicar cada versículo. Irritei-me: Não quero explicação nenhuma. Sou
leitor da Bíblia desde 1952. Aprendi a missa em latim. Querem ouvir a Ave-Maria
na língua dos romanos? Aceitam os termos do acordo? Aprovaram todos os itens, talvez
certas de terem fisgado mais um incréu.
Devo
dizer que, para urdir a travessura, me inspirei numa história real. Logo após o
golpe de 1964, todos os comunistas, socialistas, nacionalistas e demais ativistas
de esquerda do Brasil foram conduzidos a quartéis. Um deles (o nome não vem ao
caso) se dizia poeta. Segundo os historiadores, toda vez que os “inimigos da
pátria” se punham a cantar hinos revolucionários, a gritar, exigir tratamento humano,
o comandante do quartel ordenava o início da sessão de torturas. E em que
consistia o castigo? Aquele poeta de fala rouca, cabelos desgrenhados, gestos
de rebelde se punha a recitar seus versos, em bom som, para os demais presos. Tudo
com a devida permissão do oficial. Depois de alguns minutos de “poesia”,
acometidos de terríveis dores de cabeça, os prisioneiros pediam socorro,
prometiam não cantar mais os hinos revolucionários e aceitar, calados, a comida
podre e toda a imundície das celas. Sim, comeriam baratas e outros insetos
vivos. Bastava o coronel afastar deles o “poeta”.
Pois
pensei: se os militares torturavam com poesia, por que não posso me defender de
carolas e evangélicos com versos mal feitos? Se querem me impingir a Bíblia,
dou-lhes de volta o pior da literatura. E assim passamos aquela tarde. A cada
cinco minutos de Adão e Eva, eu respondia com cinco estrofes do poeta fulano. A
cada lamentação de Jó, eu contrapunha um conto curto de sicrano. A cada
chicotada no lombo de Jesus, eu disparava versos e prosas de jovens e velhos
que me mandam impressos distorcidos, historinhas do sertão, poeminhas de amor,
baboseiras de todos os tipos.
E assim
passamos a tarde. Não lhes ofereci água e muito menos suco, biscoito ou torta,
como o faço quando recebo estudantes de letras ou jornalismo. Queria vê-las sedentas
e famintas. E bem longe de meus ouvidos e meus olhos cansados de pastores de
fala rouca, eternamente sorridentes, bolsos e malas atulhados de moedas.
Ao
final, doei-lhes mais de 500 peças. Não puderam levar tudo de uma vez. Entraram
pela noite a carregar os calhamaços. Iam e voltavam (moram no mesmo bairro),
feito formiguinhas, mui contentes, em incansável “louvar a Deus”. Iam, e eu
dizia: Aleluia! Voltavam de mãos abanando: Amém! Levem tudo de fulano, que é
poeta muito cristão. E elas levavam, felizes. Retirem todas as obras de
beltrano, contador de histórias engraçadas. E elas saíam, serelepes, abraçadas
a meia dúzia de tomos poéticos. Conduzam para os quintos do paraíso a obra
completa desses apóstolos da vulgaridade.
Não sei
se fiz mal às três matronas. Não demonstravam sentir dor ou qualquer incômodo. Semana
passada, encontrei uma delas num supermercado. Como vai o senhor? Tem ainda
muitos livros em casa? Tentei me esconder entre mesas cobertas de abacaxis, bananas
e mangas. Só umas “poesias do alvorecer” e umas “histórias que meu avô
contava”. Outra avistei na calçada de uma avenida larga. Cuidado, senhora, que
o trânsito aqui é dos infernos. Olhou para mim, espantada, benzeu-se e escapou
da morte súbita. Serenado, vi-lhe o vestido do outro lado da via. Fiz-lhe um
aceno. Ela não deve ter notado minha mão trêmula. Eu, porém, a vi mais
assustada do que judeu nas ruas de Berlim durante o reinado nazista.
Não sei
se fiz mal às três cristãs. Ou aos poetas e prosadores que durante anos
ocuparam minhas estantes. Não gosto de jogar publicações ao lixo. Os lixões, os
monturos, os aterros parecem tão sobrecarregados! Nunca queimei livros (fogo só
o do inferno), mesmo os mais defeituosos. Para não me sentir culpado, fiz de
tudo para prevenir as senhoras de indisposições físicas. Como bom samaritano,
enquanto elas se esfalfavam na condução das obras, eu não parava de ler (na
porta da rua, para todos os transeuntes e vizinhos ouvirem) os poemas e contos
mais capengas da literatura brasileira. E elas respondiam: Deus seja louvado!
Naquela
noite, dormi em paz e não tive pesadelos. Pelo contrário, sonhei com um sujeito
chamado Labão,
que tinha duas filhas; o nome da mais velha era Lia, e o nome da menor Raquel.
Lia tinha olhos tenros, mas Raquel era de formoso semblante e formosa à vista. Eu
me chamava Jacó e amava Raquel, e disse ao homem: Sete anos te servirei por
Raquel, tua filha menor. Então disse Labão: Melhor é que eu a dê a ti, do que
eu a dê a outro homem; fica comigo. E eu ficava com Raquel. Esta história,
porém, não cabe aqui.
Fortaleza,
22 de novembro de 2012.
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