1. Uma assinatura escritural
Walter Benjamin, no ensaio “A imagem de
Marcel Proust”, relembra que todas as grandes obras literárias ou inauguram um
gênero ou o ultrapassam. Esse caráter de excepcionalidade de um texto adequa-se
muito bem a um nosso arremedo de classificação dos textos que compõem o livro
O Céu do Ceará-Mirim. Tal fusão de gêneros diversos já havia se manifestada
no livro O Spleen de Natal, no qual poucas vezes a linguagem advinda do
jornalismo, tradicionalmente vinculada à função referencial da linguagem,
adquiriu, por meio de vários artifícios estilísticos, uma dimensão estética
consubstanciada em uma dicção que ostensivamente (e naturalmente) faz irromper
a função poética da linguagem, que, em certas passagens de alguns capítulos,
passa a ser a dominante.
Com efeito, aqui neste livro, é quase impossível não detectar um modo pertencente ao sistema literário: memorialística, crônica, poesia, autobiografia, confissões, ou reflexões de cariz íntimo, conto, literatura de viagens, epistolografia, afora aqueles oriundos do jornalismo, com suas marcas de agilidade, clareza e referencialidade: entrevista, perfil, reportagem, artigo. Desse modo, articula-se uma prosa ricamente eclética, não apenas no que concerne à forma, mas também na constelação de ideias veiculadas através de uma linguagem elegante e clássica, configurando por meio do simbolizado, em imagens literárias, uma rara antropologia capaz de desvelar sutilmente marcas do inelutável humano.
Conjugando destramente múltiplas formas
de escritura, o autor parece se comprazer, em alguns parágrafos, com a poesia,
pois além de ressaltar a dimensão significante do signo linguístico, ou seja,
busca ressaltar a palavra enquanto signo palpável, daí a frase elegantemente
construída, ciosa da perfeição sintática e da precisão semântica, numa cadência
sóbria e elegante, em que não estão ausentes, repito, procedimentos oriundos da
comarca dos versos, tais como aliterações e assonâncias.
A adjetivação que havia sido
questionada ou abolida pela literatura modernista, emerge com propriedade para
melhor apreender o entorno com seus objetos a serem descritos de maneira
precisa, em seus fenômenos dinâmicos, integrando a ambiência das narrativas
curtas, no qual o epos vem servir a um cortejo de protagonistas e
co-adjuvantes de rara peculiaridade, intercalados por fragmentos e digressões
nos quais o narrador retira o olhar da cena principal, fazendo valer acordes de
reflexões, opinando, mangando, numa curiosidade de quem quer dar conta do
mundo, numa inquietude de quem busca nomear, enfim, como alguém que se sentisse
responsável pelas coisas e, para isso, manuseasse a linguagem de múltiplas
formas, com a intenção de, ao imprimir a letra, despertar o gênio contido nos
contornos dos objetos, extraindo da aura a essência que o sábio não deixa
passar despercebido.
Desse modo, o texto permite entrever
que a linha sinuosa definidora do contorno é o olhar poético, pois ao
inventariar, também nomina e ressalta a dignidade de personagens com contorno
autoral ou então como edificadores ou sustentadores daquilo, - do pouco, - que
torna o humano atraente e faz crismar nossa capacidade de dar as costas ao
banal, ao simplório e ao que merece desprezo, por não ser capaz de elevação e
transcendência. Ao riscar a caligrafia de indivíduos, organiza e valoriza
identidades que refogem ao lugar-comum da grande turba que nada chantaram ou
elaboraram, nem via linguagem, tampouco por ações edificantes, com o intuito de
erguer estelas positivas na condição do homem sobre o chão da existência.
Pois muito bem, eis a tarefa de
Franklin Jorge como escritor: extrair a dimensão positiva de pessoas que pouco
ou nada valem pelo que detém de material, mas pelo que possuem de experiências
decantadas e que foram capazes de elaborar em discurso eivado de sapiência,
muitas vezes, com travos de amarguras ou niilismo.
Mesmo quando faz uso de maneiras de
escritura tradicionalmente vinculadas à atividade jornalística, o autor refrata
a inania verba, laboriosamente lapidando o estilo por meio de imagens e
cadências frásicas capazes de deixar à mostra a dimensão de significante do
signo linguístico. Não há como deixar de chamar atenção para um ritmo bem
peculiar à escritura de Franklin Jorge: linguagem escorreita e elegante,
detendo a agilidade que os bons jornalistas obrigatoriamente devem ter para com
o ato de redigir. Desnecessário proclamar que o autor, através de um labor de
anos com a matéria verbal, logrou êxito em criar uma dicção própria que só os
grandes escritores conseguiram. Quem há de duvidar que um excerto de texto,
apresentado sem nome, pertence a um conto de Machado de Assis ou determinado
fragmento à prosa metafísica de uma Elisa Lispector?
Há um outro aspecto interessante. É a
alternância de planos temporais e espaciais, expressos pelo ágil câmbio da
troca de falas entre o narrador e seus personagens, que se efetiva na mudança
de parágrafos. Introduzindo, por meio de espécies de registros temáticos a fala
do personagem em foco e o narrador, um procedimento advindo do gênero
dramático: o diálogo, que não apenas funciona como mudança de vozes, mas se
instaura como lugar da digressão reflexiva acerca do topos em evidência.
Mas não apenas isso, o olhar adquire uma permissividade que o faz circundar
pelo entorno, indo o foco narrativo alcançar um personagem secundário ou
salientar objetos da paisagem em volta.
Como acima
dissemos, o narrador, comporta-se como um poeta, ao elaborar uma espécie de
inventário da experiência existencial de homens e mulheres habitantes da cidade
de Ceará Mirim, outorgando uma letra e um número sem escolher por razões
ideológicas ou algo que o valha. Vale o ente pelo que vivenciou, pelo que foi
capaz de extrair de uma presença no mundo. Eis, em evidência, a nobreza e a
dignidade outorgadas a muitos que não existiram para a polis.
O anonimato de muitas pessoas simples, com suas sabedorias retiradas do
embate com o empírico, é posto em evidência; tratadas com enorme seriedade,
perdem suas características de eventuais “tipos curiosos ou pitorescos”,
dispersos na sociedade, passando a se revestir de elementos que dizem de
vetores emanados de uma psicologia profunda, ou seja, direcionam-se para
arquétipos ou estruturas antropológicas que poderiam ter se manifestado
em qualquer etnia, lugar ou tempo. Vale a areia peneirada, retendo uma sílica
mais brilhante, no ato de lançá-la de uma mão para outra.
Esses homens e mulheres compõem um belíssimo vitral de cores fortes
que permitem a passagem da luz aos olhos de um leitor atento ao grande
espetáculo da vida com seus personagens plenos de dissabores, fortuitas
alegrias, andanças inimagináveis e, sobretudo, sincronias interessantes, nunca
esperadas por quem apenas cruzou fortuitamente na rua ou teve um encontro
social com tais pessoas. Com efeito, por meio de uma sublime intuição do
espírito, consegue retirar belezas, didascálias e sentenças de cunho
existencial que imprime ao personagem um atrativo que só os que detém vida
interior rica e multifacetada são capazes de atrair interesse.
2. Uma cartografia do humano
Diferente de um livro anterior, como O spleen de Natal, aqui não
encontramos o corpo a corpo com pessoas do mundo artístico e intelectual da polis,
configurando nas conversas um discurso capaz de elaborar por meio do discurso
literário o modus vivendi de uma cidade, como vivenciam o cotidiano,
como a representam. Um leitor atento será capaz de elaborar um diagrama
etnográfico, com as principais estruturas conformadoras da mentalidade da urbe,
resultante que é de um conjunto de elementos estruturantes, sendo capazes de
riscar uma feição, uma fisionomia, um semblante, enfim, o ethos que todo
aglomerado humano possui e deixa entrever nos nacos extraídos dos pequenos
acontecimentos anônimos ou dos fatos sociais nos quais estão envolvidos
macro-estruturas.
No livro O céu do Ceará-Mirim há um narrador que, no jornalismo,
confunde-se com o autor, sempre atento aos movimentos semióticos do corpo, ao
tom de voz, às indecisões de vocabulário, enfim, ao conjunto composto pela
linguagem humana e seus deiticos adjutórios. O que encontramos é a humilde
reverência aos destinos apagados, às subjetividades pisadas pela vida, ao
anonimato de seres que se perderam na azáfama do cotidiano. Não importa se essa
malta de personagens povoam o contorno íntimo do alter-ego do escritor: Jorge
Antônio. O que vale retirar é a beleza da voz cambiante de uma velha senhora
rememorando seu passado, de um aristocrata que traça o itinerário do seu pai
historiador ou da curiosa vida do poeta Juvenal Antunes.
Com efeito, é esse espaço onde discretos pés adentram pisando uma terra rica de
pedras preciosas, selecionando intuitivamente as que já se encontram no ponto
de lapidação para, através da linguagem literária, resgatar do abandono e do
esquecimento que Cronos imprime a todos. Ora, o autor elegeu Mnemósine, inimiga
daquele, como orago da sua escritura, não que esteja em busca do tempo perdido,
mas optou por não deixar um tempo perder-se, ao intuitivamente eleger
alguns indivíduos em suas singularidades como representantes do espírito de uma
época.
Ocorre, sim, uma atitude hierática de quem contempla tudo com interesse.
Silenciosa atenção de ícone bizantino, julgando pouco, fruindo mais do tempo do
encontro ou da rememoração. Enorme gosto de organizar laboriosamente a palavra
literária sem se preocupar em que chão de gênero está pisando. Avançam os
períodos, como representantes de um espaço e um tempo de um lugar ermo, hoje
anônimo, incorporado como cidade satélite da capital do estado, embora tenha
tido no passado a opulência econômica e cultural.
Tal atitude é formatada através de orações curtas e bem construídas, com
pausas elegantes e significativas. Esculturas de palavras que denotam uma
grande segurança expressiva. Como um Euclides da Cunha, conhece o efeito de uma
freada brusca de uma frase. Síncopes que pendem na cabeça do leitor,
obrigando-o a refletir, sobretudo para aquele habituado com a leitura dos
grandes textos da literatura ocidental, e que sabe das possibilidades icônicas
do texto impresso no branco da página, mesmo em se tratando de prosa. Esse
despotismo de experiência e reflexão contidos nas frases reverberam não apenas
um alto valor estético, mas atingem um registro universal poucamente encontrado
na literatura norte-rio-grandense.
Falo universalidade no sentido de um texto que só aparentemente é uma
entrevista-perfil de um personagem da cidade do vale do Ceará-Mirim. Na
verdade, é o desvelamento e apresentação de, digamos, um destino, ou
seja, alguém que narra uma trajetória, circunscrevendo uma invariante no
conjunto composto, quem sabe, por um reduzido número de histórias que se
repetem pelas tantas vidas. A mitologia grega é um bom exemplo desse discurso
articulado desde sempre. O livro O céu do Ceará-Mirim é um autêntico
microcosmo plasmado por quem muito viajou, por quem escolheu a literatura como
justificativa para a existência, contudo, nas entrelinhas, deixa entrever um
certo fascínio pela vida de todos os dias com seus dramas e suas demandas
prosaicas
4) O lugar do escritor
A
comarca do escritor é um distrito elevado onde poucos detém estofo para
alcançá-lo. Lugar dos que não se contentaram com o banal-local, indo buscar na
casa dos espelhos permanentemente acesos um espaço para o contemplar-se e
também mirar o que o humano pode produzir de beleza e edificação,
expressas que estão na amizade, na solidariedade, na responsabilidade para com
as promessas ditas, mas também provar o que o humano tem de cruel, pérfido, de
mesquinho e de trágico. Sendo capaz de conhecer a face meritória, por que
haveria de hesitar diante da face baça e sombria, das profundezas do abismo?
Ora, todo mundo sabe que a cobra precisa do seu rabo para existir, é o seu
serpentear que desloca o animal.
Classicamente moderno
como tentei aqui demonstrar, Franklin Jorge é um lenitivo para o leitor da boa
literatura, principalmente por que nos infunde uma coisa pouco valorizada hoje
em dia, a saber, a dignidade de ser escritor, mesmo sabendo muito bem o preço
que se paga por ser abrigo dessa bela forma de orgulho. O preço da aliança com
as musas é caro (Antônio Nobre).
Mas que fazer? Franklin Jorge aceitou a proposta de Lúcifer, subiu a
grande montanha, contemplou (e viveu intensamente) o mundo dos homens...só que
preferiu uma terceira via, nem o cume, nem o vale, elegeu quedar-se no abstrato
e fascinante mundo da linguagem, espaço da representação e da encenação do
real. Ao que parece, para o nosso escritor, bem mais interessante do que os
homens convencionaram chamar de realidade.
Considero Franklin Jorge como um dos
nossos mais argutos escritores, capaz de mergulhar em personalidades e extrair
o fogo de uma essência, o pendor de um semblante, o âmbito de uma vida. Poucos
foram capazes de elaborar uma ampla cartografia de nossa terra. Nesse sentido,
retoma a chama de Câmara Cascudo, que se deteve muito mais no fora, no
etnográfico, no histórico, do que no íntimo. Os dois se
completam. Que bom para nossa literatura.
*Márcio de Lima Dantas: Professor Adjunto do Departamento de Letras.
*Márcio de Lima Dantas: Professor Adjunto do Departamento de Letras.
(Prefácio para edição fac-similar de “O
Céu de Ceará Mirim”, comemorativa dos 60 anos do autor; publicado n´O
Mossoroense)
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