Terra
em transe
Política
e Poesia
Fenômeno recorrente é o
artista dar a lume no início da carreira a alguma obra-prima. Sua
responsabilidade daí em diante é grande, pesando-lhe muitas vezes como um
fardo. Isso não ocorre quando o autor ou cineasta vai pouco a pouco galgando os
degraus da qualidade, a exemplo, entre outros, de Machado de Assis, Graciliano
Ramos e Guimarães Rosa no romance brasileiro ou Humberto Mauro no cinema.
Todavia, para inúmeros
outros, a obra-prima inicial ou surgida logo nos princípios da carreira mais
funciona como estigma do que como estímulo, já que posteriormente é necessário
(ou todos esperam e até exigem) algo no mínimo equivalente.
Por isso, não devem ter sido
fáceis os caminhos de Mário Peixoto (que após Limite, de 1930, aos vinte e dois anos, nada mais fez), de
Eisenstein (cujo segundo filme é O
Encouraçado Potemkin, de 1925), de Orson Welles, estreando com Cidadão Kane, de 1941, ou Norman Mailer,
iniciando sua carreira literária com o romance Os Nus e os Mortos (1948).
Igualar-se ou superar-se
a si próprio quando se atinge tão alto nível é tarefa mais difícil do que a
elaboração dessas obras.
Com Gláuber Rocha ocorre
o mesmo fenômeno. Logo seu segundo filme, Deus
e o Diabo na Terra do Sol (1964) torna-se inexcedível. E aí? Fazer o quê?
Claro, continuar, porque o borbulhar (conforme designação de Castro Alves) ou
estuar do gênio normalmente é impetuoso e irrefreável. Mas, o comprometimento e
o peso continuam.
Assim, pouco depois do
golpe militar de 1º de abril de 1964, Gláuber realiza Terra em Transe (1967).
Nele, desvia-se o
cineasta de sua ardente preocupação com a saga (e a sina) nordestina para expor
drama geral do país.
A pretensão (e a onipresente
responsabilidade) de realizar obra consistente o leva a enfrentar a tragédia
dos países subdesenvolvidos, nos quais as carências populares avultam na
proporção da rapacidade das classes dominantes, nacionais e estrangeiras.
São amplas e abrangentes
tais carências, estando sempre presentes e reivindicantes, porque são imensas,
inatendidas, não solucionadas.
Gláuber reúne e lida com
tais elementos no filme, aduzindo o papel que intelectuais de esquerda
desempenham em tal conjuntura.
Na realidade, o cerne ou
o núcleo do filme é esse desempenho dilematicamente vivido pelo protagonista,
jornalista e poeta.
A estruturação fílmica,
no entanto, padece de esquematismo. A figura do protagonista não se resolve com
autenticidade. A ação flui bastante intelectualizada, revelando a cada passo os
andaimes que lhe serviram de apoio. São atos, gestos, monólogos e diálogos
literários, alguns belíssimos, como quando a secretária (Glauce Rocha) do
governador (José Lewgoy), diz para o protagonista que “um homem não pode se dividir assim. A política e a poesia são demais
para um só homem”, ou quando o governador afirma que “eu recuei várias vezes, adiando problemas do presente para pensar no
futuro. Mas, se eu transfiro o presente para o futuro encontrarei apenas um futuro
acumulado de maiores tragédias. Por isso é necessário enfrentar agora os
inimigos”.
Contudo, de tão
elaborada, maior se torna a impressão de artificialidade da contextualização
empreendida pelo cineasta, já de si, desde a sequência inicial, forçadamente
construída.
A maneira de se
relacionarem as personagens, excetuada a ocorrente entre a secretária e o
protagonista, balizada pelo amor, é, sempre, impositiva, determinada de fora
para dentro e não surgida e processada com espontaneidade e naturalidade.
A imperiosa necessidade
de não incidir em convencionalismos e banalidades impõe ao cineasta procurar e
montar cenas insólitas e verdadeiramente espasmódicas. Assim, a extrema
artificialidade das intervenções eleitorais do candidato Diaz e a cena final,
em que o protagonista de personagem transforma-se em figura de outdoor quando a intenção é outra, muito
diversa.
Contudo, o filme possui
predicados. Não poucos nem irrisórios. O maior deles é de evitar a mesmice do kitsh e do trivial.
A beleza da imagem e a
criatividade e elaboração das angulações e enquadramentos de cenas percorrem
toda a película, salientado-se como seu maior atributo, não correspondido, como
se viu, no conteúdo temático e na articulação convivencial das personagens.
Por sua vez, as cenas
das festinhas dos políticos são das melhores do gênero no cinema ou, no mínimo,
no cinema brasileiro.
Enfim e em suma, um
grande filme não realizado, mas, cujos estilhaços sobreviverão pela garra de
sua composição e força de sua impulsão. Se não era o desejado, o esperado e nem
o suficiente, pelo menos é, e sempre, instigante, polêmico e exuberante como a
inteligência, a concepção e a visão do autor.
(do
livro Seis Cineastas Brasileiros
editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2012-www.institutotriangulino.wordpress.com)
Guido
Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil e editor da revista
internacional de poesia Dimensão
de 1980 a
2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema e história regional e
nacional.
(Publicação autorizada pelo
autor)