A
obra que nos inspira para o texto que ora escrevemos começou a provocar-nos
pelo título: Os acangapebas. Ao lê-lo, pela primeira vez, na ocasião do
lançamento, nos perguntamos o que significaria o termo "acangapebas"?
Ou, quem são esses "acangapebas"?
Para nossa felicidade, ao folhear o livro, encontramos, logo
no início, a resposta a tais indagações. O autor, Raymundo Netto, teve a ideia,
ou melhor, o cuidado de transcrever um verbete do Silveira Bueno esclarecendo,
"acangapebas: cabeça-chata. De acanga, cabeça; peba, peva, chata".
Bom, lido isso, pensamos: "cabeça-chata"... algo a ver com os
cearenses? Ao deparar-nos com os tipos que povoam a obra e, em especial, com os
que protagonizam o conto cujo título nomeia o livro, "Os
acangapebas", confirmamos a nossa suposição em relação ao significado da
palavra. Constatamos que, a julgar pelos perfis físicos e psicológicos dos que
habitam a referida obra, é possível afirmar que se tratam de tipos bem cearenses.
E seguimos com a leitura, livro adentro, querendo saber mais sobre os
acangapebas. As descobertas foram muitas e as surpresas várias.
Mais um detalhe que nos chamou muito a atenção no primeiro
contato com a obra: Raymundo Netto publicou o seu livro, Os acangapebas, sem carta de apresentação; ou seja, sem prefácio,
sem o depoimento de um crítico reconhecido, sem o aval de um argumento de
autoridade na área.
Começamos, pois, a render homenagens ao autor por este
gesto. Pensamos que, de propósito, Netto quis deixar ao leitor o prazer da
descoberta, sem o risco da influência prévia de uma leitura anterior. Assim, o
pôs em contato com a obra sem o risco do contágio da avaliação estética e um
direcionamento de olhar de um crítico especializado. Na verdade, a obra não
necessita de apresentação, pois traz consigo a chancela de duas reconhecidas
premiações: O Edital de Incentivo à Literatura da Secretaria de Cultura de
Fortaleza, 2007 e o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura da Academia Cearense de
Letras, 2011. A conquista destes dois prêmios dispensa qualquer texto de
apresentação. Saber que um livro foi lido e indicado por comissões
especializadas nos dá, salvo raríssimas exceções, a certeza de que a obra nos
oferecerá um conteúdo de qualidade.
A leitura
Após estas considerações iniciais, deparamo-nos com nova
indagação: o que vamos destacar desta leitura? A obra nos oferece tantas
possibilidades de análise e leituras que, definir um único viés e explorá-lo,
torna-se tarefa difícil. Decidimos, então, após traçar as considerações gerais
sobre a obra, destacar um aspecto que, de modo especial, chamou-nos mais a
atenção: a linguagem. Porém, antes de fazer este recorte, gostaríamos de tecer,
brevemente, uma explanação de ordem geral.
Visão geral
Os
acangapebas é um livro de contos composto por 39 narrativas
predominantemente curtas, com exceção de uma pequena minoria. Os contos são
apresentados em um único bloco de textos, sem subdivisões; mas, o livro
apresenta-se dividido por três pares de páginas pretas que sugerem um início,
um intervalo e o final. As duas primeiras páginas pretas trazem a epígrafe de
Dante Alighieri, "lasciate ogni speranza, voi ch'entrate", que nos
parece avisar sobre o conteúdo dos contos. É como se recebêssemos uma sutil
advertência, mais ou menos assim: "percam as esperanças, o que vos espera
não é nada estimulante e não tem remédio". O segundo par de páginas pretas
traz um conto que sugere um intervalo, uma parada, após as cem primeiras
páginas do livro. E, as últimas páginas pretas nos ofertam palavras de Goethe:
"Mais Luz", como a nos sugerir mais claridade neste mundo escuro que
acabamos, assim, de percorrer.
Dos símbolos
Não podemos deixar de contextualizar aqui a simbologia da
cor preta que marca estas páginas divisoras do livro. Ao passo que, ao
comentarmos sobre o conteúdo e ambiência dos contos, ficará absolutamente
entendido o porquê do uso desta cor que, na verdade não é uma cor, mas a
ausência de todas elas. Comecemos por destacar o que mais causa estranhamento -
entenda-se aqui "estranhamento" no sentido estético e positivo - na
leitura da obra. Podemos afirmar que este estranhamento estético se dá nos
planos da forma e do conteúdo. Os contos nos tomam de surpresa tanto pela
linguagem elíptica e poética, marcada por construções sintáticas inusitadas e
permeada de neologismos, quanto pela maneira surpreendente como o narrador nos
coloca em contato com ocorrências insólitas de desfechos mais insólitos ainda.
Cada conto é uma surpresa e as narrativas se/nos afastam do previsível.
Das personagens
Considerando os elementos estruturais da narrativa, convém
lembrar que os personagens estão longe de serem os protagonistas típicos das
narrativas tradicionais. Não nos deparamos com os tipos heroicos, atléticos,
famosos, ícones sociais ou políticos, muito menos modelos de comportamento ou
de beleza. Ao contrário, temos uma gama de personagens anônimos, complexos,
depressivos, esquecidos, mal ajustados socialmente, marcados por traumas e
dramas existenciais graves e, muitos, em situações terminais. Vejamos alguns
fragmentos: (Texto I)
Elementos da narrativa
Os enredos, por sua vez, também estão bem distantes daqueles
estruturados em começo, meio e fim, que apresentam um clímax bem marcado. As
narrativas têm, na maioria, formas fragmentadas, estilhaçadas, sugestivas e
muito pouco explicativas.
A abertura
Os enredos não se concluem como esperaria um leitor
tradicional, eles nos surpreendem a cada conto. Cada narrativa exige
continuidade na mente do leitor, conforme o conceito de narrativa aberta de
Umberto Eco. Além dos desfechos abertos, podemos definir os enredos deste livro
como: narrativas do não dito. A leitura deixa-nos a impressão de que a
narrativa se constitui muito mais em torno do que não foi dito, mas apenas
sugerido, do que em torno do propriamente explicitado. E cabe aqui enaltecer a
astúcia do contista que sabe muito bem trabalhar a teia para que essa sugestão
se torne cada vez mais instigante e, muitas vezes, fazendo o leitor retornar e
reler o conto, ou o final dele, para melhor entender o que acabou de ler.
Acredito que, nesta obra, podemos afirmar a existência de uma influência do
quadrinista sobre o contista. Os contos, com seus enredos breves, são como
quadrinhos. São pequenas cenas que se desenham sob os nossos olhos e, o modo
como o narrador apresenta-nos os fatos, com sua escrita elíptica, dispensa
maior desdobramento verbal. O narrador não pratica delongas. Ele vai
ofertando-nos flashes que são lampejos a acenderem-se na mente do leitor. Ele
vai esquadrinhando a realidade em pequenas amostras, muito breves, quase
minúsculas; porém, muito intensas. E nestes breves e insólitos enredos, são os
desfechos que mais nos causam surpresas.
A linguagem figurada
O contista brinca com as palavras, criando imagens
metafóricas, interrompendo a sintaxe, abreviando e entrecortando frases que
levam o leitor a executar malabarismos mentais no intuito de entender o que
aconteceu nas tramas narradas, principalmente, nos seus desfechos. Em alguns
casos um acontecimento sobrenatural se instaura, permitindo-nos a inclusão de
alguns desses contos no rol das narrativas fantásticas; outras vezes, é apenas
o estranho, o misterioso. Em geral, são contos de desfechos enigmáticos. São histórias
de destinos humanos que simplesmente desaparecem tão insignificantes e secretos
como lhes foi a existência.
Amálgama de ficção e
realidade
Quanto ao tempo, nada podemos
definir com precisão. Não nos deparamos com marcadores temporais que precisem
datas ou épocas. Nas narrativas, as referências ao tempo são vagas,
indefinidas, como a combinar com a imprecisão que conduz os destinos aqui
apontados. Parece não importar muito a medição precisa do tempo. O narrador nos
dá a impressão de querer focar a atenção do leitor sobre os dramas existenciais
humanos, independentemente do "quando": "Estacara a
hora..."; "Ademanhãzinha..."; "Não lembrava já de quando,
mas se eram tempos incontados..."; "Naquela noite não precisou
convidar moça alguma."; "Era uma vez, se fosse, mas não era uma, nem
a primeira."; "O sol se punha cedo..."; "No tempo da era
num pedaço esquecido do agreste...".
Dos
lugares
O espaço merece atenção toda
especial, porque ele se torna quase personagem. Geograficamente, alguns contos
têm espaço definido no Ceará, em cidades como Canindé e Fortaleza, por exemplo.
Os demais, apenas apresentam descrição de um espaço físico sem identificação
geográfica precisa. Esse conjunto de pequenas histórias levam-nos a lugares
escondidos, marcados pelo anonimato e, predominantemente, miseráveis, fétidos,
escuros, mal cheirosos, infestados de insetos, em desordem etc. A composição
das cenas tem significado físico dentro das narrativas, mas também psicológico.
O que nos permite afirmar ser este espaço não somente um cenário decrépito, mas
também o prenúncio da própria condição das personagens. O espaço anuncia os
tipos humanos com os quais vamos nos deparar. As baratas, por exemplo, com sua
aparência asquerosa, são uma recorrência nas cenas dos contos. E a presença
delas é de suma importância para compor o cenário onde habita uma mulher quase
sombra, um farrapo humano que acaba sendo devorada pelas baratas, conforme
sugere, de forma fantástica, o final do conto.
A voz do
narrador
O foco narrativo também comporta
estudo à parte. Ao nos referirmos ao foco narrativo dos contos, usaremos aqui a
palavra "narrador", no singular, para facilitar a compreensão; mas,
admitindo a existência de vários, já que estamos nos referindo à muitas
narrativas. O narrador se insere sorrateiramente nos espaços descritos
anteriormente e, de forma mágica e onisciente, vai revelando-nos cenas de um
mundo quase invisível, um mundo à parte, que se faz cenário do submundo de
indivíduos, em maioria, infelizes, tristes, solitários, doentes, abandonados,
depressivos, deprimidos, suicidas etc. Sem intenção panfletária, este narrador
desperta em nós, leitores, uma reflexão profunda em torno das cenas e dos tipos
que habitam os contos. Há, em suas revelações, um espaço para críticas sociais
densas, mas ele não as faz. Não se posta como narrador-intruso ou participativo.
Apenas abre a possibilidades para que o leitor se posicione diante das cenas
narradas. Ele deixa a reflexão plantada na mente dos leitores. O que poderá
provocar desdobramentos da obra como este que fazemos agora. Esse modo de
narrar e de possibilitar ao leitor a continuidade da reflexão crítica
lembra-nos muito o estilo do mestre Moreira Campos. Passemos, então, ao que
mais nos interessa destacar: a linguagem. Este aspecto que constitui o foco
central da nossa apreciação.
Recursos
expressivos
A linguagem em Os acangapebas é
uma caixinha de surpresas que se abre a cada parágrafo, a cada frase, a cada
expressão e, às vezes, a cada palavra. Surpresas que ocorrem nos planos
sintático, semântico, morfológico e fonético. Desnecessário dizer que todas estas
ocorrências são expressões não só do poder do autor sobre o uso da linguagem,
mas também da sua consciência e criatividade literárias. A sintaxe inusitada
chama-nos a atenção para as rupturas que o contista realiza nas estruturas
convencionais das frases, gerando um efeito estilístico a nos lembrar o estilo
de Guimarães Rosa. E este inusitado da sintaxe permite um estudo à parte que
não será feito nesta leitura. Para organizar mais didaticamente o que
pretendemos destacar sobre os aspectos linguísticos nos contos de Raymundo
Netto, optamos por ressaltar, a título de exemplificação, os seguintes
aspectos: a poeticidade, os neologismos e as marcas regionais. Aqui, cabe
esclarecer que estes não são os únicos aspectos linguísticos a merecer destaque
na obra. Optamos por eles apenas porque se tornaria extenuante a tentativa de
esgotar a análise de todos os recursos utilizados pelo autor.
Estilo
mesclado
Raymundo Netto escreve em prosa;
mas, em muitos momentos, a poesia invade o espaço narrativo e fragmentos
poéticos adornam a aridez das cenas, às vezes, cruéis expostas nas páginas do
livro. Iniciamos, pois, esta análise da linguagem, com alguns exemplos de
poeticidade nas narrativas. Destacamos, a princípio, como exemplos da
poeticidade, algumas ocorrências de usos de figuras de linguagem. Comecemos com
um sugestivo paradoxo: "... a exigir a presença dela em cada instante de
paz de nunca sequer alcançada.". Não passa despercebida a passagem que
traz o exemplo de personificação sinestésica: "... e o cheiro ensurdecedor
a não lhe deixar o corpo mesmo quando misturado ao suor." Também encanta a
antítese do seguinte fragmento: "As janelas da sua casa eram estreitadas
por grossas cortinas que coavam severamente as manhãs." Chama atenção a
musicalidade das aliterações no fragmento citado no final do conto
"Tragédia": "Vozes vizinhas vazavam vazias nas várzeas, nas
vilas, nos vales da vida..." e no seguinte: "As águas tomavam o
silvoso silêncio." Assim como chama a atenção também a seguinte passagem,
pela sequência de antítese e paradoxo: "A vida na Terra parece não ter
sentido sem a morte. A vida, eterno exercício de ter e perder; uma partida
constante; uma dor interminável de não ter fim.". Merece destaque a
catacrese: "Trazia, em ramalhete de palavras provavelmente colhidas
daquele coração enfraquecido,...". E, como último exemplo, a sugestiva
personificação da chuva em: "Desce logo a chuva cuspida em bicas, a
revolver a terra coberta inteira por castanholas."
Os neologismos também adornam
fartamente a escrita de Raymundo Netto: saudejavam; silhuetarem; jangadeava;
porfavores; dalicenças; malolhado; dançarinava; entrebraços; azulejavam;
admirante; tempotodotodotempo; nudice; pelamordedeus; madrugadeadas;
anoitecidas; amareladamente; brilholhares; doraguda; olhiagudos; janelavam;
dentre outros.
Considerações
finais
Por fim, a título de conclusão,
deixamos aqui como sugestão de leitura, embora seja difícil escolher, entre
tantas excelentes opções, os seguintes contos: "Os acangapebas",
"Gêmeas", "O circo", "O estandarte do coronel" e
"Cadeiras na calçada".
Porque estes, sem demérito para
os demais, são verdadeiras pérolas literárias. "Os acangapebas", não
só por ser o conto que nomeia o livro, mas pela beleza poética que contrasta
com a dureza cortante do conteúdo; "Gêmeas", porque é um dos contos
mais fortes e impressionantes do livro, de um realismo e crueza quase
insuportáveis; "O circo", porque através de uma personagem comum,
como um simples menino palhaço, figura provocadora do riso, somos quase levados
ao choro, mergulhados na densidade de uma vida marcada pela dor, pela tristeza
e por um dos traumas mais profundo que um ser humano poderia tolerar; "O
estandarte do coronel", por ser uma obra-prima representativa do estilo
tragicômico e "Cadeiras na calçada", último conto do livro, por ser
merecedor de estudo em separado. Além da riqueza da linguagem já destacada
aqui, este texto sensibiliza demais o leitor, principalmente àqueles que
vivenciaram esta experiência maravilhosa de ter assistido às rodas de cadeiras
na calçada. As personagens são tocantes, o relato é demasiadamente verossímil e
a intertextualidade musical com a canção Rosa, de Pixinguinha, confere ao texto
um lirismo indescritível.
FIQUE POR DENTRO
FIQUE POR DENTRO
O efeito
da linguagem regional na tessitura do texto
Há momentos em que a linguagem
regional irrompe o tecido do texto e confere graça e leveza às narrativas.
Nota-se que a linguagem erudita do contista abre espaço para a linguagem
popular do falante nordestino e isso ocorre de maneira natural, sutil. As linguagens
se mesclam nas frases dos contos criando um efeito surpresa na mente do leitor.
Os termos regionais aparecem naturalmente em determinadas situações, fazendo
resgate e registro valiosos de termos já quase perdidos em nossa memória. Além
disso, o emprego dessas palavras e expressões pode tocar emocionalmente o
leitor cuja vivência se reporte ao sertão nordestino. São palavras ouvidas dos
nossos avós, pais, e que compõem a nossa memória linguística ancestral. São
exemplos disso: "De novo pai? Bora, a mãe tá chamando...";
"leriado"; "xaninho"; "miolo de pote";
"carocim d´água"; "de primeiro"; "Amor? Ôxe! Por que
não?"; "Antes que o pior se abancasse."; "Tomara que seus
dentes caíam tudim."; "...virada na peste, a sua rotina..." e
outros.
FRASES
"O
conto é, pois, conto, quando as ações são apresentadas de um modo diferente das
apresentadas no romance: ou porque a ação é inerentemente curta, ou porque o
autor escolheu omitir algumas de suas partes". Nádia Gotilib. Ensaísta.
TEXTO I
“Tão
jovem, magra, tez branca lunar, olhos agudos de infinito...”; “Sabiam-lhe pelas
vestes e pelo estado físico, sem posses...”; “... não queria ver ninguém. era
doído mostrar um sorriso de aparência...”; “a mulher trêmula, larga e
apática...”; “Em andrajos, como filhos de deus, espíritos rotos comiam a
bolacha salgada aos goles d'água.”; “Na cabina, uma criança dorme na rede
dependurada a balançar pelas últimas forças e suor daquela mãe sem descanso nem
peito”.
*Colaboradora do Diário do Nordeste, Professora da Unifor.
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