I
Considerado
o personagem mais influente da História do Brasil no começo do século XIX, José
Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) foi figura-chave nas tratativas
políticas que levaram à separação do Brasil de Portugal em 1822, a ponto de
hoje ser mais conhecido como o Patriarca da Independência. Filho de uma família
oligarca estabelecida na vila de Santos, teve educação esmerada e alcançou em
Portugal postos que poucas pessoas nascidas no Reino alcançaram, antes de
retornar ao Brasil disposto a gozar de uma merecida aposentadoria, plano que
teve de adiar depois de engolfado pelos acontecimentos que se sucediam à grande
velocidade, primeiro na capitania de São Paulo, e depois na Corte, no Rio de
Janeiro.
É
essa brilhante trajetória que a professora Miriam Dolhnikoff reconstrói em José Bonifácio, 12º livro da Coleção
Perfis Brasileiros da Companhia das Letras, depois de consulta às principais
obras impressas que reúnem não só os discursos e papéis soltos do influente
brasileiro como aquelas que mais recentemente serviram para jorrar mais à luz
ao contexto histórico em que se deu a independência brasileira. Embora tenha
sido membro da Academia das Ciências de Lisboa, José Bonifácio escreveu poucos
livros, um de poesia, quando no exílio, e obras técnicas.
Mas,
ao contrário dos políticos brasileiros de hoje – em boa parte, iletrados e até
mesmo apedeutas –, preparou-se a vida inteira para ocupar postos importantes no
reino luso-brasileiro. Mineralogista, foi um homem de seu tempo, ou seja, um
cientista que, como era habitual na época, transitava pelos vários ramos do
saber. Por isso, além de estudar as matérias de sua especialidade, lia
vorazmente autores clássicos e contemporâneos de filosofia, história, política
e economia, como assinala a sua biógrafa.
II
Depois
de enviado pela família para estudar em Coimbra, José Bonifácio construiria sua
carreira no Reino, só retornando ao Brasil na idade madura. Em 1804, aos 41
anos, já se considerava desiludido com os rumos de Portugal e do Brasil, sem
poder colocar em prática os conhecimentos que obtivera em viagens de estudos
pela Europa pagas pelo próprio governo, por causa das redes burocráticas da
monarquia absolutista que impediam qualquer tentativa de modernização. Como
destaca Miriam Dolhnikoff, para ele, o problema não estava apenas no governo,
mas também no povo nos dois lados do Atlântico, que reputava vil e ignorante.
Foi o que deixou escrito. Também o anticlericalismo foi um aspecto marcante em
seu pensamento. Para ele, a Igreja era sinônimo de obscurantismo, dogmatismo e
atraso cultural. Sem contar que havia sido sempre um ponto de apoio para
aqueles que defendiam o regime da escravidão, sistema que considerava
responsável pelo atraso da colônia.
Parece
que a ideia de se dedicar ao seu sítio nos Outeirinhos, em Santos, era apenas
um discurso para o público externo, pois há documentos em que ele pleiteia do
governo a indicação para capitão-general e governador, primeiro, de Santa
Catarina e, depois de São Paulo, propósitos que nunca alcançou. Mas o melhor do
livro, obviamente, é a parte reservada a sua participação na separação. De início,
a historiadora lembra que, como pesquisas mais recentes já têm adiantado, a
proclamação da Independência não pode mais ser atribuída a uma possível
intenção das Cortes de recolonizar o Brasil. O que estava em jogo era o perfil
que teria a nova monarquia constitucional. De um lado, os americanos queriam
autonomia para defender seus interesses específicos, enquanto, de outro, os
portugueses queriam uma monarquia centralizada em Lisboa. Até porque estavam
cansados de viver como colônia da antiga colônia, como se lê no manifesto dos
rebeldes do Porto de fevereiro de 1821, exigindo o retorno de d. João a
Portugal.
A
autora mostra muito bem como José Bonifácio, três anos depois de fazer uma
eloquente defesa da monarquia absolutista, soube aderir à monarquia constitucional
e preconizar, ao mesmo tempo, um governo forte, a uma época em que a América
portuguesa podia seguir o caminho dos vizinhos espanhóis, cindindo-se em várias
nações sob governos republicanos. Em outras palavras: defendia poderes
suficientes nas mãos de D. Pedro I para “centralizar a União e prevenir
desordens”. Naturalmente, esses poderes acabariam por cair também em suas mãos,
já que seria o principal ministro do novo imperador. E deles se utilizou ao
dirigir um processo que privilegiava a mudança com ordem.
No
poder, para construir a nova nação, teria muito trabalho com a oposição
política, até mesmo por causa da personalidade dúbia de D. Pedro I. Contaria
com o apoio de seus irmãos, Antônio Carlos e Martim Francisco, e outros amigos
leais. Finalmente, D. Pedro I cederia à oposição, inconformada com os poderes
excessivos do ministro, estimulando a saída de José Bonifácio do governo. José
Bonifácio deixou escrito que sua queda teria sido articulada pelo próprio
imperador.
Os
acontecimentos iriam se agravar até que vieram o fechamento da Assembleia
Constituinte e a decretação da pena de deportação para alguns deputados, entre
eles os irmãos Andradas. Em novembro de 1823, José Bonifácio, Martim Francisco
e Antônio Carlos foram presos e condenados ao exílio.
III
Se
algo se pode acrescentar – o que não significa qualquer reparo à obra –, é para
ressaltar que a força política da família Andrada vinha desde o começo da
segunda metade do século XVIII e alcançou o seu auge, obviamente, às vésperas
de 1822, indo até 1823. Um exemplo é a atuação de Antônio Carlos, irmão de José
Bonifácio, que, como rebento da oligarquia, escapou de punições severas de que,
fosse ele filho de uma família mais humilde, nunca teria escapado.
É
de lembrar que Antônio Carlos e seu irmão Martim Francisco, enquanto José
Bonifácio permanecia em Lisboa, andaram às turras com o governador da capitania
de São Paulo, Franca e Horta. Em outubro de 1806, sendo Antônio Carlos juiz de
fora da vila de Santos, sua mãe Maria Bárbara pediu explicitamente ao príncipe
regente o afastamento do governador, acusando-o de ter prejudicado os negócios
de sua família. Depois, em 1811, quando já estava afastado do cargo de juiz de
fora, Antônio Carlos seria acusado de mandante do assassinato do comerciante
José Joaquim da Cunha. Quem fez a acusação foi a viúva, D. Bárbara Emília, que
assistira, em sua própria morada, em Santos, à morte do marido por embuçados
armados.
A
devassa aberta nada apurou contra Antônio Carlos, que a essa altura já estava
nomeado ouvidor da capitania de São Paulo. Mulher de posses, D. Bárbara
mudou-se para o Rio de Janeiro e pediu ao príncipe regente a abertura de nova
devassa, argumentando que a primeira havia sido um jogo de cartas marcadas.
Afinal, o novo juiz de fora, João Carlos Leal, responsável pelas investigações,
seria amigo de Antônio Carlos, tendo inclusive sido hóspede na casa do
antecessor. Já o ouvidor da capitania, Miguel Antônio de Azevedo Veiga, não
quis, a princípio, fazer a devassa, dando-se por suspeito porque iria julgar o
seu sucessor e só o fez depois que recebeu ordem régia. Haja esprit de corps...
Já
Antônio Carlos preferiu homiziar-se na freguesia de São Gonçalo da Praia Grande
de Niterói, valendo-se de suas ligações com os meios maçônicos. Nada ficaria
provado contra si, mas Antônio Carlos não assumiria o cargo de ouvidor. Ainda
assim, acabaria por ser indicado para auditor de guerra em São Paulo. Em 1815,
depois de injunções da família, seria nomeado ouvidor da comarca de Olinda, na
capitania de Pernambuco.
Dois
anos depois, no cargo, iria aderir a uma rebelião contra o governador e
capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro. Os revoltosos implantaram
um governo provisório, proclamando uma república de inspiração maçônica. No
entanto, 74 dias depois, o governo revolucionário entraria em crise e cairia,
depois do bloqueio do Recife por tropas enviadas do Rio de Janeiro. Antônio
Carlos foi preso e encaminhado para a Bahia. No cárcere, sofreria torturas.
Como defesa, alegaria que havia sido constrangido a aderir à sedição. Parece
que assim evitou o pior: os demais acusados seriam enforcados e teriam mãos e
cabeças decepadas.
Ficaria
preso na Bahia até 1821, quando foi libertado pelo governo imperial,
provavelmente por influência de José Bonifácio, que havia retornado de Portugal
ao final de 1819. E, em fevereiro de 1822, Antônio Carlos chegaria a Lisboa
como representante da província de São Paulo às Cortes. Como explicar tamanha
reviravolta na vida de um acusado de sedição? Só mesmo o poder e a influência
de sua família e, mais especificamente, de seu irmão poderiam oferecer uma
explicação plausível, já que para os rebentos da oligarquia tudo – ou quase
tudo – seria permitido. Ou pelo menos para alguns desses rebentos. Guardadas as
devidas distâncias e circunstâncias, ainda hoje é assim.
Infelizmente,
o perfil de José Bonifácio traçado por Miriam Dolhnikoff pouco acrescenta a
esse episódio. Por isso, fica aqui a sugestão para algum pesquisador que esteja
disposto a vasculhar os documentos da época e aprofundar a questão. As
informações que este articulista colocou aqui neste tópico foram tiradas de
documentos manuscritos da capitania de São Paulo do Arquivo Histórico
Ultramarino (AHU), de Lisboa, que também podem ser encontrados em microfilmes e
CD-Rom no Arquivo do Estado de São Paulo (AESP).
IV
Miriam
Dolhnikoff , formada em Direito e História pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC), de São Paulo, é mestre e doutora em História Econômica pela
Universidade de São Paulo (USP), onde é professora. Pesquisadora do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), é autora de O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil (São Paulo,
Editora Globo, 2005) e organizadora dos textos de José Bonifácio de Andrada e
Silva reunidos em Projetos para o Brasil
(1998), publicado pela Companhia das Letras.
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José Bonifácio,
de Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras, 360 págs., R$ 44,50,
2012. Site: www.companhiadasletras.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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