No
poema longo que estou escrevendo, exalto o momento, perdido nos tempos, em que
o homem descobriu que o equivalente às palavras água e pedra faziam-no rever, mentalmente, água e pedra. Esse, no meu entender, é o fenômeno mais
estupendo do ser humano, justamente aquele que deu origem à literatura.
Veja o detalhe cinematográfico da Eneida de Virgílio, na cena em que a mãe
de Euríalo sabe da morte do filho:
Caiu-lhe da mão a lançadeira e desenrolaram-se
os fios.
Cinema puro.
E este trecho de Carlos
Trigueiro, no conto “Anjo Exterminador”, de Confissões
de um Anjo da Guarda:
Correu morro
abaixo, saltou vala, valeta, pulou muro, mureta, macumba, despacho, farofa,
vela de sete dias, garrafa de cachaça, cachorro, gato preto, pinto no lixo,
gaiola de curió, pardal esfomeado, arco de barril, virou ali, acolá, subiu,
desceu, atalhou, e correu, correu, correu ...
E olha este trecho
extremamente visual do Carnavalha, de
Nilto Maciel:
Eram borboletas de muitas
cores, que ora se transformavam em flores, ora em ovelhas. O rapaz tocava nas
flores. Esvoaçavam letrinhas, formando palavras: vermelho, azul, amarelo,
verde. Passava a mão no pelo das ovelhas e dele saltavam outras palavras: pelo,
maciez, brancura.
Ocorre que todo escritor trabalha com esse
fenômeno, fazendo com que as palavras produzam imagens virtuais no leitor, na
mente que se torna, evidentemente, tela de cinema com tecnologia superior a
tudo que se conseguiu, até agora, na área. Aí, quando o livro se torna filme,
frequentemente o resultado apresenta uma perda, pois o meio, agora, é menor.
Imagine meu choque, por exemplo, quando, bastante jovem, vi o esguio Henry
Fonda no papel de Pedro Bezukov, que eu vira Tolstoi descrever, em Guerra e Paz, como “rapaz gordo,
corpulento, de cabelos rentes, óculos, calças claras à moda do dia”.
Permaneceram dele, apenas, calças e óculos. Mas Audrey Hepburn caiu como uma
luva na personagem ágil e magrinha que me parece a mais deliciosa da literatura
universal: Natasha, com seus grandes olhos e “vivacidade extraordinária”. E me
lembro de que eu disse, ao saber que O
Poderoso Chefão – que eu acabara de ler –
iria ser filmado: “Don Corleone tem de ser Marlon Brando!” E acertei. Mas isso
é raro. O geral é termos a mesma desilusão de quando vemos Anthony Hopkins
fazendo Nixon ou Picasso: não bate. Mesmo com dentes falsos para um, cabeça
raspada para outro.
A verdade é que
vamos ao cinema rever uma Capitu e um
Quixote, um Jean Valjean, Gatsby, D’Artagnan, Chicó ou Madame Bovary. O calvo
Yul Brynner foi ótimo como o Ramsés de Os
Dez Mandamentos, péssimo como Dmitri Karamazov. Peter O’Toole me convenceu
como Quixote, mas sua Dulcineia jamais poderia ser Sophia Loren, a não ser na
imaginação dele. Sábio foi Luchino Visconti que, ao adaptar Morte em Veneza, fez com que o
personagem Gustav Aschenbach, escritor, voltasse a ser o compositor homossexual
que Thomas Mann fora buscar na vida real em Gustav Mahler. Mais sábio ainda é quem faz cinema de autor,
criando ele próprio o romance de que sairá sua estória. O cinéfilo, aí, não
terá comparações a fazer.
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