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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Literatura é cinema implícito (W. J. Solha)





           No poema longo que estou escrevendo, exalto o momento, perdido nos tempos, em que o homem descobriu que o equivalente às palavras água e pedra faziam-no rever, mentalmente, água e pedra.  Esse, no meu entender, é o fenômeno mais estupendo do ser humano, justamente aquele que deu origem à literatura.
           
            Veja o detalhe cinematográfico da Eneida de Virgílio, na cena em que a mãe de Euríalo sabe da morte do filho:
Caiu-lhe da mão a lançadeira e desenrolaram-se os fios.    
Cinema puro.
E este trecho de Carlos Trigueiro, no conto “Anjo Exterminador”, de Confissões de um Anjo da Guarda:
Correu morro abaixo, saltou vala, valeta, pulou muro, mureta, macumba, despacho, farofa, vela de sete dias, garrafa de cachaça, cachorro, gato preto, pinto no lixo, gaiola de curió, pardal esfomeado, arco de barril, virou ali, acolá, subiu, desceu, atalhou, e correu, correu, correu ...
E olha este trecho extremamente visual do Carnavalha, de Nilto Maciel:
Eram borboletas de muitas cores, que ora se transformavam em flores, ora em ovelhas. O rapaz tocava nas flores. Esvoaçavam letrinhas, formando palavras: vermelho, azul, amarelo, verde. Passava a mão no pelo das ovelhas e dele saltavam outras palavras: pelo, maciez, brancura.  
Ocorre que todo escritor trabalha com esse fenômeno, fazendo com que as palavras produzam imagens virtuais no leitor, na mente que se torna, evidentemente, tela de cinema com tecnologia superior a tudo que se conseguiu, até agora, na área. Aí, quando o livro se torna filme, frequentemente o resultado apresenta uma perda, pois o meio, agora, é menor. Imagine meu choque, por exemplo, quando, bastante jovem, vi o esguio Henry Fonda no papel de Pedro Bezukov, que eu vira Tolstoi descrever, em Guerra e Paz, como “rapaz gordo, corpulento, de cabelos rentes, óculos, calças claras à moda do dia”. Permaneceram dele, apenas, calças e óculos. Mas Audrey Hepburn caiu como uma luva na personagem ágil e magrinha que me parece a mais deliciosa da literatura universal: Natasha, com seus grandes olhos e “vivacidade extraordinária”. E me lembro de que eu disse, ao saber que O Poderoso Chefão – que eu acabara de ler iria ser filmado: “Don Corleone tem de ser Marlon Brando!” E acertei. Mas isso é raro. O geral é termos a mesma desilusão de quando vemos Anthony Hopkins fazendo Nixon ou Picasso: não bate. Mesmo com dentes falsos para um, cabeça raspada para outro.
A verdade é que vamos ao cinema rever uma Capitu e um Quixote, um Jean Valjean, Gatsby, D’Artagnan, Chicó ou Madame Bovary. O calvo Yul Brynner foi ótimo como o Ramsés de Os Dez Mandamentos, péssimo como Dmitri Karamazov. Peter O’Toole me convenceu como Quixote, mas sua Dulcineia jamais poderia ser Sophia Loren, a não ser na imaginação dele. Sábio foi Luchino Visconti que, ao adaptar Morte em Veneza, fez com que o personagem Gustav Aschenbach, escritor, voltasse a ser o compositor homossexual que Thomas Mann fora buscar na vida real em Gustav Mahler.  Mais sábio ainda é quem faz cinema de autor, criando ele próprio o romance de que sairá sua estória. O cinéfilo, aí, não terá comparações a fazer.

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