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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Vargas Llosa em tarde de torta de morango (Nilto Maciel)



Para comentarmos a nova publicação de Rinaldo de Fernandes convidei Camila Peçanha. Lida a última entrevista (concedida a Linaldo Guedes), fiz o pedido. Quanto tempo o senhor me dá? No terceiro dia, telefonou: Estou pronta. Então venha hoje. Chegou às 14 horas em ponto, do mesmo jeitinho das outras vezes: escarlates lábios de princesa em sonho, olhos de pirilampo em voo incerto, caderninho recheado de estrelas. Como de costume, falamos primeiro de nós mesmos. Só uma preguiça na parte da tarde. Coisa da idade. E você tem varado esta cidade? Nem tanto. Logo fui buscar Vargas Llosa – Um Prêmio Nobel em Canudos (Rio de Janeiro: Garamond, 2012). No corredor, por um triz não me choquei com Dora. Segredei-lhe: Você preparou a torta? De volta à sala, encontrei Camila a folhear Os Buddenbrooks, que ando a reler desde semana passada. Que achou do título? Fechou, sem pressa, o intenso Thomas Mann. Parecia ter se preparado para a pergunta: Vejo como uma fraude. Tomei um susto. Não esperava ouvir aquilo. Calma, Camilinha. Não seja cruel com meu amigo. Acomodou-se no sofá: Posso explicar? Pode. E explicou, pausadamente: Não sei de quem terá sido a ideia mercantilista (afinal, livro é mercadoria) do título. Pois, na verdade, pouco há do escritor peruano nesse conjunto de artigos e ensaios. Saí em defesa de Rinaldo, do editor ou do título. Minha querida, o uso de título como chamariz não é novidade. Há tempos li um compêndio volumoso (o título A vida sexual de Jesus me chamou a atenção), ávido de saber os segredos daquele que é tido como deus por milhões de pessoas. Das mais de 500 páginas, apenas duas ou três se referem ao comportamento libidinoso do suposto filho de Maria e José. As demais se referem aos Herodes, Roma, Jerusalém, Madalena, o casamento entre os hebreus, as seitas religiosas, os essênios, as supostas andanças de Jesus pelo mundo, etc.

            O impresso de Rinaldo tem dois textos curtos que podem se relacionar a Vargas Llosa: “Os sertões: diagnóstico da formação da sociedade brasileira” e “Quase biografia de Euclides da Cunha”. Ambos são apresentados como espécie de preâmbulo do estudo “Vargas Llosa – um Prêmio Nobel em Canudos (O romance La guerra del fin del mundo)”, composto de 17 páginas, e de “Os sertões na leitura de Vargas Llosa: quatro personagens de La guerra del fin del mundo”, com 24 páginas.

A estudante aproveitou os meus números para defender a tese da impropriedade do título: O tomo tem quase 280 páginas. Ou seja, 240 se referem a outros temas. Dei o assunto por encerrado e falei de minha gratidão a Rinaldo, que tem sido um bom crítico de minha ficção. Basta ver “O conto brasileiro do século 21”. Além disso, me convidou para integrar duas antologias nacionais: Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte e Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa.

À porta que separa a sala de estar da sala de refeições apareceu Dora. Percebi com o rabo do olho. Queria saber se estava na hora de servir a merenda. Fiz um gesto com o lábio inferior. (Temos o nosso código de comunicação). Levantei-me do assento: Está na hora de alimentarmos o outro lado da alma. A mocinha espiou para mim, espantada. Vamos à sala de refeições?
  
Enquanto Dora nos servia, voltamos ao objeto de nossa reunião. Pus-me a falar: Rinaldo de Fernandes é um estudioso da literatura, tanto a nacional, como a de outros países. Além do exame do conto brasileiro (com 24 páginas) e dos dois artigos a respeito de Euclides da Cunha, a coletânea apresenta os seguintes escritos relacionados à nova (ou mais recente) literatura brasileira: “Três romances brasileiros contemporâneos: Um amor anarquista, Nhô Guimarães e Lunaris”; “José Lins do Rego – aspectos da obra, considerações da crítica”; “São Bernardo: a reificação de Paulo Honório revisitada”; dois textos menores: “Quem determina o que é a literatura brasileira contemporânea” e “O escritor nordestino e o mercado editorial”. Há ainda Machado de Assis, Ferreira Gullar e a literatura paraibana. Completam o ciclo cinco análises da poesia e da prosa de Chico Buarque, uma das paixões de Rinaldo. São estudos sérios, porém sem aquele ranço professoral (ele que é também professor de literatura).

Enquanto degustávamos torta de morango com suco de graviola, sob os olhares concupiscentes de Dora, falávamos, sem parar, das lições de Rinaldo. Lembrei o lado estrangeiro da coletânea. Além de Vargas Llosa, o ensaísta se dedicou a outros latino-americanos: Cortázar (breve passeio pelo conto “Bestiário”), García Márquez (a respeito de Memórias de minhas putas tristes) e diversos ficcionistas, em “O surgimento e a evolução do romance histórico na América Latina” (originalmente inserto na tese de doutorado que deu origem aos dois estudos relativos ao romancista peruano).

Fiz uma pausa para me recompor (a garganta anda em frangalhos). A visita aproveitou meu silêncio para elogiar o ensaio de abertura do volume. Essencial para se conhecer o novo conto brasileiro. E leu um trecho: “Não apareceu ainda o grande romancista ou o grande poeta, aquele autor que de alguma forma desestabiliza, que traz algo de impacto, com cara de novo. Parece-me que os dois últimos grandes romances brasileiros são Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e A Festa, de Ivan Ângelo, ambos da década de 70”.

Não sou leitor de bibliotecas imensas, desconheço a maioria das pérolas mais admiradas da literatura brasileira e não me candidato a discutir esta matéria, nem com o mais ingênuo estudante. Entretanto, ouso fazer o elogio de alguns romances brasileiros publicados a partir dos anos 1970 (ou um pouco antes): Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna; A hora dos ruminantes, de José J. Veiga; Parabélum, de Gilmar de Carvalho; A cachoeira das eras, de Carlos Emílio Correa Lima, para citar apenas quatro. A menina me espreitava: Nunca ouvi falar de nenhum deles. Uma pena! Não conhece Ariano? Conheço, sim, mas só pela televisão. Eu me referia ao romance dele e não a ele.

Ao fim da tarde, Camila deve ter vislumbrado algum cansaço em minhas retinas e anunciou: Já vou. Eu quis impedir aquilo: Está cedo. Dora apareceu de novo à porta. Ocorreu-me um jeito educado de conter a futura escritora: Aceita água? Aceitou. Enquanto sorvia, com lentidão, o líquido, eu contemplava seus dentes muito firmes e brancos, tão reluzentes que me pareceu ver neles um sol a ofuscar o mundo, um clarão vermelho como se um vulcão se abrisse ante meus olhos (seria a língua?) e um convite à mais dionisíaca tentação. Fechei a vista e recebi dela o copo. Mirei, triste e só, meus dois amigos daquela tarde, Thomas e Rinaldo. E ela partiu feito pirilampo em noite nunca havida.
Fortaleza, 29 de novembro de 2012. 
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