Para
comentarmos a nova publicação de Rinaldo de Fernandes convidei Camila Peçanha.
Lida a última entrevista (concedida a Linaldo Guedes), fiz o pedido. Quanto
tempo o senhor me dá? No terceiro dia, telefonou: Estou pronta. Então venha
hoje. Chegou às 14 horas em ponto, do mesmo jeitinho das outras vezes: escarlates
lábios de princesa em sonho, olhos de pirilampo em voo incerto, caderninho recheado
de estrelas. Como de costume, falamos primeiro de nós mesmos. Só uma preguiça
na parte da tarde. Coisa da idade. E você tem varado esta cidade? Nem tanto. Logo
fui buscar Vargas Llosa – Um Prêmio Nobel
em Canudos (Rio de Janeiro: Garamond, 2012). No corredor, por um triz não
me choquei com Dora. Segredei-lhe: Você preparou a torta? De volta à sala,
encontrei Camila a folhear Os Buddenbrooks,
que ando a reler desde semana passada. Que achou do título? Fechou, sem pressa,
o intenso Thomas Mann. Parecia ter se preparado para a pergunta: Vejo como uma fraude.
Tomei um susto. Não esperava ouvir aquilo. Calma, Camilinha. Não seja cruel com
meu amigo. Acomodou-se no sofá: Posso explicar? Pode. E explicou, pausadamente:
Não sei de quem terá sido a ideia mercantilista (afinal, livro é mercadoria) do
título. Pois, na verdade, pouco há do escritor peruano nesse conjunto de
artigos e ensaios. Saí em defesa de Rinaldo, do editor ou do título. Minha
querida, o uso de título como chamariz não é novidade. Há tempos li um compêndio
volumoso (o título A vida sexual de Jesus
me chamou a atenção), ávido de saber os segredos daquele que é tido como deus
por milhões de pessoas. Das mais de 500 páginas, apenas duas ou três se referem
ao comportamento libidinoso do suposto filho de Maria e José. As demais se
referem aos Herodes, Roma, Jerusalém, Madalena, o casamento entre os hebreus,
as seitas religiosas, os essênios, as supostas andanças de Jesus pelo mundo,
etc.
O impresso
de Rinaldo tem dois textos curtos que podem se relacionar a Vargas Llosa: “Os sertões: diagnóstico da formação da
sociedade brasileira” e “Quase biografia de Euclides da Cunha”. Ambos são
apresentados como espécie de preâmbulo do estudo “Vargas Llosa – um Prêmio
Nobel em Canudos (O romance La guerra del
fin del mundo)”, composto de 17 páginas, e de “Os sertões na leitura de Vargas Llosa: quatro personagens de La guerra del fin del mundo”, com 24
páginas.
A
estudante aproveitou os meus números para defender a tese da impropriedade do
título: O tomo tem quase 280 páginas. Ou seja, 240 se referem a outros temas.
Dei o assunto por encerrado e falei de minha gratidão a Rinaldo, que tem sido
um bom crítico de minha ficção. Basta ver “O conto brasileiro do século 21”.
Além disso, me convidou para integrar duas antologias nacionais: Capitu mandou flores: contos para Machado de
Assis nos cem anos de sua morte e
Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa.
À porta
que separa a sala de estar da sala de refeições apareceu Dora. Percebi com o
rabo do olho. Queria saber se estava na hora de servir a merenda. Fiz um gesto
com o lábio inferior. (Temos o nosso código de comunicação). Levantei-me do
assento: Está na hora de alimentarmos o outro lado da alma. A mocinha espiou
para mim, espantada. Vamos à sala de refeições?
Enquanto Dora nos servia, voltamos ao objeto
de nossa reunião. Pus-me a falar: Rinaldo de Fernandes é um estudioso da
literatura, tanto a nacional, como a de outros países. Além do exame do conto
brasileiro (com 24 páginas) e dos dois artigos a respeito de Euclides da Cunha,
a coletânea apresenta os seguintes escritos relacionados à nova (ou mais
recente) literatura brasileira: “Três romances brasileiros contemporâneos: Um amor anarquista, Nhô Guimarães e Lunaris”; “José Lins do Rego – aspectos
da obra, considerações da crítica”; “São
Bernardo: a reificação de Paulo Honório revisitada”; dois textos menores:
“Quem determina o que é a literatura brasileira contemporânea” e “O escritor
nordestino e o mercado editorial”. Há ainda Machado de Assis, Ferreira Gullar e
a literatura paraibana. Completam o ciclo cinco análises da poesia e da prosa
de Chico Buarque, uma das paixões de Rinaldo. São estudos sérios, porém sem
aquele ranço professoral (ele que é também professor de literatura).
Enquanto
degustávamos torta de morango com suco de graviola, sob os olhares concupiscentes
de Dora, falávamos, sem parar, das lições de Rinaldo. Lembrei o lado
estrangeiro da coletânea. Além de Vargas Llosa, o ensaísta se dedicou a outros
latino-americanos: Cortázar (breve passeio pelo conto “Bestiário”), García
Márquez (a respeito de Memórias de minhas
putas tristes) e diversos ficcionistas, em “O surgimento e a evolução do
romance histórico na América Latina” (originalmente inserto na tese de
doutorado que deu origem aos dois estudos relativos ao romancista peruano).
Fiz uma
pausa para me recompor (a garganta anda em frangalhos). A visita aproveitou meu
silêncio para elogiar o ensaio de abertura do volume. Essencial para se
conhecer o novo conto brasileiro. E leu um trecho: “Não apareceu ainda o grande
romancista ou o grande poeta, aquele autor que de alguma forma desestabiliza,
que traz algo de impacto, com cara de novo. Parece-me que os dois últimos
grandes romances brasileiros são Zero,
de Ignácio de Loyola Brandão, e A Festa,
de Ivan Ângelo, ambos da década de 70”.
Não sou
leitor de bibliotecas imensas, desconheço a maioria das pérolas mais admiradas da
literatura brasileira e não me candidato a discutir esta matéria, nem com o
mais ingênuo estudante. Entretanto, ouso fazer o elogio de alguns romances
brasileiros publicados a partir dos anos 1970 (ou um pouco antes): Romance
d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna; A hora dos ruminantes, de José J. Veiga;
Parabélum, de Gilmar de Carvalho; A cachoeira das eras, de Carlos Emílio
Correa Lima, para citar apenas quatro. A menina me espreitava: Nunca ouvi falar
de nenhum deles. Uma pena! Não conhece Ariano? Conheço, sim, mas só pela televisão.
Eu me referia ao romance dele e não a ele.
Ao fim
da tarde, Camila deve ter vislumbrado algum cansaço em minhas retinas e
anunciou: Já vou. Eu quis impedir aquilo: Está cedo. Dora apareceu de novo à
porta. Ocorreu-me um jeito educado de conter a futura escritora: Aceita água?
Aceitou. Enquanto sorvia, com lentidão, o líquido, eu contemplava seus dentes
muito firmes e brancos, tão reluzentes que me pareceu ver neles um sol a ofuscar
o mundo, um clarão vermelho como se um vulcão se abrisse ante meus olhos (seria
a língua?) e um convite à mais dionisíaca tentação. Fechei a vista e recebi
dela o copo. Mirei, triste e só, meus dois amigos daquela tarde, Thomas e
Rinaldo. E ela partiu feito pirilampo em noite nunca havida.
Fortaleza,
29 de novembro de 2012.
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