“... o
que não se fala simplesmente não existe.” (Marília Arnaud)
Numa
primeira leitura, é possível lançar mão da ideia de que o mais novo romance de
Marília Arnoud tem, em sua base narrativa, um tripé que constitui a arquitetura
e dá sustentação a um enredo admiravelmente equilibrado, deixando o leitor
impactado com a capacidade da narradora de compor, com palavras, a sua Suíte de silêncios.
Esse
tripé, formado por pares aparentemente contraditórios, porém harmonizados –
palavra/silêncio; memória/esquecimento; infância/velhice –, parece representar
Mnemosyne (divindade do panteão grego responsável pela guarda das recordações,
ou seja, a recordadora), pois, na impossibilidade de ser ouvida, é que Duína
apresenta as suas ações recordativas: “Desde cedo aprendi que calar pode ser
uma maneira de enfrentar realidades delicadas, nunca completamente
compreensíveis. Desde cedo aprendi a pelejar com esses escuros que carrego
comigo, porões entulhados de perguntas sem respostas, de sentimentos que ardem
como feridas.” (p. 155).
No
centro da questão que perpassa todo o enredo e que dá encaminhamento à
preservação dessas recordações/lembranças, encontra-se um ensaio sobre o
abandono. Trata-se da história da menina Duína que, mesmo na velhice, quando
narra sua vida, ainda tem nove anos, momento em que começa a vivenciar alguns
sucessivos abandonos, emoldurados por segredos de águas vivificantes de amor,
represadas pela vigília daquilo que aparentemente não deseja, mas também não
pode esquecer: “...– seriam minhas entranhas banhadas por um oceano? –,
fazendo-me desabar num precipício de curtos-circuitos que me conduziam para
longe, para um espaço onde eu me afogava – choveria dentro de mim? –, onde não
havia nada nem ninguém, onde o tempo parava e o mundo inteiro deixava de
existir.” (p. 175).
A
sugestão de uma presença interlocutória arremata a intensidade desse abandono.
A narradora fala diretamente para seu amor João Antônio. Por carta ou
mentalmente? O que importa é que a solidão persiste mesmo na presença desse
interlocutor. Escrevendo carta para o seu amor, Duína vez ou outra retoma a
possibilidade de que ele está ouvindo-a/lendo-a: ‘“Mas nenhum me olha como você
me olhava, vazios que estão de mim e do meu amor”. (p. 13) ou ainda: “Alguém –
quem mesmo? – falou que o amor é tudo aquilo que não se tem. Pois você é minha
mais permanente falta!”. (p. 97). E também por meio de interlocução mental,
próximo ao recurso do monólogo, que se dá quando a personagem-narradora adulta
volta a Pedra Santa, lugar onde supostamente vive João Antônio que passa a ser
perseguido pelo olhar/mente da narradora.
Interessante notar que perseguir as pessoas, sem que elas saibam que estão
sendo observadas, é a brincadeira mais apreciada pela Duína menina.
Narrar
é condição sine qua non de qualquer
romance, sabemos disso, mas em Suíte dos
silêncios, em especial, contar a sua história parece ser, para Duína, uma
questão, além de essencial, crucial: pelo recurso da metalinguagem, enuncia-se
a necessidade inevitável de se contar uma história, contação essa que
representa a própria narração escrita, já que falar contrariaria a força motriz
que dá sustentação ao enredo, o silêncio e a gama de lembranças que reclamam um
destino. Lembremos como se inicia o romance: “Não contaria esta história se
soubesse o que fazer com minhas lembranças, se fosse capaz de me livrar delas”
(p. 9).
O
romance de Marília Arnoud é do silêncio que se revela na voz narrativa e se
materializa na própria incapacidade de falar da narradora, ou que ela imagina
não ser capaz de falar. Questão de causalidade narrativa? Sim, pode ser. O
silêncio provém dos segredos irreveláveis; provém também do choque do abandono,
das cartas da mãe que nunca foram abertas, da ausência da música do pai,
linguagem mais intensificada para a menina Duína. O vazio causado pela falta da
mãe e das demais faltas vividas pela personagem é preenchido pela possibilidade
da presença de música, como contraponto ao silêncio, como tentativa de
escapatória daquele “nada” em que vai se constituindo a adolescência e a vida
adulta da narradora. Mas essa possibilidade é frustrada: o desejo da menina
Duína, estudante de violino, não se realiza na adulta musicista: “Que engano!
Enquanto a música corria nas artérias do meu pai, livre e obstinada como a
vida, em mim esteve sempre limitada a uma tentativa frustrada de aproximação da
verdade, de purgação de feridas, de busca de afeto e equilíbrio, de aceitação
de mim mesma – a música como uma possível resolução para meu desassossego, para
a minha angústia incessante feita de equívocos, indefinições e esperas; a
música como crença, pois sendo tão grande e tão indecifrável quanto Deus,
fazia-se, porém, mais próxima e menos inefável nos reconhecíveis olhos
desesperançados do meu pai”. (p. 144/145).
Tanto
pela via da memória quanto pela via do silêncio os segredos se substancializam,
na mente da narradora Duína: “Por que as pessoas estavam sempre esperando que
lhes dissesse algo, sempre querendo saber coisas, logo de mim, que confiava
tanto no silêncio? Por acaso não compreendiam que as palavras eram íntimas
demais? Que as palavras pertenciam aos segredos?” (p. 89).
Segredos,
abandonos, silêncios incorrem naquilo que falta à vida de Duína e que,
formalmente, se apresenta em medida certa na voz narrativa: tecnicamente
falando, nada sobra e nada falta nesse romance dos abandonos. O conteúdo se
ajusta à forma de maneira admirável. Sua arquitetura narrativa se sustenta num
enredo muito bem articulado por uma voz em primeira pessoa que ensaia seus
sucessivos abandonos e não abandona o leitor a certos mimetismos.
Se o
oposto da solidão e do abandono for a possibilidade de consumar o amor,
independente de seus matizes, de suas maneiras, então pode-se dizer que, para
além do abandono vivenciado por Duína à sua revelia, esta personagem também se
deixa abandonar e se entrega a esse abandono como principal mandamento da forma
romanesca que compõe. Noutras palavras, se se trata de um romance de falta, é
pela própria falta (vazio) que se compõe uma trama melódica, por onde perpassam
estruturas frasais extremamente líricas e imagéticas que ocupam os espaços dos
silêncios para compor sua suíte, de ausência de música, de ausência de peles,
de lembranças: “O esquecimento, meu amor, é um jogo, onde o único adversário é
você mesmo.” (p. 24).
(*Professora
de Língua Portuguesa e Literatura do IFPB)