Imprimi
uma relação de nomes e pus a folha sobre a mesa. Só de estudantes que me
visitam com frequência ou participam das aulas em minha oficina. Precisava de
três deles para um serviço: ler três publicações novas de prosa de ficção. De
olhos fechados, apontei o dedo para os nomes. O primeiro escolhido foi Luciano
de Barros, a quem coube Entre o elevador
e a praça, de Fáttima Britto. A Camila Peçanha ofereci A arte de afinar o silêncio, de Mariel Reis. Para Simone Farias reservei
A menina das flores, de Arine de
Mello Jr. Eles sabiam o que fazer: ler, com olho crítico, e, em dia com eles marcado,
comentar comigo as obras lidas. Ontem se realizou a sabatina. Chegaram cedo,
logo após o almoço. Eu examinava a primeira edição de Mundinha Panchico e o resto do pessoal, de Juarez Barroso. O rapaz
se interessou pelo impresso: “Já li e ouvi comentários a ele, mas nunca o vi”.
Podia levar, se quisesse. Porém, devolvesse logo, que tenho muito ciúme das
minhas pérolas. Camila quis se exibir: “Um dos melhores contistas cearenses do
século XX. Não é verdade, professor?” Dei opinião: Um dos melhores contistas
brasileiros. Simone não quis ficar para trás: “Melhor do que este aí é Joaquinho Gato”. Virou-se para mim, em busca de aprovação: “Ou não é?” Dei
resposta vaga. Deveríamos nos dedicar aos
escritores do dia.
Dei a
palavra ao jovem e me ajeitei na cadeira de balanço. Começou a exposição pela
ausência de diálogos em Fáttima Britto. “Não se vê um travessão. Também não
encontrei aspas e, muito menos, verbos declarativos”. Lembrei-lhe o início de “Voz
de soltura” (sem travessão, sem aspas, sem verbos de elocução): “Cala a boca,
filho da puta, que eu não nasci pra escutar desaforo de filhinho de papai
cheirando a leite de mamãe. É isso aí, ô panaca, você foi pego”. E opinei: “A
prosa de Fáttima segue uma linha nova (talvez não tão nova assim) da arte
literária. Evita os cacoetes herdados da novelística mais antiga e,
especialmente, do século XIX, excessivamente descritiva e repleta de lero-lero”.
Passados
uns vinte minutos, interrompi o discurso de Luciano. Necessitava ouvir Camila
Peçanha e vê-la folhear o caderninho de apontamentos. “Também fiz algumas
observações a esse respeito, quer dizer, a respeito de conversação de
personagens. Mariel segue rumo diverso do percorrido por Fáttima, pois, embora
não use os antiquados travessões, ainda chama a atenção do leitor para as vozes
dos seres fictícios, com aspas e verbos dicendi. Como em “A mensagem”. Um
trecho: “Gritava: ‘Aparece, filho da puta, aparece pra ver’. A advertência
dizia: ‘Maurinho, de hoje você não passa’”. (Aqui são usadas aspas simples,
porque entre aspas duplas).
A
preocupação de Luciano e Camila com aspectos secundários da dicção dos
contistas me deixava inquieto. Fazia-se indispensável analisar a maneira de
dizer de cada um, de modo mais abrangente. Deixei a exibida menina divagar por
mais uns minutos, até me exasperar: “Agora é a vez de Simone”. O rapaz se
encolheu no sofá, como se a ele eu tivesse me dirigido. A protegida de Batista
de Lima não se mostrou intimidada. Fechou o caderninho e fez deslizar a rubra
língua nos escarlates lábios. Senti um calafrio, mas me contive: “Simone, fique
à vontade”. Levantou a capa: “Vejam a dedicatória do autor: ‘Com admiração ao
grande Nilto Maciel, neste meu livro, a saga de Leontina e seu cão Alfredo. Do
amigo e leitor Arine de Mello Jr’. Muito chique”. Impossível não persistir no
tema da cavaqueira (vozes) em ficção. Pois Caio Porfírio Carneiro, um dos
mestres do conto brasileiro, assim se manifesta nas primeiras linhas da
apresentação: “A originalidade primeira deste livro nasce no plano formal.
Quase todo o texto é transposto para o campo das falas. O descritivo é mínimo,
e o narrativo se processa e segue em dialogação continuada”.
Depois
de meia hora de lengalenga, bati palmas e fiz o convite mais esperado de minhas
aulas: “Vamos merendar?” Os três se alegraram. Chamei Alice, ao vê-la de
relance entre a cozinha e a sala de refeições. “Que temos hoje?” “Torta de
marmelada e sucos de pêra e melancia”. Sentamo-nos à mesa. Simone tornou a se exprimir:
“Não sei se disse: A menina das flores
é romance”. Atulhamo-nos de bolo durante uns quinze minutos, ora calados, ora
em breves dizeres: “Está uma delícia”; “Quem fez?”; “Alice, você tem mãos de fada”.
De regresso à sala de conversação, encontrei Juarez Barroso a nos espiar. Tive
a impressão de entrever um risinho de galhofa no canto da página.
Voltemos
aos convidados de hoje. “Luciano, fale mais das composições de Fáttima Britto”.
O jovem deixou de lado o colóquio e alcançou o assunto dos relatos: “As
criaturas de O elevador e a praça são
gente de hoje, da cidade grande, da metrópole. Trabalhadores e vagabundos ou
excluídos da sociedade. Os chamados cachorros miúdos, os vira-latas. Seus
sofrimentos, seus vícios, seus dramas individuais, associados aos grandes
dramas sociais. Passadores de maconha e crack, putas finas, velhinhos safados, entes
em solidão, sofridos”. Pedi-lhe o volume e li, como ilustração: “Um dia dei-lhe
um tapa. Saiu seco, cortando meus olhos vermelhos de erva. Logo no dia da erva?
Não combinava. Erva na combinava com bater em velho indefeso, meio meu pai,
meio meu vô, meio meu amigo, meio meu filho, meio meu amante meio meu eu meio”.
Fiz uma pausa: “Realismo puro, porém sem o uso do dialeto chulo de alguns
prosadores de hoje”.
Observei
os números do relógio. Obrigava-me a dar a palavra a Camila. “Tem meia hora
para arrasar Mariel Reis. Ou para colocá-lo no pedestal dos grandes contistas”.
Riu: “Seguirei o conselho de meu professor Batista de Lima”. Passou as folhas
de Arte de afinar o silêncio. “E qual
é o conselho dele?” “O senhor sabe”. “Pois então o siga”. E se pôs a gesticular:
“A coleção de Mariel pode ser vista como um polígono regular de muitos lados.
Talvez um icoságono. Suas tragédias têm formas diversas e tratam de temas variados.
Vai ao morro carioca (realismo urbano), recorda a infância e a adolescência (de
personagens), chafurda no cotidiano das pessoas simples. Ora semelham crônicas
(“O santo”), ora são recriações de vultos da nossa literatura (Lima Barreto,
Marques Rebelo) e da estrangeira (Francis Ponge, Eliot, Valéry, Rimbaud), ora tramas
de variadas acepções (“Meu tio, o encantado”). Escritor multívago e competente”.
Não dispúnhamos de mais tempo. Sobre a mesinha, Juarez Barroso
me fez lembrar (não sei explicar a razão disso) “Joaquim Bralhador”, uma das
mais belas páginas da literatura brasileira: “Não tem rês ligeira para vaqueiro
bom e bem montado”. Não recitei a frase; apenas avisei: “Por hoje é só”. Simone
fez correr a língua ardente (como saberei disso?) nos lábios de mel (devem ser
doces como os de Iracema) e me pareceu insatisfeita.
Fortaleza, 8 de janeiro de 2013.