Kika
está no cinema, o filme terminou, Kika está se levantando para deixar a sala.
De repente, um objeto pesado lhe acerta o pé. Kika toma um susto, abaixa a
cabeça, confere o objeto. Um celular. Ela dá uma olhada ao redor, tentando
identificar quem o deixou cair. Mas as pessoas vão saindo todas ao mesmo tempo,
provocando um pequeno tumulto. Os créditos do filme ainda deslizam pela tela,
mas o interesse do público já está em outro lugar. No ambiente escuro, Kika
puxa a mãe pelo braço e informa sobre o celular.
–
Pode ser daquele rapaz de cabelos longos ali adiante – disse Kika.
–
Diego não viu nada? – quis saber Laura
–
Vi o quê? – questionou Diego
–
Sua irmã achou um celular.
–
Achou o quê?! – se espantou Diego.
–
Um celular, Diego, um celular, acabou de cair sobre os meus pés – afirmou Kika
com irritação.
Diego
propôs uma solução rápida, para que pudessem sair logo do cinema.
–
Se não sabemos a quem pertence, vamos levá-lo conosco.
Um
brilho surgiu no olhar de Kika. Imediatamente ela embolsou o celular. Laura não
disse nada, sinal de que concordou com a decisão. Eram duas da tarde. Todos
estavam morrendo de fome, foram direto para a praça de alimentação do shopping.
A
essa altura, o filme já não significava nada para as crianças. Bem, talvez elas
viessem a comentá-lo mais tarde, quando o pai pedisse detalhes sobre o que
tinham assistido. Por dinheiro algum ele abandonaria o seu monastério
particular do domingo para ver, ora essa, um blockbuster. Desse monastério
faziam parte um ótimo romance em estado avançado de leitura e uma boa
soneca.
Kika, Diego e Laura almoçaram uma
lasanha. Um assunto monopoliza sua atenção – o celular. Kika põe a mão na bolsa
e dá uma olhada no aparelho.
–
Mãe, não era melhor ter informado sobre a perda na portaria do cinema?
–
Ora, filha, e se eles ficassem com o
celular?
Havia
um misto de preocupação e fascínio na atitude de Kika. O celular deixou-a
hipnotizada. Bem, qualquer celular manteria uma garotinha de 11 anos naquele
estado. Mas esse era especial. Ele surgira do nada, de repente. Como se fosse
um presente. Agora estava bem ali na palma da sua mão. Por enquanto, pertencia
a ela. Ela o examinou mais uma vez, sem acreditar.
–
Mãe, será que o dono vai ligar?
Rodrigo
adorava o domingo. Aquele instante de suspensão das obrigações cotidianas, das
cobranças no escritório, dos compromissos – tudo se evaporava no domingo. Tudo
que ele queria era... Ele não queria nada. Apenas estar a quilômetros de
distância de qualquer tipo de problema. Ele abriu mais uma latinha de cerveja
com um estalo seco. Encheu metade do copo. Bebeu vagarosamente. Pela décima vez
naquele dia pensou em Isadora.
Não
existia antídoto melhor contra a monotonia da vida no escritório do que uma
grande paixão. Não uma paixão material, um carro, uma casa nova, a motivação
mais comum da classe média amorfa e ambiciosa. Mas uma paixão romântica, um
devaneio da alma. E da carne. Isadora representava essa conjunção perfeita.
A
buzina do carro soou lá fora, eles estavam de volta. Rodrigo pôs a latinha de
cerveja sobre a mesinha da sala de tevê.
– Já estou indo – ele disse, como se pudessem
ouvi-lo.
Em seguida, foi buscar as chaves do portão e saiu
arrastando as sandálias. Kika acenou, sorrindo para ele, quando o carro entrou
pelo portão e passou rente a sua perna. Kika foi a primeira a descer e veio
correndo mostrar-lhe o celular.
–
Veja o que achamos no cinema! – disse Kika, e foi logo contando toda a história
com muita excitação.
Rodrigo
ouviu tudo, com ar preocupado. Depois ele foi conversar com Laura. – Por que
você não entregou o celular na portaria do cinema? – gritou. – Meu Deus! Vão
pensar que vocês o roubaram! – ele disse, quase sem fôlego.
Laura
argumentou que os empregados do cinema poderiam ficar com o celular, e que seria mais prudente, portanto, trazer o
aparelho e esperar que o dono fizesse contato. Mas ela não convenceu Rodrigo.
Com sua imaginação de romancista, Rodrigo visualizou a cena toda. A essa altura,
o dono estava certo de que fora roubado, e devia estar tomando providências.
Que
providências seriam essas, ele não
sabia. Mas tinha certeza de que o seu sossego do domingo estava
irremediavelmente comprometido. Ele imaginou o telefone tocando, e do outro
lado da linha um dono truculento os ameaçando.
Laura
tentou tranquilizá-lo, sem muito sucesso. Ela, sim, estava calma, não via nada
demais em encontrar um celular no cinema e trazê-lo para casa. Errado seria
deixá-lo nas mãos de estranhos, mesmo que esses estranhos fossem os empregados
responsáveis pelo zelo e a segurança do cinema.
–
Meu Deus! – gritou Rodrigo, voltando à carga. – Vão dizer que vocês o roubaram!
Alheia
à discussão, Kika tinha ido para a sala e sentado no sofá. Com habilidade, ela
ficou manejando o celular, explorando cada tecla, cada possibilidade, como se
dessa forma pudesse descobrir a identidade do seu misterioso dono.
–
Achado não é roubado, meu bem! – Laura brincou. – O que ficou fazendo sozinho
esse tempo todo, hein? – ela disse, provocando Rodrigo, tentando envolvê-lo num
abraço.
Rodrigo
se desvencilhou e foi sentar-se ao lado de Kika. Ele parecia sinceramente
preocupado. Nascera numa família pobre, mas que jamais enfrentara qualquer tipo
de acusação de roubo ou algo assim. Roubo
era a palavra mágica que estava martelando sua consciência. Jamais se viu
metido em apuros dessa natureza.
–
Papai, será que o dono vai ligar? – Kika perguntou, enquanto dedilhava o
teclado do celular com um indubitável prazer.
O engenho
havia conseguido desviar sua atenção de várias manias. Uma delas era passar
horas na frente do computador, conversando com as amigas na internet. Ela
gostava também de pensar que era uma bailarina, e permanecia horas ensaiando os
passos de uma dança imaginária, diante do espelho.
Laura estava no quarto descansando. Usava uma blusa
curta que deixava aparecer os seios ainda duros, apesar de já ter passados dos
40. Um short apertava-lhe as coxas. Ela era mulher bonita. Pragmática, jamais
se deixava levar por fantasias. Mas, nos poucos momentos em que se surpreendia
pensando na vida, concluía que era feliz. De algum modo, as coisas se resolviam
– era sua máxima.
Da sala vinham bips ocasionais do celular, sinal de
que estava descarregando. Kika fora seduzida, estava claro. Não conseguia
largar o treco. Rodrigo lia na poltrona ao lado. Ele parecia um pouco mais
relaxado. Porém, advertiu Kika que não fizesse nada com o celular. Poderiam
dizer, se o recuperassem, que ela havia se aproveitado do telefone.
De repente, Kika deu um grito tão estridente que
assustou a todos. Diego, que ficara jogando no computador na sala ao lado,
correu para ver o que era. Laura levantou-se de um sobressalto. Kika anunciou
sua descoberta.
– Veja, tem uns vídeos no celular!
O primeiro vídeo mostrava os rostos de um jovem
casal. Ele, ou ela, segurava o celular, enquanto filmavam a si mesmos. Não
deveriam ter mais de 20 anos. Era óbvio que estavam num lugar com muito vento.
Seus cabelos se alvoroçavam. Eram bonitos e com ares de bem nascidos. Ele a
beijava na boca. Tudo não demorou mais de 15 segundos.
O vídeo seguinte era um pouco mais curto. A moça do
vídeo 1 andava de biquíni na beira da piscina, como se desfilasse para alguém.
E sorria. Uma visão que deixou Rodrigo excitado. O vídeo se interrompia
bruscamente com uma mão aparecendo na lente.
O terceiro vídeo mostrava o para-brisa de um carro
em movimento, filmado pelo lado de dentro. A câmera do celular fazia um travelling do lado esquerdo para o direito,
e do direito para o esquerdo. Alguém brincava com a câmera. Estava claro que,
seja lá quem estivesse filmando, não sabia como fazê-lo muito bem. Não foi
possível identificar em que local a filmagem fora realizada.
Esses três filmetes deixaram a mente de Kika em
ebulição. Era como se ela finalmente tivesse descoberto a identidade do dono do
celular. Mas é claro que faltavam ainda muitas pontas soltas pendentes de
solução para que o mistério fosse resolvido. Seria o casal dos filmes o dono do
celular? Ou seja, ele ou ela seria o dono? E quem seriam eles? E o que faziam?
E onde viviam, de fato? Sim, poderiam ser turistas de passagem pela cidade...
Laura conhecia a filha e sabia que ela não
conseguiria dormir naquela noite. Sim, ela não dormiria até que tivesse uma
resposta para todas aquelas questões.
– Mãe, será que o dono não vai ligar? – Kika
perguntou mais uma vez.
Será que ele (ou ela) não vai ligar? – foi o que se
perguntou também Rodrigo. Sem perceber, ele também estava se deixando envolver.
Da mesma maneira como estava soçobrando aos encantos de Isadora, a bela colega
de trabalho.
Um dia, quando ele completou 42 anos, surgiu na
empresa essa mulher de 22. Ela foi contratada como trainee. Da parte de Rodrigo, foi uma paixão à primeira vista. Ele jamais
cogitara em trair a esposa, não se achava particularmente vulnerável. Mas essas
coisas podem acontecer, não? Um dia, Isadora se ofereceu para uma carona,
Rodrigo não viu nada demais nisso. Deu a carona. E a gentileza voltou a se
repetir outras vezes. E um belo dia Rodrigo estava trepando com Isadora no
apartamento dela. Coisas da vida.
Kika dormiu com o celular na mão. Laura retirou o
aparelho da mão da filha, carinhosamente, e passou a mão nos seus cabelos. – A
minha pequena heroína deve estar cansada – Laura sussurrou para si mesma. Ela
acomodou Kika no sofá, pegou o celular e o deixou sobre uma mesa na sala de
estar.
– Será que não vão ligar? – ela pensou. – As
pessoas são tão apegadas aos seus celulares, por que não ligam para reclamá-lo?
– ela refletiu.
Laura caminhou até a cozinha, para preparar uma
sopa para o jantar. Sabia que iria enfrentar a resistência de Kika e Diego.
Eles não abririam mão de uma pizza, e ela não abriria mão de sua autoridade
materna. Um tanto mecanicamente, Laura começou a cortar o tomate, depois a
cebola. Em seguida, vieram os outros legumes. Abriu o freezer para retirar a
carne. Num pote de plástico, separou a massa da sopa. Diego apareceu na porta.
– Mãe, o dono do celular não vai ligar?
Laura suspirou, olhou para Diego procurando
dissuadi-lo a não pensar mais no assunto. Que pensasse na segunda-feira, dia de
aula e de compromissos. Mas como conseguir, se ela própria estava fixada
naquele celular? Como um engenho diminuto e silencioso podia monopolizar a
atenção de toda uma família? Um monte de coisas para fazer enquanto o domingo
não acabava, e lá estava ela com uma tolice daquelas na cabeça. – Quando o dono
vai ligar? – ela se surpreendeu questionando a si mesma.
Rodrigo deixou o livro de lado, acabara de ter uma
ideia. Será que não examinaram a caixa de mensagens do celular? Quem sabe não
haveria ali algum número gravado. Kika acabara de acordar. Rodrigo falou para
ela o que estava pensando. Kika demorou a aterrissar, mas acabou acordando de
vez. Adorou a idéia. Foram os dois até a sala. Rodrigo pegou o celular.
Vasculhou a caixa de mensagens. Não havia nada.
– Pai, quando será que vão ligar? – Kika indagou.
Rodrigo deu de ombros e saiu da sala. Kika voltou
para o sofá e foi brincar com o celular. Diego apareceu de repente, tomou o
celular de Kika e fugiu com ele. Kika o perseguiu, até que se deu por vencida.
Chorando, foi reclamar para a mãe.
Na cozinha, a sopa fumegava, um cheiro bom se
espalhava pela casa. Laura abandonou seu posto, por uns minutos, e foi
conversar com Diego. Tomou o celular e o guardou na gaveta do armário da sala
de estar. Ela pediu que as crianças fossem lavar as mãos. Avisou a Rodrigo que
a sopa estava pronta.
Laura pôs uma toalha limpa na mesa, arrumou os
pratos, pediu que todos se apressassem. Rodrigo pediu que esperasse um minuto,
estava num ponto eletrizante do livro. Diego trancou-se no banheiro e não ouviu
a mãe chamar. Kika foi até a gaveta, pegou o celular de volta e ficou olhando
para ele, distraída. Laura começou a pôr a sopa nos pratos lentamente. Kika
apareceu na porta. Olhou para os pratos na mesa, depois teclou um número
imaginário no celular. Repetiu o gesto.
– Mãe, já é noite, o dono não vai ligar?
– Sim, ele vai ligar logo, agora vá chamar seu pai
e seu irmão, a sopa está esfriando.
Rodrigo e Diego vieram para a cozinha. Kika chegou
logo em seguida, trazendo o celular com ela. Eles ficaram tomando a sopa em
silêncio.
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