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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Giacomo Joyce por Roberto Prym (Nilto Maciel)



(James Joyce)

O escritor e editor gaúcho Roberto Schmitt-Prym me presenteou exemplar de Giacomo Joyce (Porto Alegre: Ed. Bestiário, 2012), edição bilíngue (inglês/português), com 48 páginas numeradas. Se não contarmos a introdução e as notas, teremos 34. Dividido este número por dois, reduziremos o opúsculo a 17 páginas. Porém, em quase todas só há espaço preenchido na metade superior. Então, teremos apenas oito. Portanto, tem dimensões de conto curto. O tradutor opina a respeito disso: “Neste breve texto, claramente autobiográfico, que resiste a classificações, relato, poema em prosa, Joyce narra sua atração, um amor clandestino ou fantasia erótica por uma jovem judia, sua aluna em Trieste”.
             
           
          Na capa e na “introdução”, o leitor é informado, sucintamente, da autoria (James Joyce), da genealogia e da natureza do “livro” (obra). “O original, escrito a mão no verso e no anverso de oito folhas de papel protegidas pelas capas azuis de um caderno escolar tem escrito Giacomo Joyce na página de abertura, numa letra que não é a de James Joyce”.
             
            No mesmo parágrafo, Roberto Schmitt-Prym esclarece a origem da joia: “Escrito em 1914 na Itália, Giacomo Joyce foi editado pela primeira vez por seu biógrafo Richard Ellmann nos Estados Unidos em 1968”. Como se sabe, Dublinenses (Dubliners) também é de 1914. “Quando escreveu Giacomo Joyce, o autor tinha terminado o Retrato do artista quando jovem e planejava o Ulisses” (...). No conciso palimpsesto “já se percebe o surgimento do ‘monólogo interior’”.
            
           Completa-se, assim, a nota do tradutor: “A tradução procura, na medida do possível, manter a poesia da linguagem, a ambiguidade de algumas passagens, a repetição de palavras, a pontuação típica de Joyce, as pausas estruturais entre as partes, bem distintas, da obra (exatamente como no manuscrito), e os neologismos”.

O narrador-personagem (sem nome explícito) se manifesta pela primeira vez no princípio do terceiro parágrafo: “Lanço-me numa onda fácil de fala mansa:” (“I launch forth on an easy wave of tepid speech:”), depois da apresentação do segundo personagem (também não identificado por nome): “Ela usa monóculo” (...), “uma jovem de classe”.

Giacomo Joyce se afasta da narração tradicional, desde a primeira linha, ao se iniciar com uma frase ou um vocábulo interrogativo: “Quem?”. Na primeira nota se lê a explicação da identidade da pessoa a quem se referia o narrador: “Provavelmente Amalia Popper, aluna de Joyce em Trieste”. Segue-se a resposta (descrição pessoal): “Uma face pálida envolta em pesadas peles perfumadas”. Outras descrições da protagonista aparecem na página seguinte: “isolamento de sua raça” (“seclusion of her race”), que Roberto afirma ser judia (“A mesma expressão aparece em Ulisses”; Joyce via no povo judeu “semelhanças com os irlandeses no que se refere ao isolamento e perseguição”).

O relato é composto mais de descrições de seres, objetos, edificações, assim como de constatações, do que de narrações e falas: “Delicada oferta, delicada ofertante, delicada criança de veias azuis”; “Sob os arcos nas ruas escuras perto do rio os olhos das putas buscam fornicadores”. As narrações são mais descrições (“desairosa graça”) e constatações (“a égua conduzindo sua potranca”).

Esse modo de “contar” é o que se conhece como “monólogo interior”: o narrador transmite a si mesmo (porque não usa a voz) e ao leitor (porque o autor “transmite” a mensagem), e não a outros personagens, as suas impressões da realidade: “Saio apressado da tabacaria e chamo-a pelo nome. Ela se volta e se detém para ouvir minhas confusas palavras falando de lições, horas, lições, horas: e lentamente suas pálidas faces se iluminam de inflamada luz opalina; Calma, calma, não tenha medo!” (Sabe-se, então, que o descritor é professor).

O olho do narrador (como câmera) vai de um lado a outro, de ambiente fechado à praça pública: “Ela ergue os braços no afã de atar à nuca uma túnica de tule preta”. Capta até a sensualidade na pessoa examinada: “Desliza lenta sobre a bunda roliça de esbelta prata polida ao longo do rego, uma sombra de prata opaca... Dedos, frios e calmos e movendo... Um toque, um toque”. Como se o narrador andasse pela rua e comentasse os fatos, o movimento das pessoas, dos veículos: “A carruagem atravessa a enfiada de tendas de lona, os raios das rodas girando na claridade. Abram caminho!”.

O professor tem boa articulação verbal, conhece a literatura clássica, a Bíblia, latim e outras línguas. “Explico Shakespeare à dócil Trieste: Hamlet, ensino, muito afável com os simples e gentis é áspero apenas com Polônio”. Comenta a tragédia do gênio inglês. Mais adiante, alude a Dante Alighieri. E à própria ficção de Joyce: “Ela diz que, se O retrato do artista fosse franco apenas por amor à franqueza, teria perguntado por que eu lho dera para ler”. Depois é a vez de Ulisses.

A peça é uma alcatifa de fios de diversas tonalidades, espessuras, tamanhos e petrechos. Assim, há falas de personagens, descrições, narrações, observações, suposições, etc. Há até a exposição de uma cópula: “Seus olhos beberam meus pensamentos: e na mornez úmida e submissa de sua ingênua feminidade minha alma, dissolvendo-se, fluiu e verteu e inundou uma líquida e abundante semente... Agora que a possua quem quiser!...”.  Como se sabe, os pergaminhos de Joyce são plenos de intertextualidade, citações tomadas à literatura, colagens, ensaísmo ficcionalizado, metalinguagem. O leitor que trate de ser inteligente e sagaz ou se valha da exegese dos estudiosos, para entender certas frases e passagens ou mesmo o todo.

Para o principiante em leituras desse tipo, o epílogo soa como um final inesperado: “Envoy: Love me, love my umbrella” (do latim, umbella), assim traduzido: “Oferta: Me ame, ame ao menos o meu guarda-chuva”. Parece trecho de poema.  

O narrador (sempre confundido com o autor) transita por diversas linguagens. Apesar disso, Giacomo Joyce não se torna composição enigmática ou de difícil entendimento por leigos em História e idiomas. Bastam algumas notas explicativas, como as que apresentou Roberto Schmitt-Prym na parte final da publicação. E qualquer um estará apto a entender James Joyce.

Fortaleza, 1 a 3 de fevereiro de 2013.

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