(James Joyce)
O
escritor e editor gaúcho Roberto Schmitt-Prym me presenteou exemplar de Giacomo Joyce (Porto Alegre: Ed.
Bestiário, 2012), edição bilíngue (inglês/português), com 48 páginas numeradas.
Se não contarmos a introdução e as notas, teremos 34. Dividido este número por
dois, reduziremos o opúsculo a 17 páginas. Porém, em quase todas só há espaço
preenchido na metade superior. Então, teremos apenas oito. Portanto, tem
dimensões de conto curto. O tradutor opina a respeito disso: “Neste breve
texto, claramente autobiográfico, que resiste a classificações, relato, poema
em prosa, Joyce narra sua atração, um amor clandestino ou fantasia erótica por
uma jovem judia, sua aluna em Trieste”.
Na capa e na “introdução”, o leitor é informado,
sucintamente, da autoria (James Joyce), da genealogia e da natureza do “livro”
(obra). “O original, escrito a mão no verso e no anverso de oito folhas de
papel protegidas pelas capas azuis de um caderno escolar tem escrito Giacomo Joyce na página de abertura,
numa letra que não é a de James Joyce”.
No mesmo parágrafo, Roberto Schmitt-Prym esclarece a
origem da joia: “Escrito em 1914 na Itália, Giacomo
Joyce foi editado pela primeira vez por seu biógrafo Richard Ellmann nos
Estados Unidos em 1968”. Como se sabe, Dublinenses
(Dubliners) também é de 1914. “Quando escreveu Giacomo Joyce, o autor tinha terminado o
Retrato do artista quando jovem e
planejava o Ulisses” (...). No
conciso palimpsesto “já se percebe o surgimento do ‘monólogo interior’”.
Completa-se, assim, a nota do tradutor: “A tradução
procura, na medida do possível, manter a poesia da linguagem, a ambiguidade de
algumas passagens, a repetição de palavras, a pontuação típica de Joyce, as
pausas estruturais entre as partes, bem distintas, da obra (exatamente como no
manuscrito), e os neologismos”.
O narrador-personagem
(sem nome explícito) se manifesta pela primeira vez no princípio do terceiro
parágrafo: “Lanço-me numa onda fácil de fala mansa:” (“I launch forth on an easy wave of tepid speech:”), depois da
apresentação do segundo personagem (também não identificado por nome): “Ela usa
monóculo” (...), “uma jovem de classe”.
Giacomo Joyce se
afasta da narração tradicional, desde a primeira linha, ao se iniciar com uma frase
ou um vocábulo interrogativo: “Quem?”. Na primeira nota se lê a explicação da
identidade da pessoa a quem se referia o narrador: “Provavelmente Amalia
Popper, aluna de Joyce em Trieste”. Segue-se a resposta (descrição pessoal):
“Uma face pálida envolta em pesadas peles perfumadas”. Outras descrições da
protagonista aparecem na página seguinte: “isolamento de sua raça” (“seclusion of her race”), que Roberto
afirma ser judia (“A mesma expressão aparece em Ulisses”; Joyce via no povo
judeu “semelhanças com os irlandeses no que se refere ao isolamento e
perseguição”).
O
relato é composto mais de descrições de seres, objetos, edificações, assim como
de constatações, do que de narrações e falas: “Delicada oferta, delicada
ofertante, delicada criança de veias azuis”; “Sob os arcos nas ruas escuras
perto do rio os olhos das putas buscam fornicadores”. As narrações são mais
descrições (“desairosa graça”) e constatações (“a égua conduzindo sua
potranca”).
Esse modo
de “contar” é o que se conhece como “monólogo interior”: o narrador transmite a
si mesmo (porque não usa a voz) e ao leitor (porque o autor “transmite” a
mensagem), e não a outros personagens, as suas impressões da realidade: “Saio
apressado da tabacaria e chamo-a pelo nome. Ela se volta e se detém para ouvir
minhas confusas palavras falando de lições, horas, lições, horas: e lentamente
suas pálidas faces se iluminam de inflamada luz opalina; Calma, calma, não
tenha medo!” (Sabe-se, então, que o descritor é professor).
O olho
do narrador (como câmera) vai de um lado a outro, de ambiente fechado à praça
pública: “Ela ergue os braços no afã de atar à nuca uma túnica de tule preta”.
Capta até a sensualidade na pessoa examinada: “Desliza lenta sobre a bunda
roliça de esbelta prata polida ao longo do rego, uma sombra de prata opaca...
Dedos, frios e calmos e movendo... Um toque, um toque”. Como se o narrador
andasse pela rua e comentasse os fatos, o movimento das pessoas, dos veículos:
“A carruagem atravessa a enfiada de tendas de lona, os raios das rodas girando
na claridade. Abram caminho!”.
O
professor tem boa articulação verbal, conhece a literatura clássica, a Bíblia,
latim e outras línguas. “Explico Shakespeare à dócil Trieste: Hamlet, ensino,
muito afável com os simples e gentis é áspero apenas com Polônio”. Comenta a
tragédia do gênio inglês. Mais adiante, alude a Dante Alighieri. E à própria ficção
de Joyce: “Ela diz que, se O retrato do
artista fosse franco apenas por amor à franqueza, teria perguntado por que
eu lho dera para ler”. Depois é a vez de Ulisses.
A peça
é uma alcatifa de fios de diversas tonalidades, espessuras, tamanhos e petrechos.
Assim, há falas de personagens, descrições, narrações, observações, suposições,
etc. Há até a exposição de uma cópula: “Seus olhos beberam meus pensamentos: e
na mornez úmida e submissa de sua ingênua feminidade minha alma,
dissolvendo-se, fluiu e verteu e inundou uma líquida e abundante semente...
Agora que a possua quem quiser!...”.
Como se sabe, os pergaminhos de Joyce são plenos de intertextualidade,
citações tomadas à literatura, colagens, ensaísmo ficcionalizado, metalinguagem.
O leitor que trate de ser inteligente e sagaz ou se valha da exegese dos
estudiosos, para entender certas frases e passagens ou mesmo o todo.
Para o principiante
em leituras desse tipo, o epílogo soa como um final inesperado: “Envoy: Love me, love my umbrella” (do
latim, umbella), assim traduzido:
“Oferta: Me ame, ame ao menos o meu guarda-chuva”. Parece trecho de poema.
O narrador
(sempre confundido com o autor) transita por diversas linguagens. Apesar disso,
Giacomo Joyce não se torna composição
enigmática ou de difícil entendimento por leigos em História e idiomas. Bastam
algumas notas explicativas, como as que apresentou Roberto Schmitt-Prym na
parte final da publicação. E qualquer um estará apto a entender James Joyce.
Fortaleza,
1 a 3 de fevereiro de 2013.
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