(Oleg Almeida)
Em janeiro deste ano, ganhei muitos livros. Explorei quase todos, sem
deixar de me devotar à copelação de um conto (imaginado recentemente), a
anotações em meu diário, à revisão de Gregotins de
desaprendiz (a sair, pela Editora Bestiário). Sim, tocaiava-me atrás de outros
tomos e vivia (isto é, não lia nem escrevia). Não me queixo de tantos afazeres.
Afinal, não sou vagabundo nem milionário. Como tenho me recusado o ofício de
crítico e, até mesmo, de resenhista de meia-tigela, leio, faço anotações à
margem de alguns impressos e solicito ajuda a meus alunos. Muitas vezes, me
devolvem os compêndios sem a leitura completa deles. Alegam não ter tido ânimo
para examinar todas as páginas. Semana passada, pedi-lhes mais um favor:
mergulhassem em algumas dessas obras. Entreguei a Luciano
de Barros Memórias dum hiperbóreo (Rio de Janeiro, 2008), e a
Tamara Sobral, Quarta-feira de cinzas e outros poemas (Rio de Janeiro, 2011), ambos de
Oleg Almeida. “Leiam, sem pressa e se tiverem gosto. Se for possível,
comentaremos as duas publicações na próxima aula”. Ontem compareceram à minha
casa. Como de outras vezes, Luciano trouxe (como se se tratasse de coisa) Paulo
Veronese, que não é meu aluno, mas também gosta de literatura. Com Tamara veio
Genésia Jacó.
Pus-me de pé e esfreguei as mãos: “Iniciemos as preleções. Antes, relembro o pedido de sempre: preciso de cópias dos dois comentários”. E convoquei Luciano a assumir a cátedra. Bateram palmas (como gostam de aplausos esses jovens!). O rapaz se entregou a compulsar papéis: “A examinação de Memórias dum hiperbóreo fez lembrar-me de outro poeta”. Interrompi-o: “Acho melhor não fazer comparações, logo no início. Deixe de lado esse parágrafo”. Não se mostrou aborrecido e pulou ao trecho seguinte: “Não se trata de poesia confessional (do poeta): lamentações, queixumes, etc. Pois o narrador (eu lírico) se apresenta com nome grego ou se diz grego: ‘Sou grego’ (p. 61). E se ‘relaciona’ com deuses, semideuses, heróis, filósofos e poetas da Antiguidade: ‘Sou Crates de Tebas’, ‘Sou Hermes’, ‘leio Anacreonte’. Aliás, o título da seleta não esconde a sua substância.
Pus-me de pé e esfreguei as mãos: “Iniciemos as preleções. Antes, relembro o pedido de sempre: preciso de cópias dos dois comentários”. E convoquei Luciano a assumir a cátedra. Bateram palmas (como gostam de aplausos esses jovens!). O rapaz se entregou a compulsar papéis: “A examinação de Memórias dum hiperbóreo fez lembrar-me de outro poeta”. Interrompi-o: “Acho melhor não fazer comparações, logo no início. Deixe de lado esse parágrafo”. Não se mostrou aborrecido e pulou ao trecho seguinte: “Não se trata de poesia confessional (do poeta): lamentações, queixumes, etc. Pois o narrador (eu lírico) se apresenta com nome grego ou se diz grego: ‘Sou grego’ (p. 61). E se ‘relaciona’ com deuses, semideuses, heróis, filósofos e poetas da Antiguidade: ‘Sou Crates de Tebas’, ‘Sou Hermes’, ‘leio Anacreonte’. Aliás, o título da seleta não esconde a sua substância.
Pigarreou e retomou a palavra: “A primeira frase é uma pergunta: ‘Quem
sou eu?’ Este ‘eu’ seria o narrador (eu lírico). No decorrer da peça, este
narrador se transmuda, assim como se modifica aquele a quem se dirige
(narratário). No canto ‘XII’: ‘Triste demais, faraó, eu me sinto’. Nos
primeiros trechos é outro o tratamento dado ao ser com quem fala: ‘Olhai, ó
Senhor, para mim / com vosso sorriso bondoso’ (...). Talvez o Senhor dos
judeus, o deus bíblico: ‘fica a saudade do Éden desmoronado’ (p. 10)”.
O conferencista olhou para a plateia e para mim. Talvez tivesse o
propósito de saber se havia assenso à sua exposição. Incentivei-o: “Prossiga”.
E ele se entusiasmou de novo: “A dicção do poeta é quase sempre linear, ou
seja, de acordo com a estrutura da língua falada: ‘Sou um molusco tirado da
concha (...). Sou homem’ (p. 11). Nesse diapasão, sua linguagem, por vezes, se
aproxima do coloquialismo: ‘Quem sou eu neste jogo de sombras, / pergunto-me a
mim mesmo, / não acho resposta satisfatória / e adormeço zangado’ (p. 10). Ou
seja, da simplicidade”. Pedi-lhe licença para completar o seu raciocínio: “Isso
está bem anotado por Cláudio Murilo Leal, no prefácio do outro conjunto: ‘A
poesia de Oleg Almeida mantém sempre o compromisso entre o coloquial-cotidiano
e as brilhantes pepitas de um vocabulário erudito, sabiamente disseminado em
versos’ (...)”.
Perguntou se podia continuar e se alguém desejava fazer algum questionamento.
Não, ninguém pretendia promover interrupção. E ele seguiu em frente: “Outras
vezes, pode se confundir com a linguagem derramada, solta, caudalosa, livre,
abundante: ‘Ando a bendizê-la em honra da minha gente... / Uns estão mortos e
não se importam com nada, / os outros, ainda vivos, lembram da época de orgulho
/ e trazem, iguais a mim, um peso na consciência’ (p. 13). Em certos trechos,
se aproxima do narrativo, sobretudo quando o narrador se afunda em recordações,
e o faz quase o tempo todo, pois o hinário todo é uma memória (está no título):
‘Na minha casa, se bem que tivesse um só andar / comiam-se ótimas carnes e pães
excelentes, / bebiam-se vinhos de uva e de maçã, / cada dia, usavam-se finas
toalhas e pratos ornamentados’ (p. 13). Ou mesmo quando imita os antigos:
‘Profunda e tétrica foi a noite; / rogaram em coro noviços e patriarcas / que
revogassem os deuses a punição’ ... (p. 23)”.
Não transcrevi aqui toda a prédica de Luciano, por ser vasta, talvez
enfadonha. Chegada a hora da merenda, pedi uma
pausa a ele. Alice, a secretária, nos espionava no portal da cozinha. “Está
pronta a merenda?” Balançou a cabeça para dizer sim. A mesa estava posta: sucos
de melancia, caju e mamão. Em bandejas, torta de marmelada e de damasco. Minha
mesa é sempre de uma fartura de sultão.
Fartos, regressamos à sala. E o rapaz levou por diante a amostragem de
sua ‘crítica’: “O poeta não poucas vezes se deixa seduzir por constatações
comuns ou repetidas: ‘A juventude acaba fácil e bruscamente, / acaba de súbito,
/ quando menos se espera’ (p. 27). No mais das vezes, porém, sua maneira de se
expressar é a de quem sabe lidar com o vernáculo, conhece bem a norma culta, a
frase correta e a ordem natural ou normal dos termos da oração. Nada de
piruetas, malabarismos, mágicas e invencionices, sestros peculiares de quem
tenciona se afigurar diferente, revolucionário, pirotécnico. De quem quer
chamar a atenção”.
Bati palmas. As meninas também. O outro foi mais além: deu um beijo em
Luciano. E, para não perder a energia do momento, dei a palavra a Samara.
Primeiro fez uma descrição de Quarta-feira de
cinzas e outros poemas. E logo passou à análise propriamente dita: “O
vezo narrativo, porém, muitas vezes dá lugar a uma voz metafísica. Quando não assim, uma sentença menos superficial, mais aguda: ‘E quando proclama o cético de colarinho
fechado / que não se vendem os versos, / respondo amavelmente: / do mesmo jeito
que não se vendem as almas!’ (p. 12). Ou como na ode II (cujo motivo central é
o carnaval), na qual também não se perde no descritivo nem no narrativo: ‘Ontem
a vida nos parecia fácil: / a gente dançava infrene, / sorvia cerveja, /
fingia-se de selvagem, / e quem reinava, de fato, / não era a inteligência, mas
tão somente a carne’ (p. 15)”.
Fez passeio por várias estrofes e voltou a ler: “Não é fácil, porém,
livrar-se de certos cacoetes, certos apelos, certas tentações (a da narração):
‘São duas da tarde; / no quarto faz muito calor’ (p. 20). Às vezes, o leitor
percebe até narrativa (conto) no interior das estâncias. Como em ‘Balada de
três destinos’. O próprio poeta (ou o narrador) sabe disso: ‘O fim da história
narrada / seria surpreendente’ (p. 31). Noutro segmento é de fácil observação a
presença dos elementos inerentes à crônica: ‘Moleca ainda / (fez dezesseis em
março), / ela já sabe que nada na vida se dá de presente’ (p. 79)”.
Percebi a proximidade do final da exposição e pedi a Samara um tempinho.
A sede me matava. De volta, ouvi isto: “Em Quarta-feira, além de um soneto irregular ou esdrúxulo, há uma centena de ‘haicais’.
Na verdade, poemetos de três linhas. Se preferirem — aforismos. O haicai tem, sim, três
versículos. No entanto, isto ou apenas isto não o faz haicai. O soneto, também,
não é soneto por ser poema de quatorze versos. Não precisa ter necessariamente
dois quartetos e dois tercetos, nem ser decassílabo ou dodecassílabo.
Entretanto, os fios poéticos devem se amoldar a uma só medida”.
Chegada a hora do encerramento da aula, posei de professor: “Poderíamos
sintetizar, assim, a poesia de Oleg Almeida, na comparação de uma coletânea a
outra: Memórias dum hiperbóreo seriam (como o próprio título patenteia) um bloco de lembranças; Quarta-feira de cinzas e outros poemas se amoldariam na categoria de crônicas da atualidade, permeadas de
outras recordações, reflexões e passeios com as palavras”. Abracei os quatro
jovens e propus o estudo da poética de Patrícia Tenório, de quem recebi alguns
opúsculos.
Fortaleza, 13 a 15 de fevereiro de 2013.
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