I
Por que o século XX foi um período tão propício a experiências
totalitárias? Sabe-se que Hitler, Mussolini, Stalin, Franco, Salazar, Vargas e
outros ditadores menos cotados ou conhecidos não chegaram ao poder e muito
menos governaram sozinhos, contando com o apoio não só de grandes homens de
negócios, que sustentaram as maiores ignomínias praticadas contra seres
humanos, em troca de interesses pessoais e, muitas vezes, mesquinhos, como do
homem comum, o das ruas, o homem-massa, conforme o definiu o pensador espanhol
Ortega y Gasset (1883-1955).
Em poucas palavras, os estudos revelam que o totalitarismo é adversário do
homem livre, ou seja, daquele que se percebe responsável por seu destino
histórico, que escolhe e é capaz de sustentar responsavelmente suas opções,
como assinala o professor José Maurício de Carvalho na apresentação que
escreveu para este volume. Isso não significa que nos regimes ditos liberais
não existam focos de totalitarismo, como sabe muito bem quem já trabalhou em
redações de jornais e revistas e viu de perto grandes empresas e autoridades
públicas procurarem asfixiar a liberdade de pensamento à custa de pressões
econômicas. Sem contar que a chamada liberdade de imprensa quase sempre é a
liberdade do dono do jornal de publicar o que quiser, mas não a do empregado
jornalista.
II
Para o professor Selvino Antonio Malfatti, da Universidade Federal de
Santa Maria, do Rio Grande do Sul, o fenômeno totalitário é uma experiência
relativamente recente na história política do Ocidente e constitui um desvio de
rota da moralidade ocidental. Em seu estudo “Moralidade e Política no
Totalitarismo”, Malfatti diz que o fenômeno é resultado da falência dos valores
humanos e da descrença na capacidade do homem de se organizar sozinho.
Essa é uma ideia muito antiga e que, ao final de 1797, por exemplo,
serviu para o intendente-geral de Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique,
organizar uma sessão da Nova Arcádia na grande sala da Real Casa Pia, no
Castelo de São Jorge, em Lisboa, em homenagem ao aniversário de D. Maria, em
que o acadêmico Manuel Bernardo de Sousa e Melo, presidente do encontro,
defendeu “a solidez interna das monarquias reais” e condenou “a fraqueza das
fórmulas republicanas”. Dirigindo-se ao príncipe regente D. João, o acadêmico
dizia que “os homens não nascem bons e, por isso, onde quer que vão levam
consigo a depravação de origem”.
Dizia mais: “Portanto, os homens levarão consigo a depravação, a
ambição, o ódio, a sensualidade, o ciúme, a vingança; enfim, levarão as
paixões, estes ímpetos precipitados do nosso ânimo, estes monstros domésticos
do nosso coração, mais indomáveis que feras exteriores, pois, desenfreados e
livres, não respeitam outro direito que o da força nem conhecem outras virtudes
mais que as suas mesmas satisfações”. Era o que o intendente queria que o
príncipe regente ouvisse para justificar mais repressão, como se lê em Bocage:
o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, p. 241), deste
articulista.
Muitos anos mais tarde, do outro lado da Europa, em São Petersburgo, um
morador de um prédio que fica no cruzamento da rua Koppuznetchny com a rua
Dostoevskaia, antiga Iamskaïa, não muito distante da igreja do Ícone de Nossa
Senhora de Vladimir, escreveria que “nada de grandioso se pode esperar do
homem”, seguindo na mesma linha do acadêmico Sousa e Melo. Esse
morador chamava-se Fiodor Dostoievski (1821-1881) e ninguém como ele retratou
com tanta fidelidade a humanidade em toda a sua miséria e degradação.
Esse pensamento deve ter ficado na alma das gerações que os sucederam.
Se o Portugal joanino e o Portugal salazarista como a Rússia czarista e a
Rússia soviética eram países atrasados e com altos índices de analfabetismo, a
conclusão a que se poderia chegar é que constituíam terreno fértil para a
sedução do totalitarismo. Mas como explicar que a Alemanha, já desenvolvida à
época e com altos índices de alfabetização, também se tenha deixado atrair pela
insânia nazista?
III
Diz o professor Malfatti que, em troca da adesão, o totalitarismo
oferece uma ideologia que se propõe a explicar toda a vida da sociedade. “Todos
devem professar a ideologia como se fosse uma fé religiosa”, diz o professor.
“O ditador, rodeado de uma pequena parcela da população, submete o resto. Para
tanto”, diz, “cria um partido, único evidentemente, dirigido por ele à frente
de fanáticos seguidores. O passo seguinte é instaurar um sistema de terrorismo policial
que invade e vasculha toda vida pública e privada dos indivíduos. O outro passo
é o controle dos meios de comunicação para que só a ideologia oficial seja
ouvida. Tudo isso permeado por ideais salvacionistas”. E acrescenta: “Os
líderes soviéticos no período stalinista e os chefes do nazismo estavam
imbuídos de que estavam cumprindo uma missão para a humanidade”.
De fato, durante a ditadura militar (1964-1985) no Brasil, uma parte dos
torturadores e de seus financiadores imaginava que estava colocando o País a
salvo da ameaça comunista, mas a maior parte fazia o serviço sujo não só por
sadismo e mau-caratismo como para se aproveitar de vantagens pessoais e
oportunidades que se ofereciam com o saque dos despojos das vítimas.
IV
Já José Maurício de Carvalho e Vanessa da Costa Bessa, da UFSJ, em
“Totalitarismo e ética em Ortega y Gasset”, defendem que a recusa do
homem-massa em assumir a sua vida é o sangue que impulsiona os governos
totalitários que a Europa produziu no século passado. Para os autores, as
ideias de Ortega y Gasset ainda permitem entender o fenômeno, embora o mundo de
hoje seja outro e pior, pois assolado por violência urbana, pelo crime
organizado associado ao tráfico de drogas, fanatismo religioso convertido em terrorismo
e ameaças de desequilíbrio ecológico.
Seja como for, para os autores, continuamos a viver um tempo de massas,
tal como definiu Ortega y Gasset. Por isso, dizem, os riscos de nos depararmos
com novas propostas totalitárias não estão afastadas de todo enquanto a
responsabilidade com a construção do futuro não for retomada e o medo da
liberdade não for vencido. “O risco é real porque poucas vezes na história
humana os Estados Nacionais possuíram informações e controles tão completos da
vida de seus cidadãos”, acrescentam.
Pior ainda no Brasil de hoje em que se vive uma época de desmoralização
da representação parlamentar, tal qual na Espanha pré-franquista. E essa
desmoralização se dá pelos muitos parlamentares, que, em troca de vantagens
pessoais e de grupos, acabam virando despachantes de contraventores,
facilitadores de grandes negócios à custa do erário público – aliás, desde os
tempos coloniais, o caminho mais fácil para o enriquecimento rápido.
Desmoralizado o Parlamento, o caminho fica aberto à tentação totalitária. Eis
aqui bem depositado o ovo da serpente.
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PODER E MORALIDADE: O TOTALITARISMO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS ANTILIBERAIS
NA MODERNIDADE, de José Maurício de Carvalho (organizador). São
Paulo: Annablume/Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), 232 págs.,
2012, R$ 40,00. E-mail: dfime@ufsj.edu.br Site: annablume.com.br
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(*) Texto publicado na Revista Estudos Filosóficos, do
Departamento de Filosofias e Métodos da Universidade Federal de São João del
Rei-MG, nº 9, 2012, p. 171-173.
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de
São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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