Eu sabia que Antero não era cascateiro,
pelo contrário, sujeito sério, na faculdade e, depois, no trabalho, onde
chegara antes, já admitido, eu é que era estagiário. Um dia, pedi-lhe detalhes
sobre o homem do disco-voador. Por acaso eu vou lá hoje, me disse. Posso ir
junto? Quer ir, vamos, mas hoje estou indo só pra ver se ele avançou alguma
coisa, ‘tava muito parado.
O homem fazia disco-voador, mas não
tinha telefone. O jeito era ir lá. Pedimos a kombi do jornal e fomos ao Núcleo
Bandeirante. Coincidência, chegamos no exato momento em que artesão de OVNI
estava com a mão na massa, quero dizer, nos arames. Um aramal danado, uma
quantidade enorme de hastes, ligando o meio da nave à cobertura, que era de
lona. O homem estava lá em cima, atrepado, nos acabamentos.
Camiseta, bermuda, sandália, uns 45
anos. Mas aquele jeitão dele, ali, naquela coisa, de certa maneira confirmou
uma desconfiança que eu já levava no íntimo: maluqueira. Foi então, que eu me
lembrei, o Antero era ao mesmo tempo comunista e místico, ligado em leituras
esotéricas. Mas era bom repórter, texto bom, faro perfeito, descobridor de boas
histórias. Só que aquela tava parecendo boa demais. Àquela época, a cidade
andava cheia de “cascateiros”.
Na maior desfaçatez, “jornalistas”,
assim, entre aspas, inventavam cada uma... Um tal de bebê anjo, que depois
virou bebê diabo, deu até em romaria numa cidade-satélite, sem que ele
existisse, de fato, era puríssima ficção. E uma dupla, repórter e fotógrafo, ia
para a rua, na maior cara de pau, para registrar depoimentos, “povo fala”, se é
que eles não inventavam também as conversas. O que não era ficção, pena que não
fosse, a censura mandava pegar leve, o escabroso crime, o Caso Ana Lídia, a
menina loirinha, um anjinho de cabelos cacheados, vítima de um falso sequestro,
o próprio irmão se prestou à farsa, mas depois que a gangue pegou o dinheiro
eles se entupiram de drogas, abusaram, mataram, queimaram a menina e a
enterraram num matagal. O bando era formado por “filhinhos de papai”, os papais
eram ministros, senadores, só o irmão da criança é que estava mais pra pé
rapado, classe média baixa. Hoje, Ana Lídia é mártir, túmulo muito visitado,
ex-votos, milagres... O crime prescreveu, talvez algum dia alguma comissão da
verdade dê nomes oficiais aos bois, o vulgo sempre os soube. O Tropicalismo já
era uma das páginas mais importantes na história da cultura brasileira, mas
Caetano estava em Londres, gemendo versos do tipo so looking for flying
socers in the sky.
E nós, na terra vermelha do cerrado,
testemunhando um cara ultimando retoques de um disco-voador, falava pouco,
dizia que estava prestes a dar por encerrada a missão que recebera, botar o
disco pra voar, aquilo era um conhecimento que lhe fora passado por seres outros,
remanescentes dos Vímanas, dos Atlantes, algo assim. Tempos depois, fiquei
sabendo, pelo próprio Antero, que o disco tinha voado, subira pouco mais de 50
metros, mas voara. Uma proeza bem mais pobre do que a de Santos Dumont, mas o
autor dela se deu por descompromissado com as entidades desencarnadas que lhe
haviam cobrado a obrigação. Não houve cobertura. O fato mais midiático do
mundo, sem cobertura alguma, mas o homem não tinha o menor faro para notícia,
não avisou a ninguém, nem ao fiel Antero, que o acompanhava, passo a passo.
Houve testemunhas, poucas, sumidas, sem depoimentos. Não foi possível sequer
reconstituir o fato, que hoje conto de memória. A preocupação daquele
fabricante de disco-voador não era sair na imprensa, mas se livrar de um encargo
cármico, dívida finalmente resgatada.
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