(José Ortega y Gasset)
Ganhei
do escritor e editor Roberto Schmitt-Prym alguns livros. Um deles é Homem-massa: a filosofia de Ortega y Gasset
e sua crítica à cultura massificada (Porto Alegre: Editora Bestiário,
2012), de Jéferson Assumção. O primeiro é meu amigo há anos e tem editado
alguns de meus escritos. O segundo só conheço de enciclopédias, ensaios,
comentários. Salomão Sousa, o poeta brasileiro mais próximo dos pensadores, me
falava todo dia de Ortega y Gasset. E repetia: Você precisa conhecer esse monumento.
Do contrário, será sempre poetinha de ponta de rua. Do ensaísta gaúcho eu nunca
ouvira falar. Agora sei do seu nascimento em 1970, na cidade de Santa Maria,
onde se deu a tragédia da morte de 241 jovens estudantes.
Homem-massa é pequeno: apenas 190 páginas. Não tem
índice ou sumário. Nas abas há um texto apócrifo: “O homem-massa, personagem
filosófico que o espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) delimitou nos anos
30, segue de grande atualidade, mesmo que o ambiente da era industrial,
condição para seu surgimento, já sofra mudanças profundas com a era digital,
pós-industrial e seus ambientes pós-massivos na Internet”. Finaliza-se com
quatorze linhas a respeito do autor. O compêndio está assim dividido: Prólogo
(de Javier Zamora Bonilla); Introdução (em três capítulos); O “Zaratustra
Madrilenho” e suas circunstâncias; O insulto e o disfarce na origem da
filosofia; O tema da razão vital; A traição metafísica do homem-massa; O
insulto orteguiano ao homem-massa; Conclusão; Posfácio; Referências bibliográficas;
e Notas (são 166).
Enquanto
o lia e agora, vieram-me à lembrança dois ou três edifícios doutrinários de
minha juventude: O homem medíocre, de
José Ingenieros, e Cultura de massas no
século XX, de Edgar Morin. Certamente estou equivocado. Ambos não têm ou
não teriam nenhuma relação com o pensador espanhol. Captei frases do impresso
de Jéferson: “Ortega foi mais um dos alunos de Georg Simmel, impactados por
Nietsche” (p. 16). Eu não sabia disso. No capítulo “O bárbaro especialista”
encontrei esta pérola: “A técnica do século XIX mudou o mundo por fora e o
homem por dentro. Não que ela seja má em si mesma. O que é mau é o culto que o
século XX fez do bárbaro especialista – aquele que sabe tudo sobre algo e balbucia
sobre o resto” (p. 19).
Ao
tempo da leitura daqueles sujeitos esquisitos (Ingenieros e Morin), andei a ler
também Kant, Pascal, Marx, Engels, Nietzsche, Sartre e outros teóricos. Não
tanto Parmênides, Heráclito, Protágoras e Anaximandro, “filósofos primordiais”.
Depois me afastei de todos eles, por incapacidade de compreendê-los. Jéferson,
pelo contrário, meteu a cara na filosofia, na história do pensamento, e,
sobretudo, na carpintaria de Ortega y Gasset. Analisa uma a uma as publicações
do filósofo. Sem medo, sem estranheza. Não como certos leitores, para quem
“tantos e tão variados temas só poderiam ter sido tratados com frivolidade e
superficialidade” (p. 26). Pois Ortega deixou inúmeros edifícios do pensamento,
desde Meditaciones del Quijote, que é
de 1914, até El hombre y la gente, de
1950. “Suas obras completas perfazem 10 volumes de cerca de 1000 páginas cada”
(p. 23). Do primeiro extraiu-se a célebre frase, dita e repetida por milhões de
pessoas todo dia: “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela não
salvo a mim” (p. 58). No capítulo “A exigência de criação”, encontramos esta
‘definição’ de Ortega ou de sua joalheria: “Essa delimitação de estilo serve
tão bem para falar da obra de Ortega – de sua escrita – como da própria
filosofia do espanhol: uma filosofia com estilo, que cobrava um homem com
estilo: solitário (mas não solipsista), nobre, ensimesmado, desportista,
criativo. O contrário do homem-massa” (p. 81). E aqui deparei com Ingenieros:
“Solidão! O próprio fundo insubornável do ser humano, conforme Ortega. Nesse
sentido, o que o filósofo espanhol vai ter com o homem-massa é, além do mais,
uma exigência estética. Ortega quer que o homem bovino (Nietzsche, em Assim falou Zaratustra), o homem
medíocre (José Ingenieros, em O homem
medíocre), tenha estilo, tenha aprofundamento em si próprio” (p. 84).
Jéferson
Assumção realizou exame escrupuloso e demorado da carpintaria racional de
Ortega y Gasset, em todos os seus aspectos, sem deixar margem para dúvidas.
Tudo com muita didática, algumas transcrições (não muitas) e sempre como
analista ou crítico: “Na solidão o homem é a sua verdade – na sociedade tende a
ser sua mera convencionalidade ou falsificação” (Ortega), assim analisado pelo
comentarista brasileiro: “Descoberto, desnudar, alétheia, é – como em Heidegger – a verdade em Ortega. Esse
descobrir tem a ver com a nudez e com a solidão, com o desmascaramento e a
retirada das cascas de usos da sociedade sobre o eu-circunstância” (p. 109).
O
elogio de Jéferson à filosofia de Ortega é exuberante, como nestas linhas:
“Ortega chegou a dizer que a realidade só pode ser dita de maneira narrativa
(entre outras coisas, afirmava, com isso, que a filosofia, por seu caráter
conceitual, não tem como falar da realidade, movente e mutável). E, para
narrar, usou o ensaio, a alusão, olhou indiretamente, como o artista de Ítalo
Calvino (1923 – 1985), em Seis propostas
para o próximo milênio (1997). Por razões como essas, o leitor de Ortega
pode sair do bosque em que entrou sem saber exatamente do que o madrilenho está
a falar. Muitos comentadores já alertaram para o fato de que é tão belo quanto,
no fundo, intrincado o fruto de seu modo de exposição, assistemático, limítrofe
à literatura, apesar de extremamente claro. Daí resultar que, se Ortega de um
lado ilumina o leitor com metáforas, essa mesma qualidade ajuda a tornar ainda
mais difícil o trabalho de montar um conceito filosófico entre tanta
literatura” (p. 82).
Saio
da leitura deste Homem-massa: a filosofia
de Ortega y Gasset e sua crítica à cultura massificada, de Jéferson
Assumção, como quem deixa a sala de cinema com a vista ainda ofuscada ou ainda
metido na história, quase-personagem. Ergo a cabeça, sinto o vento e a noite
nos cabelos, no rosto, no resto no corpo e me endireito no rumo de casa ou de
mim mesmo, satisfeito como o diabo. Não direi feliz, que sou apenas mais um
leitor.
Fortaleza,
30/31 de março de 2013.
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