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sábado, 4 de maio de 2013

A literatura de Moçambique vista do outro lado do Atlântico (Adelto Gonçalves*)





                                                           I
Escritores moçambicanos na fase inicial da literatura de seu país sempre se declararam inspirados por autores brasileiros. Foi o caso de José Craveirinha (1922-2003), filho de pai português e mãe africana, que se dizia leitor atento de Manuel Bandeira (1886-1968), Mário de Andrade (1893-1945), Graciliano Ramos (1892-1953), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Jorge Amado (1912-2001), Raquel de Queiroz (1910-2003), João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e outros. Sem contar que tivera em Leônidas da Silva (1913-2004), o Diamante Negro, centroavante da seleção brasileira de 1938 e inventor do lance chamado de “gol de bicicleta”, um ídolo de sua juventude, admiração que compartilhava com muitos de sua geração.
             
Tantos anos depois, faz-se agora o percurso inverso com estudiosos brasileiros, alguns em atividade em universidades fora do Brasil, escrevendo sobre a produção de escritores moçambicanos mais recentes. É o que se vê em Passagens para o Índico: encontros brasileiros com a literatura moçambicana (Maputo: Marimbique Conteúdos e Publicações, 2012), organizado pelas professoras Rita Chaves e Tania Macêdo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), com prefácio do professor Lourenço do Rosário, o scholar moçambicano com maior trânsito nas universidades de Portugal e do Brasil.
             
Para realizar essa obra, as organizadoras convidaram 20 especialistas em Literatura Africana de Expressão Portuguesa, inclusive este articulista, para que escrevessem ensaios sobre a produção de autores moçambicanos contemporâneos. O livro inclui ainda o ensaio “A literatura moçambicana e os leitores brasileiros”, das organizadoras, responsáveis também pela introdução. Para as professoras, a exemplo de A kinda e a misanga: encontros brasileiros com a literatura angolana, lançado em 2007, este volume “corresponde a mais uma ação para tornar cada vez mais vivos os laços que nos prendem”.
                                                           
II
             
Como não podia deixar de ser, Mia Couto, o escritor moçambicano com maior visibilidade da mídia do mundo lusófono, alcança espaço destacado na análise dos especialistas. De sua obra ocupam-se Anita Martins Rodrigues de Moraes, doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Maria Nazareth Soares Fonseca, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG), e Patrícia Schor, que faz doutoramento em Humanidades na Utrecht University, da Holanda.
             
Já a narrativa feminina, especialmente a de Paulina Chiziane, é objeto de atenção de Laura Padilha, doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora emérita da UFF, Débora Leite David, que faz pós-doutorado em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa na USP, e deste articulista.
            
Em “Literatura e política: José Craveirinha e as inclinações prospectivas de uma poética popular”, o professor Benjamin Abdala Junior, doutor em Letras pela USP e professor titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da mesma instituição, aproxima a poesia do poeta moçambicano do fazer poético do angolano António Jacinto (1924-1991) e do brasileiro Solano Trindade (1908-1974), observando que o horizonte de expectativa de Craveirinha “enlaça os poetas da geração de 50 em Angola e os poetas brasileiros articulados politicamente e que viriam a promover os Centros Populares de Cultura”.
            
No contexto socialmente reivindicativo, e ainda anticolonial e antifascista das literaturas africanas de Língua Portuguesa dos anos 1950-1960-1970, diz Abdala, esse horizonte estético-ideológico promovia um olhar para outros poetas, de outros sistemas lingüísticos, como o cubano Nicolás Guillén (1902-1989), que seria colocado como poeta-símbolo na antologia do angolano Mario de Andrade (1928-1990) e do são-tomense Francisco José Tenreiro (1921-1963), “onde a condição negra se associava à proletária – um humanismo em que as diferenças étnicas se abriam à solidariedade social”.
           
Em “A voz, o canto, o sonho e o corpo: reflexões sobre a poesia feminina em Moçambique”, Carmen Lucia Tindó Secco, doutora em Letras pela UFRJ e docente que criou a disciplina de Literaturas Africanas na mesma instituição, diz que, ao contrário do que ocorreu em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, em Moçambique o silêncio em torno de textos de autoria feminina se manteve por mais de uma década depois da independência não só na poesia como nos demais gêneros.
           
Com exceção de Glória de Sant´Anna, que teve condições próprias de editar vários livros antes da independência, poucas mulheres tiveram seus textos publicados no período colonial. Mesmo a conhecida Noémia de Sousa, acrescenta, só teve a sua obra reunida em livro, em 2001, por empreendimento do poeta Nelson Saúte, atual editor da Marimbique, que publicou o livro que se resenha aqui. Hoje, já não são poucas as poetisas moçambicanas: Ana Mafalda Leite, Tânia Tomé, Sónia Sultuane são alguns nomes que têm sua produção analisada por Carmen Lucia neste ensaio.
                                                           
III
             
Em “José Francisco Albasini e a saúde do corpus moçambicano”, César Braga-Pinto, doutor em Literatura Comparada pela University of California, Berkeley, e professor da Northwestern University, em Illinois, recupera a trajetória literária e jornalística de José Francisco Albasini, o Bandana (1877-1935), irmão de João Albasini. Ambos fundaram o primeiro jornal escrito e dirigido por uma elite de intelectuais negros e mulatos em Moçambique, O Africano (1908-1918), que seria sucedido por O Brado Africano (1918-1974).
             
Lidos numa perspectiva pós-independência e, portanto, anacrônica, os Albasini são vistos hoje com certo distanciamento. Descendente de um italiano e neto de português e de uma neta do régulo do clã Mpfumo, de Maxaquene, Bandana, ao seu tempo, defendeu a “causa indígena”, lançando uma campanha pela educação em português que tinha por base a luta pelo direito à cidadania plena, no caso a cidadania portuguesa, à época do salazarismo. Como diz Braga-Pinto, essa é ainda uma questão que permanece em debate e longe de um consenso, ou seja, “a situação do sujeito assimilado em relação não somente ao sujeito “indígena”, mas também ao passado pré-colonial e à tradição africana”.
             
Um dos textos mais interessantes desta coletânea é “Os lugares do indiano na literatura moçambicana”, de Nazir Ahmed Can, doutor em Letras pela Universidade Autônoma de Barcelona e professor-colaborador do Instituto Camões de Barcelona, que registra um “silêncio” a respeito da participação indiana nos estudos literários sobre Moçambique dos dias atuais. É de lembrar que a comunidade indiana se fixou no país em meados do século XVII ou ainda em época anterior à chegada dos portugueses e, hoje, “representa uma parte significativa da população moçambicana (inclusive da elite política e intelectual)”.
             
Can cita Francisco Noa para quem “a figura do indiano aparece-nos marcada pelo ressentimento, pelo preconceito e por um indisfarçável sentimento de intolerância”. Para Can, “a prosa do período pós-independência sente-se ainda numa posição desconfortável para representar estas comunidades de forma pormenorizada para lhes fornecer protagonismo ou voz”.
            
Conhecidos de maneira depreciativa por monhés, baneanes e canarins, os indianos sempre foram vistos de maneira preconceituosa – de início, porque representariam um obstáculo à hegemonia portuguesa na região e, depois, porque desenvolviam, na maioria, atividades ligadas ao ilícito, como contrabando e a sonegação fiscal, e eram adeptos do islaminismo e, portanto, adversários das práticas cristãs.
            
Depois de apontar a presença de protagonistas indianos (monhés), referidos de forma negativa por personagens em autores como Nelson Saúte, Lília Momplé e Suleiman Cassamo e positiva ou neutra em Mia Couto, João Paulo Borges Coelho e Paulina Chiziane, o ensaísta assinala a ausência de uma auto-representação da travessia indiana na prosa moçambicana, questionando quais seriam os motivos pelos quais isso não foi possível até agora.
                                                            
IV
             
O livro traz ainda ensaios dos professores José Nicolau Gregorin Filho, doutor em Letras pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) e professor da USP, Érica Antunes Pereira, pós-doutoranda na USP, Maria Anória de Jesus Oliveira, professora assistente da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e doutora em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Marinei Almeida, doutora em Letras pela USP e professora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), Maurício Sales Vasconcelos, doutor em Letras e pós-doutorando na USP, Prisca Agustoni de Almeida Pereira, doutora em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela PUC-MG, Rosania da Silva, doutora em Letras pela Universidade Nova de Lisboa, Simone Caputo Gomes, doutora em Letras pela PUC-RJ,  Sueli Saraiva, doutoranda em Letras pela USP, e Teresinha Taborda Moreira, doutora em Letras pela UFMG e professora da PUC-MG.

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PASSAGENS PARA O ÍNDICO: ENCONTROS BRASILEIROS COM A LITERATURA MOÇAMBICANA, organização de Rita Chaves e Tania Macêdo. 1ª ed. Maputo: Marimbique – Conteúdos e Publicações. 327 págs., 2012.
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2012). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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