(Enéas Athanázio)
Vez por outra, converso (ou brigo) com
Fábio Lopes. Ou vem à minha casa ou vou ao apartamento dele. Somos quase amigos
(e também quase inimigos), há alguns anos. Não alcançamos o grau superior da
amizade e talvez nunca isto aconteça. Também ainda não descemos ao pátio escuro
da derradeira luta: o duelo. Divirjo de alguns conceitos políticos por ele
defendidos. Na mais recente discussão, eu lhe dizia: “Os adolescentes discordam
de seus pais e das pessoas da idade destes e, por isso, são capazes até de
matá-los; assim mesmo, os amam, gostam (às escondidas) do que eles gostam (e os
admiram) e serão seus imitadores nos próximos dez anos e pelo resto de suas
vidas”. E dava exemplo: todo adolescente brasileiro (normal) dos anos 1960/70 preferia
rock, guitarra, Beatles, e detestava samba, pandeiro e Nelson Gonçalves. Dez
anos depois, aqueles meninos (quase todos) transformaram o rock em samba, a
guitarra em bandolim e passaram a escutar Nelson Gonçalves, Orlando Silva,
Vicente Celestino.
Na réplica, Fábio me chamou de
idiota. Eu quis esmurrá-lo e tachá-lo de cretino, maria-vai-com-as-outras,
ruminante, etc. Contive-me, fui ao banheiro, lavei o rosto e as mãos, com
sofreguidão. Ouvi uns respingos de voz: “Desculpe, não quis ser grosseiro”. No
regresso à sala, acolhi tentativas de substituição do substantivo “idiota” por palavreado
quase sem sentido: “inventor contumaz de teorias absurdas, entretanto dignas de
análise, talvez até em simpósios de filosofia...”. E, enquanto discursava, apanhou
a brochura por mim explorada havia pouco. Ao se acomodar no sofá, após a
chegada, perguntara: “Que gênio você está tentando decifrar?” Eu respondera: “No
momento, nenhum; acabei de me deliciar com uma seleta de ficções”. E, assim,
Enéas Athanázio serviu de pacificador e salvou meu quase-amigo de ser chamado
de filho-da-puta e outros qualificativos desse tipo.
Enquanto folheava o volume, matraqueava,
como se quisesse me impedir de usar a voz. E parecia ter conhecimento anterior
dele, tão desenvolto se mostrava: “Contos escolhidos? Aprecio esse tipo de publicação.
Nem sempre os escolhidos são os melhores, mas, se o sujeito sabe redigir, toda
antologia dele tem qualidade. O artefato está bem apresentado: boa fonte, abas
em letras escuras sobre fundo branco. Quem será esse Mário Pereira?” Tomei-lhe
a palavra: “Não sei. Só conheço o autor do texto da quarta capa, o singular
Péricles Prade”. Deixei-o (meu quase amigo) a passar as folhas do impresso e me
pus a comentar as estórias, para não lhe dar vez de se pavonear. Ele terminaria
por falar de si mesmo, dos milhares de livros manuseados ao longo da vida, de
nomes totalmente desconhecidos por mim. Quando me telefona ou encontra, vem com
novidades: “Comprei umas preciosidades de Gjellerup”. Eu me espanto: “Quem?”
Ele ri, a zombar de mim: “Você não conhece Karl Adolph Gjellerup?” Abaixo a
cabeça, derrotado. “Emprestarei um a você”. Deve se sentir vitorioso e superior
a mim.
Entreguei-me a comentar meu patrício meio
desconhecido aqui (como a maioria de nossos homens de letras): “Enéas é um
artesão da palavra. Conheci-o desde os tempos da revista O Saco. Eu me iniciava como redator; e ele também”. Examinei de
viés o convidado: risinho de deboche no canto da boca. Não me abati: “Você já o
conhecia?” Na bucha, respondeu: “Não li nem lerei”. Tive ímpetos de lhe lançar,
com força, o tomo de encontro às fuças.
Esqueçamos Fábio Lopes, por um minutinho.
Quero me referir ao amigo catarinense e seu “novo” pergaminho.
O primeiro relato do compêndio é “São
Simão”. Reproduzo um parágrafo, para dar ao leitor ideia de como escreve esse
brasileiro: “A meio do campo, no topo de uma coxilha, a casa pintada de azul
tinha aspecto solitário, com os vidros rebrilhando ao sol. Ao lado, um
umbuzeiro enorme, de folhas verdes e cachos amarelos, espalhava sobre o solo
vermelho a raizama grossa a oferecer assento há decênios a quem por ali
andasse, já gasta pela fricção de corpos de várias gerações”. É este o estilo
de Enéas: uso frequente de termos e expressões regionais, o ambiente sulista,
narração simples e linear. Vejamos este trecho: “Todas as tardes vinha o Major
Lica matear na varanda fronteira, espraiando o olhar carrancudo pelos seus
domínios, enquanto sugava pachorrento o bocal dourado da bomba castelhana”.
Enéas Athanázio projetou descrever sua
terra, narrar histórias de sua gente e reproduzir a linguagem dela. Sem se
fechar como caracol, sem deixar de conhecer o universo da literatura e das
culturas. E não se fechou: conhece o Brasil (viajor de alta rotatividade) e os
costumes e as literaturas dos diversos povos de nossa pátria. Não quis,
todavia, ser urbano ou metropolitano, em sua arte. Por isso, permaneceu em sua
terra. Nasceu em Campos Novos, Santa Catarina, viveu em outras cidades de sua
região (na capital também), sem se trancafiar em si, sem desconhecer os outros.
E assim nos fizemos amigos, eu em Fortaleza e, depois, em Brasília, e ele no
Sul. Esse modelo de vida e de fazer literário é mostrado, às claras, em seus
escritos, sem medo de ser chamado de bairrista ou regionalista. Mário Pereira,
nas abas destes “contos escolhidos”, afirma: “a obra ficcional de Enéas brota
da terra. Suas raízes estão entranhadas nos campos do Planalto Catarinense, com
suas gentes, costumes e falares característicos, o que a encaixaria na moldura
do regionalismo sulino”.
As narrativas de Enéas não são espichadas
demais, feito novelas. Pelo contrário, são curtas. Porém, não podem ser ditas
curtinhas, minúsculas. São de tamanho comum ou médio. “Formiga correição”,
divulgada n’O saco, é antológica. Fazer
leitura desta coletânea é conhecer Santa Catarina e seu povo. E também esse
narrador meticuloso, cuidadoso, quase perfeito. Equivale a realizar passeios
demorados pelos campos do Sul: “A matrona, numa tarde chuvosa, avistou da
varanda o compadre Zé Pedro que chegava a cavalo. Abria o portão com o cabo da
soiteira, a chuva escorrendo do chapéu desabado”. Parece-nos estar a ver
aquilo.
Contos
escolhidos servem para
marcar os 40 anos da trajetória literária de Enéas Athanázio e é composto de
“62 histórias curtas produzidas ao longo de quatro décadas de dedicação ao
ofício de escritor” (esclarece Mário Pereira). O contista se iniciou com Peão negro, em 1973. Seguiram-se outros opúsculos
de ficção curta. Contudo, não se limitou a inventar ou reinventar o seu mundo
rural: aprofundou-se também na pesquisa de outras literaturas, como a de
Monteiro Lobato (de quem é admirador infatigável) e expôs, aos olhos dos
leitores, ensaios, além de crônicas, contos juvenis, perfis biográficos
(Gilberto Amado, Joaquim Inojosa, Godofredo Rangel e outros ficcionistas
brasileiros).
Fábio Lopes ainda quis voltar ao assunto
predileto dele: literatos estrangeiros, sobretudo aqueles mais desconhecidos
por mim. “Tenho uma edição de Karl Gjellerup, em espanhol: ‘El peregrino Kamanita’. Se você tiver
interesse...”
Fortaleza, 5 de maio de 2013.
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