A
noite branda e tranquila; quase plácida. Se lhe irrompia o silêncio tão-só o
ladrar ou o ganir d'um cão vadio, saudoso ou solitário. Pendiam onze e
cinquenta da parede. Bem como – reluzente – uns mais segundos por sobre um
velho criado-mudo. A luz escassa e sombria da minguante veio deitar-se,
indolente, aos pés da cama. U'a brisa fresca e olorosa lhe abriu alas como por
entre as cortinas de linho-cânhamo. Bailavam estas como ao som da quietude;
entorpecidas por um amável e encantador jasmim-da-noite.
O casal não parecia se importar. E, indiferente à sua presença, deixou-lha
repousar; como se faz a um indigente ou mesmo a um gato impertinente...
—
Ouviu issu, Carlus!? disse a mulher revolvendo-se com espanto.
—
Hum!? Ouvi, sim!... tornou-lhe o esposo, erguendo-se de súbito.
—
Que qu’é issu!?
—
Sei lá! Vô lá vê.
Carlos
calçava as sandálias, às pressas, – confuso e estonteado –, quando em respostá-la
num tom como entre o ríspido e o temeroso.
—
Hein!? Ó, cuidado hein, mô!
—
Tá, Tereza; fica calma, mulé...
—
Calma, calma... Vô vê as criança,
issu sim.
—
Não, não! 'cê fica aqui! Pó’ de'xá qu’eu olhu as crianças. Vai qui tem alguém aí?...
Não
lhe ouviu Tereza, entretanto; malgrado o tom e a advertência. Seguir-lhe-ia os
passos, mal dera aquele outros tantos à sua frente. Seguiu, porém, tal qual
fosse a sua sombra: sorrateira e acauteladamente. Incauto, o outro, seguiu
passo; sem se dar conta desta teima da consorte. Não lhe censure acaso u'a boa
esposa (submissa à moda do Corão, do Pentateuco); que era esta assim tão boa e
tanto quanto boa mãe. Tereza o via, de esguelha, indo adiante; olhando-o
calada, atrás do umbral. Semi-oculta a face, deste modo; de todo oculta pelo
mais da escuridade. Respirava opressamente. E no busto mui evidente o grão
alvoroço do coração. Se lhe depara a cerrar a antepenúltima porta, – a
seguinte, à sua direita –, que dava entrada ao quarto do caçula. Fazia-o com o
zelo e a cautela do bom pai, como a abocar a sua cria com ternura. Tão logo em
vê-lo descendo às escadas, assim de modo vagaroso e comedido, dirigiu-se, logo
após, ao mesmo quarto. Inda da escada, Carlos ouve – a um só tempo – como um
farfalhar e um tilintar d’objetos e coisas várias; como se houvesse alguém a
vasculhar gavetas a procura de algo... E do quê? dinheiro!? Pobre Carlos...
Pobres dos Ferreira... Já não bastasse a inópia digna e, porém, inadimplente,
vem mais um a subtrair-lhes o tão pouco!...
“I o'tra vez, meu Deus du céu!?” exclamou ele, à surdina.
Dormia
o filho Isaque; um sono brando e tranquilo qual a noite. Cobriu-o bem, a sua
mãe; deu-lhe, ademais, um beijo à testa. Ufa... Um alívio. Resfolegou-se o
espírito; a alma respirou à larga. O vento suspirava igualmente. Cerrou a
janela; também a cortina – e como não bastasse a persiana. Vai saber... Senão
um ladrão, decerto um resfriado! E este último sempre o toma de assalto. Já não
bastasse o risco do outro... “Cruz-credo! ponderou; e o Carlos, hein?...” E
sabe Deus se lhe ataca a bronquite!... Pneumonia... Nossa! E podia jurar se lhe
ouvir chiando o peito. Tudo bem, tudo bom; mas e a Carol?...
carolzinha15@hotmail.com
[23:58] diz:
oiêee amr!!! *---* td e
vx?
lekinho_alex@hotmail.com
[23:58] diz:
bem
tb =D
carolzinha15@hotmail.com
[23:59] diz:
ah q bom more *---* q faz
d bom aí?
lekinho_alex@hotmail.com
[23:59] diz:
nada so tc msm e vc
carolzinha15@hotmail.com
[00:00] diz:
só tc e ouvindo música bb =b
lekinho_alex@hotmail.com
[00:01] diz:
hum maiis tah ouvindo oq amr kk
carolzinha15@hotmail.com
[00:01] diz:
ahh d td um poco!!! kk
lady gaga, rihanna e agora funk
adorooo kkkk
lekinho_alex@hotmail.com
[00:02] diz:
kkkkk
mee amarro lol q tu fez hj amr
carolzinha15@hotmail.com
[00:02] diz:
ah nada moh tédio aff
=§ pera amr, já volto S2
Não;
a Carol não ouvira nada e nem ninguém. Estava como em outro mundo: então em seu
mundinho virtual. Preocupava-se
apenas com o seu mais novo namorado e com o mais novo sucesso de um tal MC
Tequinho. Ouviu tão-só a mãe chamar-lhe à porta, à meia-voz, dando-lhe tímidas
pancadinhas. Quis fingir estar dormindo, é bem verdade; porém a mãe lhe
advertiu do fingimento.
—
Carol!... abr’essa porta, filha! Eu sei qui 'cê tá acordada hein, garota.
—
Ah mãe... unhá! Qui sacu, ah!... resmungou a menina com um muxoxo.
Não
bastou sequer desligar o monitor. Tereza, ante a porta, vira o cintilar da tela
transpassando-lhe as frestas. No mais, a música alta denunciava-lhe a mentira;
e apesar da astúcia púbere e do fone. Abriu a porta. Entrou a mãe. Perguntou se
estava bem. Ralhou consigo, em seguida, – em baixo tom –, como se a repreensão
se lhe saísse por entre os dentes. A filha ouvia e redarguia com um desdém e um
enfado adolescente. Tereza segredou-lhe a invasão, pelo ruído; o qual afiançou.
Carol meneou a cabeça, com apatia; de todo incrédula da mãe e do relato: sabia
que era assim de exageros, invencionices... Decerto, era não mais que um mero
gato. Se ria de sua mãe e da confissão; mas, por dentro, muito embora. No
máximo deixou escapar, e a um só canto da boca, um ar sardônico. Não temia nada
e coisa alguma! indiferente a tudo e a todos; e tão mais destemida era, em
estando longe do perigo... Fez entender que tinha sono; e como um sono de quem
anseia muito a cama e o travesseiro. Ansiosa por “teclar” com o seu namo... Ameaçou lhe responder enquanto
simulava desligar o seu PC. E,
atabalhoadamente, deixou-lhe não mais que esta mensagem enigmática:
carolzinha15@hotmail.com
[00:07] diz:
“e u tteo cuu pa daa
mmorre”
Bendito
teclado... Repetiria aqui o ditado popular, mas creio estar assaz subentendido.
Deu-se outro estalo, e mais outro; um estrondo, e tão logo um escarcéu! Na
pressa, não houve tempo à correção. Carol e Tereza, sobressaltadas, se deram a
gritos e a ademanes de histeria. Estavam trêmulas e esbaforidas; quase insanas!
Carlos, por sua vez, como bramia enfurecido! E, furibundo, parecia brigar e
esbravejar com um estranho. E praguejava! Dado que o não referisse por nome
algum, senão por pseudônimos, era
decerto adivinhar que, além de incógnito, o outro era também muito querido.
Podia-se-lhe ver dando-se a murros e a pontapés! Ouvia-se ao longe como um
patear esparso, estouvado; rijo, no entanto, e impetuoso. Bem como o estalar
das havaianas. Mãe e filha se agarravam, em conforto e desespero.
Conchegando-se, esta, inda mais àquela. Faz bem, – e ao menos nestas horas –,
um bom e afável colo materno.
lekinho_alex@hotmail.com
[00:02] diz:
tah
amr
lekinho_alex@hotmail.com
[00:05] diz:
cade
vc amore
***
lekinho_alex@hotmail.com
[00:08] diz:
q issoo karol tah maluka
lekinho_alex@hotmail.com [00:13] diz:
falah
algumna coisaa crlh#
lekinho_alex@hotmail.com
[00:21] diz:
ah
eh neh... eh asssim tao tah entaum...
xau
sua fdp@!!!!!!!!
Bom,
na era virtual se lê o amor assim tão mais pela palavra – e ao pé da letra...
Neste ínterim, contudo, acorda Isaque; de estalo, em frêmito – estremunhado.
Quisera chorar e mesmo dar-se a abrir um berreiro, porém lembrou-se já contar
seus seis e meio. E não era coisa de homem e nem bonito (assim aprendera desde
os cinco), um hominho render-se assim
a um choro bobo. Pois era um hominho e não chorou; meteu o choro goela adentro,
até o esôfago! Entretanto soluçou por sua mãe... Esta que chorava qual a filha;
que bem como sua mãe, se derramava. Sem pejo algum choravam ambas. Mas tudo se
perdoa ao sexo frágil. Quem sabe, mesmo à viuvez! Quem sabe... Quem sabe à
própria morte! Assim pensava a esposa, não obstante, aventando ora o luto ora a
chacina. Quiçá um estupro! “Pobre Carol!... Eu já tô velha...”
—
Vamo chamá a pulícia, mãe! alvitrou a jovem, tremeleando.
—
Vamo sim, filha; vamo, sim! Cadê seu celulá? mi dá!
—
Mãaaêe! entrementes, berrava o Isaque.
Saltara
do beliche como fosse para o almoço ou pro recreio. Sequer deu-se por falta das
sandálias e, descalço, foi ao encontro de seus pais. Não lhos deparando,
todavia, senão u'a cama vazia e bagunçada; desesperou-se... Sentiu medo:
arrepiou-se-lhe a espinha; um frio horrendo na barriga; um não sei quê de tudo
junto e misturado! Apavorado, crendo-se só e desamparado, – abandonado! –,
chorou, então, como criança... E as lágrimas, há muito represadas,
vertiam-se-lhe dos olhos – cachoeira
– salobre e caudalosa. Tão límpida a linfa quanto a alma pueril. E debulhando-se
em lágrimas deixou o quarto de seus pais; e assim tão de repente quanto se lho
houvera adentrado. Corria hora. Corria como corre um centroavante. E ao menos
em sua mente, era um craque. Um “pereba” em verdade – dizem os colegas; porém
isto não vem ao caso. Corria. E jamais o corredor fora tão grande – imenso –
colossal! Corria. Corria assim como quem (ele próprio, por exemplo) foge ao
bullying. E uma só era então a sua meta...
—
Isaque, meu filhu; eu tô aqui. – disse-lhe a mãe, inda do quarto de sua irmã.
Assim
dizendo, e a um só tempo ao telefone, mandou a filha ir ao encontro do pequeno.
A carolzinha fora ao passo de um só
mando. Catou-lhe em meados do corredor; e, abraçando-o, tomou-lhe em seus
braços. Com Isaque então ao colo, tornou logo aos pés da mãe. Tereza inda
falava, tendo o aparelho como cosido à orelha esquerda (era canhota); mas ainda
assim encontrou meios de regaçar o seu caçula. O qual viera desde a porta a
abrir-lhe os braços. Suspirou... em profundo. E respirou assim também
profundamente. E a mãe falava ainda:
—
Olha, eu num sei; mas parece qu’é um só! dizia ela a u'a atendente do 190.
—
(Ok, senhora. Procure se acalmar, ok?...
Qual o endereço?)
—
Aqui é R. B*** de M***, nº 222; Grajaú – RJ.
—
(Ok. Copiado, senhora. Aguarde só um
instante enquanto eu encaminho a ocorrência aqui no meu sistema, ok?...)
Instantes
depois...
—
Alô?... Alô! Tá aí? tá mi ouvindu!? indaga a outra, impaciente.
—
(Só mais um momento, senhora...)
—
Ah sim...
Um
momento depois...
—
(Senhora?)
—
Sim! – pigarreou; alô!
—
(Já foi registrada a sua petição; e em
instantes estaremos enviando uma viatura. Só recomendamos que vocês não saiam
do quarto, de forma alguma; salvo como um último recurso, ok?... Procurem
manter a calma, tá ok?... Boa noite.)
Manter
a calma... Obviamente que aí falou quem desconhecia causa e uma Tereza. Esta
que se roía por dentro; a filha, às unhas; e ambas de medo e apreensão. Isaque
nada rói, senão o colo de sua mãe. Carol de pé, defronte esta, tendo os olhos
fitos sobre a mesma – assombrados. Nem se dava conta do esmalte – hora alheia à
vaidade, e de todo. Isaque era ainda um homenzinho, porém um homem deveras
assustado. Tereza se não sabe o que era, o que fosse ou que seria; mas era mãe,
sobremodo e sobretudo. Agitava ambas as pernas, aflitamente; o que servia a
abrandar-lhe a tensão e como a amainar o próprio filho. Que não chorava, porém
engasgavam-lhe os soluços.
Um
novo estrondo. Sucedendo-o, grande alvoroço! Eram panelas, copos, pratos e
talheres; tudo caindo; quase tudo em pedaços! Quiçá menor barulho produzissem,
não houvesse acaso um só ouvido ao qual tanger. Mas fora u'a barulhada de
escol! Ouvia-se também um esguichar d’água. Um ruidoso estilhaçar. Dispara o
alarme de segurança. E eram xingos, berros, gritos – quase urros! Chorava o sexo
frágil novamente. E o hominho não
estava menos fragilizado: chorava sem reservas ou escrúpulos. Chorava...
Chorava tão-somente. E hora berrava, igualmente, pelo pai:
—
Calma, filhu! tornou-lhe o pai, lá da cozinha, onde estava.
—
Paaai!
—
Calma, Isaqui! respondeu com asperidade.
Calou-se
o Carlos. E seguiu-se aqui um silêncio relativo.
—
Carlus!?... uniu-se ao coro sua consorte.
Igual
resposta? Nada!... Nem sequer um pio. Já um silêncio funéreo como invadiria
toda a casa; não fosse o alarme, o esguicho e as vozes que alevantavam o andar
de cima – e pois em choros e em clamores. Cessariam também estas; restando
apenas um burburinho angustiado. Filha e mãe confabulavam entre si, ora supondo
um fim o mais trágico e perverso, ora em desmentir o mau agouro. Compartilhavam
hora a ideia de ir ter com o pai e o marido. Hesitando, incertas – temerosas.
Se por um lado anuíam ao bom conselho da atendente, – por cautela ora, ora por
força do temor –, por outro queriam muito ver o Carlos: acudi-lo; ampará-lo;
quiçá ajudá-lo. Aplicar-lhe, quem sabe, – e ao menos –, os primeiros socorros.
Reanimá-lo! Inda fosse a ajuntar-lhe os pedaços... Assim pensando e repensando;
cotejando prós e contras; orçando ganhos, desvantagens; é que nada fariam senão
estacar. Ora imóveis, ora andando a esmo pelo quarto. E o cômodo apequenou-se
ante as passadas, que iam e vinham; sem ir, no entanto, a parte alguma. E mais
um ruído! – altissonante! – estridente!
Era
a alarma intermitente das sirenes. Não vinha uma, mas duas viaturas. Ficara,
pois, subentendido um grão perigo: um assalto – um latrocínio – u'a matança!
Vieram velozmente e de enfiada. Estacionaram em frente à residência. Logo
apearam. Quanto à Tereza e à Carolina, a boa-nova deu-lhes força e coragem a
transpor o medo e a porta; destarte, se arrojando escada abaixo. Assim fariam;
e assim fizeram. Isaque, porém, tomou outro rumo. Seguiu passo, em seguindo os
demais passos; porém quando estes desciam já os degraus, se detivera ao limiar
– irresoluto. Volveu-se, então, pé ante pé. Não se soube bem o porquê; sequer
se soube, na verdade. Carol e Tereza se foram num só fôlego, e não olhariam
para trás.
Os
policiais davam já voz de prisão, inda de fora. Com um rádio à boca, o tenente
fazia as honras da milícia. Ameaçava, com voz firme e bem impostada, que se
rendesse o invasor ou que então abririam fogo. Asseverava não haver ensaio ou
blefe. Sem uma resposta, – ou sem resposta audível –, entreolharam-se os
agentes, como que por um acordo tácito. Alfim, quando se dão a dar um aceno de
cabeça, mútuo e afirmativo, aí é que veem o que seria o vulto de um homem
erguendo as mãos em rendição. Parecia, aliás, suster u'a arma de grosso calibre
e cano longo! E assim é que se deram a arrombar a porta, malgrado a entrega. No
exato instante em que cruzavam então a sala de jantar, não mais que a filha e a
mulher do meliante...
—
Um raaatu!!! exclamaram mãe e filha, em uníssono.
—
Um ratu!? emendou Tereza, logo após.
—
Não, genti; é só um gambá!!! afirmou, assustado, o nosso Carlos.
U'a
gambá... E sustinha hora o bicho pela cauda... Pensara ele, também, que fosse
um rato; e um rato enorme! e sabe Deus do seu pavor às ratazanas!... Bem mais
que estas, o dito é horroroso! Por isso mesmo deu-se todo o estardalhaço. Tudo
equívoco e precipitação... Não havia assaltante ou assassino, senão o próprio!
Um estampido! Deus do céu!... E vinha agora lá de cima. Cadê o Isaque!? Ó meu
Deus!... Correram todos; adiante, os agentes. — Achu qui veiu lá du quartu!
palpitou Carlos. — Isaqui! gritou Tereza. — É essi u mininu? indagou o tenente.
— Sim! afirmou a família. Nem morto e nem mortes; senão que atirou contra a
foto do avô defunto... Tomou a arma de seu pai, e do mesmo velho criado-mudo, –
a fim de salvar pai e os Ferreira –, e acabou por achar não mais que u'a bala
perdida. Tudo explicado; e assim tudo resolvido. E a culpa não é disto ou
daquilo, e nem daquela ou deste; quão menos o é da displicência. Não! Vede bem
e verás que é apenas da insônia...
/////