(Carta
a Fernanda Carenina)
Como
vai você, minha filha sulista? Como está a vida neste começo de semana? Márcio
melhorou? As meninas estão bem? Ainda não comprei Rifocina. Só a vendem sob
receita. Sim, tenho tido cuidado com a porta e o vento. São sempre traiçoeiros.
Por trás de cada porta há um fantasma a nos espreitar. Aos pés dos ventos voam bactérias,
vírus e outros bichinhos letais. As iscas para pegar baratas distraídas parece
ter perdido a eficácia, pois as vejo (as terríveis e pérfidas periplanetas
noturnas) soltas por aí, como se nunca lhes tivesse eu causado o menor dos
sustos.
Ontem
aproveitei o feriado para almoçar fora (no shopping), ver o Barcelona ruir e
iniciar a leitura de mais um compêndio. Deu-se à noitinha, embora dias passados
eu o tivesse folheado. Intitula-se As
aventuras do professor Closeau (ficção e ensaio crítico da moral erótica
moderna), de Altere Aretino. Já ouço a sua recriminação: “Pai, cuidado com
essas leituras fora de época”. Sim, passou o meu tempo de Petronius Arbiter,
Sade, Henry Miller, Nabokov. E também do Bom
crioulo, d’O Ateneu, d’A mulher do caixeiro viajante (descoberto
em casa, escondido num armário, lá pelos meus quinze anos).
A
estória de Aretino me chegou às mãos por vontade de meu amigo Dimas Macedo,
esse poeta magnífico, esse crítico elegante e sofístico. De início, desconfiei
no nome do autor. Pareceu-me inventado (como dizem certas pessoas, quando se
deparam com nomes “desconhecidos” ou de feição esquisita, como Jotacá Brasiliense
da Silva Pereira, meu vizinho em Taguatinga, anos 1980, época de descobertas
maravilhosas: o poeta Salomão Sousa, por exemplo). Volto ao impresso: suspeitei
também do nome do personagem do título, certamente protagonista do romance (se
fosse romance). Tentei me lembrar de outro Closeau. E só me veio à mente aquele
inspetor dos filmes da Pantera cor de
rosa (que não são do meu tempo de menino). Primeiramente imaginei (e ainda estou
a matutar) se se cuida de obra do próprio Dimas. Por que isso?
No
prefácio (assinado por esse inolvidável filho de Lavras da Mangabeira)
encontrei esta preciosidade: “O autor deste instigante romance de costumes se
esconde, infelizmente, sob um pseudônimo, pois não acha seguro que se divulgue
abertamente o pensamento de Closeau”. Esclareciam-se, pelo menos, duas das
dúvidas: gênero (romance) e autoria (em parte). Na sequência, o prefaciador
presta mais um esclarecimento: “E dessa circunstância, é certo, faz o tradutor
deste livro uma certa aura de mistério, que funciona para o leitor como uma
segura técnica de romance, levando-o a duvidar se Altere é um alter ego de Closeau, o autor da versão
primitiva do relato ou ainda o organizador da edição que ora se dá à estampa”.
E a outra dúvida volta à tona: Quem é Closeau?
Segundo
Dimas Macedo, que sabe tudo e mais um pouquinho, “não se trata de relato
histórico, acredito. Trata-se de ficção e de memória”. A peça se completa em vinte
e três capítulos, de “Descortinando Closeau” até “Conclusões filosóficas
closeaunianas” ou das páginas 21 a 97. A segunda metade do volume é preenchida
pelo original francês: Les aventures du
professeur Closeau.
Perdoe,
filha, o ter me dedicado até aqui à publicação, esquecido de você e sua
família. E de mim também. Pois esta é apenas uma resposta à sua mensagem de
ontem. Sim, tenho me cuidado, com alimentação saudável e variada, que recursos
não me faltam. Vez por outra, excedo-me em sorvetes e outras guloseimas. Talvez
seja isto explicado pela vontade inconsciente (ou será consciente?) de ser
menino de novo. E, se assim ocorresse, você teria um menino-pai. Márcio não
iria gostar nada disso. Maria Vitória e Manuela teriam ciúmes. Os fantasmas não
deixariam de existir, porque são tão antigos quanto o homo sapiens. E as baratas? Estas, mais antigas ainda do que
aqueles, continuariam nojentas.
Peço
outras desculpas: quero falar ainda um pouquinho da brochura erótica. Não
comentarei o enredo (que demandaria mais tempo e dedicação). Ficarei na
linguagem. Parece-me longe da perfeição ou, mesmo, do aplauso ou do elogio. No
primeiro parágrafo deparamo-nos com esta preciosidade: “O professor Closeau,
por mais que fizesse, não conseguia superar o inquietante estado d’alma que o
absorvia”. Esse “inquietante estado d’alma” é tão antiquado quanto o mais
conhecido chavão. Tem cheiro de fraldas molhadas: “uma vida intensa de amor”,
“desejos irrealizados”, “um ser cheio de sofrimento”. Esse blá-blá-blá causa
até desânimo. E mais adiante: “um cinquentão eloquente e agradável”. Pouca
narração, muita descrição.
Vejamos
o início do segundo capítulo: “A vida reservara a Closeau alguns momentos
gloriosos”. Não lembra a linguagem de novela de rádio? Ou fotonovela? Quase
ninguém hoje sabe desses tipos de “arte”. E se o romance de Aretino tiver sido
escrito nos anos 1950? Nesse caso, peço perdão pela impertinência, pela
rabugice, pelo mau humor.
Minha filha, desculpe esse
palavreado todo, esse moralismo idiota. Pois é justamente esse moralismo que o
professor combatia. E ao qual Dimas Macedo se mostra atento: “Impressionante,
contudo, no caso deste livro, é a constatação de que a escrita que aqui se
veicula se mostra toda ela carregada de eroticidade e se faz contra os
princípios da moral e em defesa de uma estimulante estética do desejo”. Estou
sendo moralista, atrasado, jesuíta, medieval. Sinto-me em contradição, pois
sempre quero ser amoralista, moderno, anticristão e antirreligioso. Entretanto,
não posso concordar com estas outras palavras de Dimas Macedo: “Detenho-me na
sua linguagem literária de viés estético requintado e de criterioso acento
polifônico: vozes por certo plúrimas de quem neste livro faz do pensamento por
imagens e do fluxo da narrativa descontinuada um dos grandes achados pela
veiculação da arte literária”. Prefiro Choderlos de Laclos, de quem li as Relações perigosas, ainda na
adolescência. Ou seja, Altere Aretino está longe de ser exemplo de cultor de
“linguagem literária de viés estético requintado”. Não é só exagero, é
inverdade. No entanto, para quem ainda não leu Sade, Laclos, assim como
Petronius Arbiter, Henry Miller e Vladimir Nabokov (oh! que saudades que tenho
de Lolita!), seria bom começo. Para ir se acostumando ao prazer de ler e também
de imaginar delícias.
Encerro esta, Fernanda, com um
beijo de saudade em você, nas meninas e um abraço (assim meio de longe) em
Márcio. Que ele melhore da coluna, você se afaste da alergia e as pequenas
brinquem muito sem machucaduras preocupantes. Desfrutem todos os bons ares de
Itapema, Bombinhas, Porto Belo e estas belas praias de Santa Catarina. Se se
encontrar com Pedro e Tânia Du Bois, dê-lhes fortes abraços.
Fortaleza, 2 de maio de 2013.
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