Numa dessas tardes preguiçosas, após almoço
farto, senti vontade de sonhar. Andava com saudade de umas paisagens ou lugares
antigos: casas de parede-meia, duas janelas, porta alta, sem muro, calçada de
cimento, chão da rua coberto com pedra tosca ou paralelepípedo, um jumento a
pastar, uns pombos a arrulhar, uma carroça a passar e meninos a correr atrás de
bola. Saudade de umas pessoas esquecidas, talvez nunca vistas. Por pouco, não
cochilei na cadeira da sala. Animou-me e assustou-me o chamado estridente da
sirena. Então me lembrei de ter combinado com minhas alunas e meu discípulo
novos um cavaquinho sem pauta: tema livre. O mote ficaria por conta do acaso.
Alice andava pela cozinha ou dormia no quartinho
contíguo à área de serviço. Sorte a dela: o tal aposento guarda a biblioteca
dos poetas especiais. Seria acordada na hora oportuna, para nos servir torta
com refresco.
Corri à entrada da mansarda, ligeiro feito gato
espantado. Primeiro avistei a volátil Erykah Bloom. Penetrei-lhe a alma pelos
olhos verdes e me perdi nos mares das tormentas. Escancarei o portão e minha aflição,
para vê-la passar do vasto mundo ao minúsculo esconderijo de minha solidão. A
moça loira e seus colegas caminharam lentamente no rumo da caverna. Conduzi-os
à sala (de aula) e, sem explicação, arrojei uma pergunta insensata: “Vocês
sabem por que os casais humanos (inclusive homossexuais) querem ter filhos?” Todos
riram, como se eu brincasse com eles. Sulamita Chaves me achou “muito
engraçado”. Trazia à mão 120 dias de
Sodoma. “Estás a ler isto, mocinha?” Ela riu: “Estou a me perder, senhor”.
Ana Clara não parava de rir. “Por que tanto ris, menina?” E mais ela ria.
Fabiano não parecia ter interesse em risos e,
muito menos, em Sodoma e Sade. Deitou à mesa um Lewis Carroll de esmerado
aspecto. E pediu licença para dar resposta à questão por mim proposta: “Não
fosse o prazer sexual, certamente os homens não pensariam na perpetuação da
espécie”. Discordei dele: para mim, o ser humano só tem prazer sexual porque
tem consciência da necessidade de se perpetuar nos seus descendentes. E lembrei
meu conto “O problema fundamental da existência”. Fabiano cruzou sua fala à
minha. Minhas pupilas não devem ter entendido nada. Recitei alguns trechos da
narrativa: “Puseram-se a discutir os dois velhos, ele se dizendo preocupado com
o destino da espécie, ela apegada à moral, à religião, à lei”. O rapaz não se
atinha à minha leitura e repetia: “E qual é o problema fundamental da
existência, seu Nilto?” Também não lhe dei ouvidos. Lesse o relato. E parti
para outro argumento: “Tudo o
que fazemos é, na verdade, para amanhã e para os outros. Não é para hoje nem
para nós mesmos”.
Sulamita me contemplava, embasbacada: “De onde o
senhor tirou isso?” Ana se introduziu no alvoroto, em minha defesa: “Concordo
com o professor” (e me esquadrinhava todo). Ajeitei-me no sofá: “Tudo o que
fazemos é para a posteridade e, por consequência, para os outros. Se amamos
(fornicamos), nós o fazemos não por amor ou desejo, mas por necessidade de
perpetuar a espécie”.
No calor da discussão, senti necessidade de esfriar
a cabeça e corri ao banheiro. Meti a cara na pia, abri a torneira e me molhei
quase todo, num banho sem sentido ou sem motivo. Precisava me enxugar bem. O
que não diriam as garotas e Fabiano, se me vissem molhado daquele jeito? Fui ao
quarto e troquei de camisa. “O senhor tomou banho?” Só disse um “não” gentil e
mudei de assunto. “Convido os quatro a um lanche”. Sulamita percebeu a ênfase
dada ao substantivo: “O senhor dizia ‘merenda’ e não ‘lanche’”. Chamei Alice,
com polidez: “Senhorita, convide-nos para uma visita ao país das maravilhas”. E
nos dirigimos à sala de refeições. Esperavam-nos jarras de suco de pêra,
laranja e morango, além de admirável torta de damasco.
De regresso à sala, troquei saúde e alimentação
por morte e destruição: “José Alcides Pinto reclamava da falta de editores para
suas obras, além de homenagens e premiações. Morreu sem fama, sem honrarias e
sem editor”. Ana Clara retificou minha oração: “Ele era bem famoso (fez uma
pausa), pelo menos no Ceará”. Sulamita completou: “Merecia muito mais”.
Lembrei-me de uma queixa muito comum dele: ‘Eu quero ser lido agora. Depois de
morto, não me interessa’. Isso é sem sentido. Se escrevêssemos para nós, para
que publicar? Nem precisaríamos escrever.
Erykah pediu a palavra: “E quem garante que
ficaremos para a posteridade?” Perdi a compostura e passei a gritar: “Ninguém afiança
nada. Nenhum deus é fiador dos seres inferiores. E não precisa garantir mesmo.
Se não ficarmos, não ficaremos. Se ficarmos, ficaremos. Escrevemos para depois
de nós; nunca para antes nem para o nosso tempo (o hoje, o agora). Por isso, queremos
registrar tudo no papel, em livro. E, assim, chegamos à conclusão de que
escrevemos porque queremos nos perpetuar e não porque queremos ganhar dinheiro,
fama, homenagens, admiração. Os que escrevem movidos por esses desejos menos
nobres são simples mercadores da arte, embora muitos deles tenham conseguido
ser também artistas. Balzac é um deles. No passado mais distante de nós, os escritores
(ou os artistas em geral) queriam viver de arte. Como se arte fosse trabalho a
ser remunerado. O Marquês de Sade terá escrito aquelas indecências (como diriam
os moralistas), somente para se divertir? Ou Lewis Carroll terá desejado apenas
ficar famoso (e ficou), quando escreveu as aventuras de Alice? Vocês sabem que
o autor de Tristram Shandy...”
Sulamita abriu a boca a mais não poder e eu pude
ver quão vermelha é sua alma: “Quem?” Meus olhos se perdiam na imensidão do
nada. Então me enchi de coragem para continuar a respirar e balbuciei ou gritei
(não sei mais): “Laurence Sterne”. Nem imagino como pronunciei o nome do
escritor. Ana me socorreu: “E o que escreveu ele?” Erykah me interrompeu: “Ele
influenciou Machado de Assis”. Eu talvez não conseguisse alcançar a gaveta onde
se escondera a frase do irlandês. E completei: “Jonathan Swift também tinha
consciência da própria perenidade”. A sensualíssima Erykah Bloom, que se diz leitora
dos meus contos, lembrou: “O senhor gosta muito dele, não é?” De pronto,
respondi: “Como você não pode imaginar”.
Bruscamente mirei o rapaz: “Você já concluiu a
leitura de Breno Accioly?” O jovem se espantou: Sim, já, havia muitos dias.
Agora se dedicava a Alice no país das
maravilhas. “E você (e me dirigi a Ana Clara) já conseguiu chegar à última
página de García Márquez?” Esse também se preparou para a posteridade. “Para
encerrarmos a lengalenga, leia uma frase, só uma, lá pelo meio, um trecho curto
grifado por você”. Folheou para frente e para trás o grosso volume e, a sorrir
feito libélula pronta para o voo inaugural,
balbuciou: “Un frío interior que le rayaba las huesos y
lo mortificaba inclusive a pleno salle impidió dormir bien varias meses, hasta
que se le convirtió en una costumbre”. Batemos palmas. E nos
levantamos das cadeiras para até outro dia de mortes e eternidades.
Fortaleza, 22/23 de abril de 2013.
/////