Vejam que coincidência.
Z anda para cima e para baixo com um Neruda debaixo do braço, está naquela fase
vulnerável, vinte, vinte e um anos, quando amor e rebeldia se transformam numa
química explosiva. Há pouco ou nada o que fazer na pensão em que Z vive. Tanto
pior. O efeito Neruda pode ser ainda mais devastador para uma situação assim.
Nesse lugar de beira de
estrada, uma pocilga mal-disfarçada em lar de interior, os hóspedes chegam,
ficam uma noite e vão embora. No entanto, dois ou três sujeitos têm permanecido
lá por mais tempo, jovens bancários que um desvio do destino arremessou naquele
buraco no fim do mundo. Z é um desses rapazes e uma noite ele está encarando um
jantar de quinta e parece não haver mais ninguém na ampla e silenciosa sala.
Então um homem vem deslizando com movimentos lentos e ocupa uma cadeira no lado
oposto da mesa. Dele sai um boa noite discreto e quase inaudível, enquanto vai
manejando com calma os talheres. Z percebeu uma sutileza na pronúncia, um
detalhe, uma entonação diferente. Espanhol, talvez argentino, pensou Z. Mas o
homem era chileno, foi o que ele afirmou, depois de ser inquirido por Z.
Não tinha cara, jeito
ou cor de chileno. Mas o que é que Z entendia dessa gente? A bem da verdade, o
chileno tinha ares de hippie velho, uma juba farta lhe caía até os ombros, mas
escasseava cabelo no topo, e talvez fosse esse pequeno detalhe que lhe conferia
um ar de velho precoce. Essa foi a primeira impressão de Z. Mas, em absoluto, se
tratava de um velho. O chileno era alto e magro, nem tão alto nem tão magro. Os
modos eram de um padre, palavras proferidas educadamente, em plena sintonia com
seus movimentos de mãos e braços. Como um padre em pleno púlpito, mas isso
podia ser apenas comedimento diante de um estranho. Z fala de Salvador Allende,
e de Neruda, e de Gabriela Mistral, em pouco tempo esgota o seu repertório
sobre o pequeno país, mas não a curiosidade.
Z tenta adivinhar a
idade do chileno, se perde em cálculos. Se esse chileno tiver quarenta anos,
era um rapazola nos tempos de Allende. E nenhum jovem rapaz, a menos que fosse
acéfalo ou bucéfalo ou um janota irremediável, atravessaria incólume aquele
período tisnado de sangue da história do Chile.
Você morava no Chile nos
tempos de Salvador Allende? indagou Z, sem rodeios, direto como uma bala.
O chileno suspende a refeição por um momento, o garfo parado no ar, o olhar
mirando um ponto qualquer, antes de responder, sem emoção, sim, eu morava lá,
fugi para a Argentina logo após o golpe. E ato contínuo voltou a degustar sua gororoba.
Z não se fez de rogado e voltou à carga, aquilo havia transposto os limites de
um simples jantar e estava ganhando os ares de inquisição. Era uma questão de
honra para Z esclarecer se o chileno era um herói ou traidor. Aos vinte, vinte
e um anos, o mundo não passa de uma imensa geografia maniqueísta.
Éramos dois irmãos,
disse o chileno, meu pai era funcionário público, a minha mãe uma professora de
escola primária, meu abuelo (dito assim mesmo em espanhol, peguei no ar,
sem dificuldade) um ex-integrante da guarda municipal de Santiago de Chile. Foi
o que ele começou a contar, sem se abalar. Minha família pertencia a um tipo de
classe média remediada. Não éramos pobres, mas muy temprano (captei de
novo sem esforço, puro espanhol, para meu puro deleite) compreendi que a
riqueza era algo que não nos alcançaria, tamanho era o fosso entre os muito
ricos e os muito pobres no Chile daqueles tempos. O dinheiro dos meus pais era
curto, muito mês, pouco salário, disse o chileno, com um gracejo, sorrindo pela
primeira vez. Eu tive de pegar cedo no batente. Meu tio, um bom homem que já se
foi, me arrumou um emprego. Fui trabalhar de vendedor numa livraria no centro
de Santiago. Para mim estava tudo nos conformes. Sempre adorei os livros. Para
impressionar o chileno, ou quem sabe para fazê-lo ir mais fundo em suas
memórias, Z mostra-lhe o livro de Neruda que deixara repousando do lado do seu
prato. Lê para o chileno uma passagem sublinhada a lápis, da qual muito havia
gostado.
Para mudar o mundo não basta apenas uma dose de poesia, mas um coração resoluto.
O chileno toma o livro
das mãos de Z e lê a frase em silêncio. Depois dá o veredicto, afirmando que o
dito é profundo e verdadeiro e devolve o livro a Z.
A artimanha surtiu
efeito. O chileno, mesmo em seu tom amaciado, se torna loquaz. Fui trabalhar na
livraria, prosseguiu ele. Foi um alumbramento, pois tomei conhecimento dos
grandes da literatura latino americana. Mergulhei na melhor prosa do melhor
Cortázar, Borges, Lezama Lima, Bioy Casares, Rulfo, García Márquez... Pela
primeira vez nos meus 16 anos eu estava descobrindo a plenitude do nosso
enxovalhado e espezinhado continente. Minha mente se desanuviava a cada
leitura, mas eu também ficava confuso como os diabos. Você não passa impune por
uma grande obra. Entenda, era um admirável mundo novo que se abria, como se uma
trilha secreta se abrisse nas montanhas que cercam Santiago, e através delas eu
pudesse chegar ao santo graal. Mas veja, o que há é destino, eu havia crescido
acreditando em suas linhas tortas, minha mãe acreditava, meu pai acreditava,
minha avó acreditava, meu avô (curioso, ele não usou a palavra em espanhol
dessa vez) acreditava, todos acreditavam piamente no destino. Somos um
continente marcado pela crença no destino, e foi esse destino que me trouxe
Juanita. Ela era uma moça tímida na aparência, apareceu um dia na livraria para
trabalhar, diziam que tinha vindo do interior. Tinha dois anos a mais do que
eu. Gostei dela de cara, uma morenita de cor amarronzada, cabelos lisos até a
altura dos ombros, olhos ligeiramente apertados, denunciando traços indígenas,
pernas que pareciam perfeitas sob as pantalonas. Ela nunca usava vestido ou
saia, e isso era para mim um mistério. Um dia me enchi de coragem e convidei
Juanita para sair. Ela disse que sim. Combinamos nos encontrar numa birosca a
algumas quadras da livraria. Lá jantamos, tomamos uns goles de uma cerveja
escura que fazia sucesso em Santiago naqueles tempos, depois saímos andando,
lado a lado, sem um rumo certo, falando coisas frívolas e maledicentes sobre os
colegas da livraria. Não senti em Juanita nenhum clamor por sexo, por isso
resolvi deixá-la num ponto de ônibus qualquer e fui direto para casa. Naquela
noite sonhei que atravessava um rio com Juanita, somente nós dois num pequeno
barco de madeira, chegávamos do outro lado, tinha uma choupana de palha,
Juanita saía correndo e fechava a porta atrás de si, eu entendia suas
intenções, meu coração palpitava e parecia que ia saltar pela boca, eu fui
atrás, Juanita estava nua em pelo estirada numa rede, ela acenava com o
indicador, como num convite, seu olhar, eu diria, era o próprio espelho da
concupiscência, eu tremia e suava bicas, eu tinha a impressão de que não
conseguiria chegar ao meu destino, na pouca distância que me separava da rede
eu já podia divisar os bicos dos pequenos seios de Juanita, noutro ângulo um
pedaço de suas nádegas, e num entrecruzar de pernas eu percebi a mancha escura
e densa, então eu marchei para cima dela, eu suava bicas, picas, como eu suava
bicas, mas havia uma ordem imperiosa do meu corpo ordenando que eu fosse até lá
e que liquidasse a fatura, e foi o que fiz. No dia seguinte, fui para a livraria
tomado por uma euforia febril, mas Juanita havia faltado, disseram que tinha
contraído uma virose e estava convalescendo na casa de uma tia, provavelmente
com quem ela morava em Santiago. Juanita só veio dar o ar da graça dois dias
depois, e parecia que nada lhe havia acontecido, estava tão bem humorada que
duvidei que estivesse andado doente. Marcamos outro encontro, em outra birosca
no centro da cidade, e nesse dia a minha vida deu uma guinada, pois com um
pequeno gesto de Juanita, sem que ela soubesse, eu estava selando o meu
destino. Conhece o filósofo Carlos Marx? me perguntou Juanita, à queima roupa.
É certo que não o conhecia, e ela então me passou, não sem um certo ar de
desconfiança, um livro grosso desse tal filósofo. Juanita me falou de um grupo
que se encontrava nos fins de semana num local secreto na periferia de
Santiago. Disse que os seus membros promoviam saraus, noitadas animadas e
regadas a poesia, bebidas, petiscos e deixou algo a mais no ar. Aquela Juanita
sabia provocar um rapazote de 16 anos. Foi então que Z despertou do seu torpor
e, como se quisesse adiantar o rumo das coisas, perguntou e Allende? Você comeu
ou não essa moça? Calma, meu camaradinha, falou o chileno, devagar no andor.
Essa história não tem pé nem cabeça, mas não fui eu que a inventei. E continuou
rememorando sua aventura com Juanita. Juanita e eu fomos até o tal lugar
secreto, ele prosseguiu, e lá parece que acontecia uma reunião, havia uns caras
exaltados, e o fulcro das discussões não era literatura coisíssima nenhuma, e
só depois fui perceber que conspiravam contra alguém em favor de Allende. O
chileno para para tragar um cigarro malcheiroso, expulsa a fumaça para o alto e
segue em frente. Eu senti o perigo no ar, no seio da minha família jamais
discutíamos política, éramos classe média acomodada, mas não éramos
reacionários. Estávamos todos exultantes com a chegada de Allende ao poder, embora
acreditávamos que aquilo tudo era fogo de palha, que o nosso continente estava
predestinado a padecer no inferno ad eternum da corrupção, da hambre
(assim mesmo, em espanhol, captei na hora, uma fruição ouvir a pronúncia
castiça) e da impunidade. De modo que, não sem ânsia e aflição, aderi àquela
confraria de conspiradores, e mergulhei fundo nas páginas de Carlos Marx e no
meu desejo de comer Juanita um dia. De sorte que eu empenhava toda a minha
energia de rapazote, um já mezzo hombre (juro, ele falou assim mesmo
nessa mistura castiça de espanhol e italiano, um deslumbre curtir sua cultura
babélica) nessa empreitada que misturava amor e rebelião. Sabe, que curioso, eu
jamais questionei Juanita sobre seu passado, se tinha família, se estudava ou
se queimava a vela de sua existência entre as quatro paredes da livraria no
centro de Santiago. Mas isso eu viria a descobrir na marra, como se diz, na
porrada, como se diz também, na bruta, como também se costuma dizer. Lembro-me
como se fosse hoje, eu havia acordado de uma noite mal-dormida, devo ter
exagerado no jantar ou coisa do tipo, eu estava escovando os dentes, o rádio
estava ligado na cozinha, tinha uma empregada índia que administrava a rotina
da casa durante a nossa ausência, ela era fissurada em um programa popular da
Rádio Nacional de Santiago, uma espécie de correio sentimental dos pobres
apresentado pelo ultrafamoso e celebérrimo Benício Alvarez, um jornalista
cinquentão, veja só, nascido no Uruguai mas radicado no Chile, o mundo dá
muitas voltas. O fato é que Maria Cruz, a empregada, está com o rádio a todo o
volume, seu consolo contra a solidão, e o fato é que Benício Alvarez anuncia
uma interrupção na programação para dar uma notícia extraordinária. E a notícia
não poderia ser mais acachapante, mais trágica, mais dolorosa, mais pungente,
mais tenebrosa, mais assustadora, mais delirante, mas era a pura verdade. A
notícia que parou Santiago de Chile naquela manhã é que o Palácio La Moneda
havia sido bombardeado e que Salvador Allende, a nossa esperança de una
pátria libre (juro, ele falou em espanhol, castiço, claro) resistia sabe-se
lá Deus como. Tremi dos pés à cabeça, ainda segurando a escova no alto da boca,
sem acreditar, e não sei porque cargas d'água pensei incontinenti em Juanita,
algo me dizia que ela estava implicada, não, algo me dizia que ela estava
ferrada, fodida, ela e seus amigos da confraria. Saí correndo para a livraria,
talvez lá tivessem algum telefone dela, eu queria ter certeza de que ela estava
segura, mas não consegui andar um quarteirão, havia policiais por todos os
lados, as pessoas andavam apressadas, aparentemente sem direção. Voltei para
casa, a emissora de rádio e consequentemente a voz de Benício Alvarez tinham
ido pro espaço e Maria Cruz, la pobrecita (juro, assim mesmo, em espanhol)
chorava sem entender que estávamos caminhando para o fim do mundo. Eu estava
encurralado, sem saber que decisão tomar, eu só pensava em Juanita, e eis que mi
madre y mi padre (juro, ditos desse modo em espanhol) adentram a casa,
esbaforidos, descabelados, o horror, o horror em suas faces, chorosos e
trêmulos e gritando eu sabia, eu sabia, eu sabia, esse é um continente
predestinado a sofrer. Ficamos todos, eu, mis padres (sic, em espanhol,
claro), Maria Cruz a lamentar seu programa perdido e meu irmão em angustiante
compasso de espera à espera de notícias, mas a cidade, as comunicações, tudo
havia se transformado numa barafunda. E Juanita? indagou Z já completamente
fisgado pela história do chileno, enquanto espetava maquinalmente um naco de
carne. Calma, mi compadre (bem assim, em espanhol), eu jamais voltei a
encontrar Juanita, mas não vamos pôr o carro na frente dos bois. Eu jamais
reencontrei la morenita mia (dito dessa forma, espanhol castiço,
naturalmente), mas no dia seguinte os jornais já davam conta da caçada aos
comunistas partidários de Allende e contra Pinochet. E lá na primeira página do Correo
de Santiago estava a foto de Juanita e seus comparsas, caçados e executados
em uma batida policial. Quedei-me em desespero, a mulher que eu já começava a
amar estava destroçada, desfigurada por balas assassinas, caçada como rato pela
polícia política de Pinochet. Pela primeira vez, eu senti a maldição da
latinidade, e, não sei precisar o porquê, pressenti que corria perigo. Chamei
meu pai para uma conversa em particular e abri o jogo, eu havia sido parte
(tangencialmente, superficialmente é claro) daquele grupo que acabara de ser
varrido do mapa pelos sicários. Meu pai a tudo ouviu lívido de pavor. Ao final
do nosso colóquio, convocou meu tio para uma reunião a portas fechadas. E horas
depois eu recebia a sentença, a partir daquele momento eu seria um fugitivo.
Minha mãe, num choro plangente, preparou meus pertencentes, me despedi do meu
irmão com um abraço, fui até a cozinha e abracei Maria Cruz e apertei-lhe um
naco da bunda (essa é uma história que esqueci de contar), olhei meu pai bem
nos olhos, e fui carregado por meu tio para um lugar desconhecido lá na ponta
do Chile. De lá, vaguei por dias em veículos caindo aos pedaços, lombos de
burro, barcos, até chegar a um lugarejo na Argentina. Trabalhei até os 20 nos
pampas, sentindo uma saudade mortal dos meus pais, de Santiago e da minha
Juanita morenita, pobrecita (sim, dito desse jeito em espanhol). Um dia
conheci um brasileiro e ele me disse que poderíamos conseguir um trabalho
melhor na França, que as europeias eram todas umas putas, que todo o continente
havia se transformado num rio de sangue, que seria muito peligroso
(pronúncia castiça, dito assim, em espanhol) ficar por aqui, mas eu, que mato e
morro pela minha América Latina, que não abro mão da minha latinidad
(juro, assim falado, em espanhol puro), declinei o convite e vim para o Brasil.
O chileno fez uma pausa, respirou profundamente, tomando fôlego para contar
mais, narrar mais. Z cortou mais um pedaço de carne, que espetou com o garfo e
que traçou demoradamente, enquanto esperava que o chileno prosseguisse.