“Poesia Portuguesa Contemporânea” reúne
produções de 26 poetas portugueses que se destacaram ao longo do século XX
Lançada
com o apoio do Instituto Camões, do Instituto Português do Livro e das
Bibliotecas e do Ministério da Cultura, “Poesia Portuguesa Contemporânea” reúne
produções de 26 poetas portugueses que se destacaram ao longo do século XX.
Organizado pelo professor Vadim Kopyl, diretor do Centro Lusófono Camões da
Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, o livro traz
esclarecedor prefácio de Fernando Pinto do Amaral (1960), além de alguns poemas
de sua própria autoria. Os poemas foram vertidos para o russo por tradutores do
Centro Lusófono Camões com participação de Helena Golubeva (como
tradutora-tutora).
Não se pode dizer que esses 26 poetas são os mais representativos da poesia portuguesa de hoje, até porque esse tipo de avaliação varia bastante e é susceptível de alteração, dependendo do gosto pessoal do avaliador, mas, seja como for, é inegável que todos são reconhecidos pelos críticos mais acreditados e ocupam lugar cativo nos cânones universitários de estudos de Literatura Portuguesa em Portugal e no Brasil. Muitos deles ainda estão em franca atividade, com suas obras em progresso, sob a influência dos acontecimentos deste século XXI.
Entre
aqueles que ainda estavam vivos quando esta antologia foi organizada
destacam-se Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Eugénio de Andrade
(1923-2005), que estrearam na década de 1940 e praticaram uma poesia marcada
pela independência em relação aos grupos que dominaram a cena literária até os
anos de 1970, ou seja, o neo-realismo, o surrealismo, o experimentalismo e
outros movimentos derivados do Modernismo.
Como
Fernando Pinto do Amaral observa, os nomes fundamentais da poesia portuguesa
contemporânea são alguns sobreviventes da década de 1950: Pedro Tamen (1934),
Fernando Guimarães (1928) e Fernando Echevarria (1929), que têm entre si a
preocupação comum de exercitar uma poesia de apelo metafórico em meio a versos
neo-barrocos.
Se
em António M. Couto Viana (1923) o que se destaca é uma consciência trágica da
existência, como diz o prefaciador, em Egito Gonçalves (1920-2001) o que se
sobressai é um lirismo erótico, ao mesmo tempo em que esse lirismo passa para o
campo homo-erótico em Eugénio de Andrade.
A
critério deste articulista, porém, nenhum desses nomes, ainda que tenham lá
todos os méritos, alcança a dimensão de Alexandre O’Neil (1924-1986), com seus
poemas corrosivos e que se afastam de um certo ranço de boa parte de seus
pares. Veja-se, por exemplo, estes versos de “O quarto”:
Aqui dormi.
Aqui sonhei.
Aqui me masturbei.
Aqui sonhei.
Aqui me masturbei.
De parede,
o mesmo azul do mapa
me convida.
o mesmo azul do mapa
me convida.
Mas não fui de “longada”
De lombada em lombada,
Quanta estante corrida!
De lombada em lombada,
Quanta estante corrida!
Quem
também subverteu a tradicional grandiloquência da poesia lusa foi Manuel Alegre
(1936), que se destacou na luta estudantil contra o regime forte de António de
Oliveira Salazar (1889-1970) e ainda hoje é voz que se levanta na Assembleia da
República contras as iniquidades cometidas pelos governantes, o homem “do
contra”, que se pode sentir em seu poema “Carta a Sophia, ou O quinto poema do
português errante”:
Querida Sophia: como os índios do seu poema
também eu procurei o país sem mal.
Em dez anos de exílio o imaginei
como os índios utópicos também eu queria
um outro Portugal em Portugal.
Mas quando regressei eu não o vi
como eles me perdi e nunca achei
o país sem mal.
também eu procurei o país sem mal.
Em dez anos de exílio o imaginei
como os índios utópicos também eu queria
um outro Portugal em Portugal.
Mas quando regressei eu não o vi
como eles me perdi e nunca achei
o país sem mal.
Talvez a própria vida seja isto
passar montanha e mar sem se dar conta
de que o único sentido é procurar.
Como os índios do seu poema eu não desisto
sou um português errante a caminhar
em busca do país que não se encontra.
passar montanha e mar sem se dar conta
de que o único sentido é procurar.
Como os índios do seu poema eu não desisto
sou um português errante a caminhar
em busca do país que não se encontra.
Diz
Fernando Pinto do Amaral que, a partir da década de 1970, gestou-se na poesia
portuguesa a busca de uma lírica mais próxima do cotidiano, na tentativa de
aproximar-se mais do leitor. Dessa geração, o nome mais consagrado talvez seja
o de Nuno Júdice (1949), o mais traduzido dos poetas portugueses de hoje.
Cultor do verso livre, seu estilo aproxima-se em demasia do brasileiro João
Cabral de Melo Neto (1920-1999). Quem duvida que leia o poema “Sinfonia para
uma noite e alguns cães” e depois o compare com aquele em que João Cabral de
Melo Neto fala do esforço dos galos para tecerem a manhã:
De noite, um cão começa a ladrar; e,
atrás dele, todos os cães da noite
se põem a ladrar. Depois, o primeiro
cão cala-se. Pouco a pouco, os outros
também se calam, até que o silêncio
se instala, como antes de o primeiro
cão ter ladrado. De noite, não
é possível saber por que é que um cão ladra,
se o não estamos a ver. Talvez porque
alguém tenha passado por trás de um
muro; talvez por causa de um gato (essas
sombras que se esgueiram pelas portas).
Não é preciso encontrar razões concretas
para justificar a noite de todos os
cães: mas é verdade que um cão, quando
ladra, e acorda os outros cães, acorda
a própria noite, os seus fantasmas, o que
não se pode ver, isto é, o centro da
noite, o negro motor do mundo.
atrás dele, todos os cães da noite
se põem a ladrar. Depois, o primeiro
cão cala-se. Pouco a pouco, os outros
também se calam, até que o silêncio
se instala, como antes de o primeiro
cão ter ladrado. De noite, não
é possível saber por que é que um cão ladra,
se o não estamos a ver. Talvez porque
alguém tenha passado por trás de um
muro; talvez por causa de um gato (essas
sombras que se esgueiram pelas portas).
Não é preciso encontrar razões concretas
para justificar a noite de todos os
cães: mas é verdade que um cão, quando
ladra, e acorda os outros cães, acorda
a própria noite, os seus fantasmas, o que
não se pode ver, isto é, o centro da
noite, o negro motor do mundo.
Entre
as vozes femininas mais importantes da poesia portuguesa dos últimos anos está
a de Rosa Alice Branco (1950), que se iguala ao de Ana Maria Hatherly (1929),
ambas contempladas nesta antologia ao lado de Luísa Neto Jorge (1939-1989),
Fiama Hasse País Brandão (1938) e Sophia de Mello Breyner Andresen, todas de
gerações anteriores e poetas das mais finas. Como exemplo do vigor de sua
poesia, veja-se este trecho de “Atrás dos dias”, um hino ao amor materno:
(...) Fazes os deveres, ensino
os números a obedecerem-te e a amares
as letras umas ao lado das outras, solidárias
como uma pequena vírgula para que o silêncio
receba a tua voz. Voo junto às tuas asas,
lubrifico-as e fico a ver como se suavizam
os traços do teu rosto. Agora vais partir.
Irei um pouco atrás com a cor da tarde
para não ser vista. Por mais que vás
estarei de mansinho atrás das asas. Ser mãe
é ir assim. É assim que vou à fonte.
os números a obedecerem-te e a amares
as letras umas ao lado das outras, solidárias
como uma pequena vírgula para que o silêncio
receba a tua voz. Voo junto às tuas asas,
lubrifico-as e fico a ver como se suavizam
os traços do teu rosto. Agora vais partir.
Irei um pouco atrás com a cor da tarde
para não ser vista. Por mais que vás
estarei de mansinho atrás das asas. Ser mãe
é ir assim. É assim que vou à fonte.
Como
Fernando Pinto do Amaral reconhece em seu prefácio, muitos nomes
representativos da poesia lusa podem ter ficado de fora, mas este é um risco
implícito de toda antologia. Seja como for, este livro constitui um panorama
lúcido da vitalidade atual da literatura portuguesa.
*Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa.
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