1.
Efe acelerou o passo,
já deu por cumprida sua caminhada matinal. É cedo ainda e não há vivalma na
praça do bairro em que mora e costuma exercitar o corpo três vezes por semana.
O médico foi peremptório. Ou anda, ou morre. Quarenta, quarenta e poucos.
Funcionário público, dívidas, vida sentimental estagnada, filhos em idade
escolar, time do coração rebaixado. Pouco não é. Efe não quis pagar pra ver.
E assim, a contragosto,
deu início ao seu programa pessoal de cuidados com a saúde.
E foi andar.
E andando e respirando
e andando e respirando é que se deu conta: cometera um grave esquecimento.
Trouxera a chave da casa. Os filhos, dois, um casal, não poderiam sair para a
escola.
Soltou um palavrão,
alto e bom som. Que surpreenderia até um malandro de escol. Preocupado e
subitamente envergonhado, olhou em volta, como que se desculpando.
Mas quanto a isso ele
não precisava se incomodar.
A rua estava vazia.
Vazia como um prado orvalhado. Péssima associação. Mas nada melhor lhe acenou.
Efe então sacou o
celular.
Sem carga.
Numa hora dessas?
3.
Sem
carga e numa hora dessas.
Mais
uma tentativa. Morto como um gato morto. Péssima comparação. Mas foi o que lhe
ocorreu.
Correu
para o orelhão mais próximo. Os filhos, a mulher, todos certamente o estavam
maldizendo. Cada um a sua maneira.
Poltrão.
Pai
desalmado.
Bugre
velho.
Gagá.
Tonto.
Cabeça
de vento.
Inútil.
Indolente.
4.
Morte
aos políticos!
Era
o que dizia a pichação no orelhão. Efe concordou cem por cento. Curvou o corpo,
mergulhou na concha, esfregou a mão no rosto num gesto mecânico, ia puxar o
telefone do gancho.
Trim.
Trim. Trim.
Uma
ligação chegando.
Numa
hora dessas?
Stop.
Titubeou um instante. O que fazer? Ponderou o rol das possibilidades.
Falha
sistêmica da telefônica.
Alguém
em apuros do outro lado.
Um
encontro marcado ao qual ele – ou ela – faltou.
Típico
toque de acordar dos orelhões.
Nenhuma
das opções.
O
tempo passava e Efe se exasperava. Não teve escolha.
Atendeu.
5.
Do
outro lado da linha soou uma voz espectral. Como se viesse do além.
Do
além do além. Em ondas.
Uma
voz masculina. Bem empostada. Dicção clara.
–
Eu sei que você está em apuros.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Tenho o que você precisa.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Cinquenta mil em cash, na mão.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Mas precisamos de um serviço em troca.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Esteja no Sujinho, hoje, às nove da noite. Eu o abordarei. E vá sozinho,
entende? Solo, completamente solo. Ao meu pedido de cigarro,
você deve responder com a senha secreta: Adélia.
Desligou.
6.
Há
mais mistérios entre o céu e a terra. Etc. Do que pode imaginar. Etc. Nossa vã
filosofia. Etc. Mas para Efe era mistério em demasia. Too much.
Ele
não acreditava em bruxas.
Nem
em gnomos.
Nem
em duendes.
Nem
em mula-sem-cabeça.
Nem
em fantasmas.
Era
o que se pode chamar de um pé-no-chão, um realista em preto-e-branco, algo como
um filme de De Sicca. Um sujeito cartesiano como uma reta euclidiana. A voz
disse Adélia. Certamente o conhecia. Adélia era sua amante. Coincidência?
Sim.
Não.
Sim
e não.
Sim
ou não.
Sentiu
uma tontura. Hipoglicemia. Ligou para casa. Ouviu xingamentos, todos possíveis,
saiu voando. Liberou os filhos.
Banho,
café, escritório.
7.
No
escritório, a fauna kafkiana de sempre. O chefe depositou sobre sua mesa um
processo espinhoso. Justamente hoje, que ele estava sem cabeça. Aliás, a cabeça
estava girando.
Em
parafuso.
Em
cambalhotas.
Em
ziguezague.
Errática.
Caleidoscópica.
Fractral.
Adélia
se aproximou e falou o tradicional bom dia capcioso, cifrado, numa sintonia que
só eles sabiam. Eles e Marmitão, o melhor amigo de Efe. Essas coisas a
gente acaba sempre contando ao melhor amigo.
Adélia
estava usando a saia vermelha e a blusa branca. Parecia tão lânguida e sexy que
Efe podia sentir o cheiro de sua calcinha. Esse jeito Adélia de se vestir era a
senha para que saíssem à tardinha, depois do expediente.
Senha.
Adélia. Noite.
A
associação provocou um sobressalto em Efe. Ele teria de decidir sobre a voz e
sua proposta misteriosa.
8.
Uma
proposta misteriosa. E atraente. Como negar? Efe estava de fato em apuros.
Acumulava dívidas até a raiz dos cabelos. Andava metido num esquema. Um
desses tantos rolos da Administração Federal, um ralo do dinheiro público. Etc.
Corrupção aos borbotões. Etc. Prevaricação. Etc. Ele queria pular fora enquanto
ainda era tempo. Mas teria de saldar seus compromissos com a gangue.
Marmitão
também estava nessa. E se dividisse o infausto ocorrido da manhã com ele? Era ou
não era Marmitão seu melhor amigo?
Foi
ter pois com Marmitão no almoxarifado.
A
manhã avançava a passos largos, allegro cantabile, como no andamento
duma sinfonia. Péssima comparação. Fazer o quê?
9.
Marmitão
estava embrenhado num emaranhado de caixas e pacotes de todos os tamanhos.
Bufava e suava e dizia palavrões enquanto anotava numa prancheta. Ele engordara
tanto que não fazia muita diferença se observado de frente, de costas ou de
perfil. Bom garfo e bom copo. Não ganhara o apelido à toa.
Efe
não podia segredar o assunto ali, naquele ambiente cheio de olhos e ouvidos, um
covil de arapongas e sacripantas e mexeriqueiros e bajuladores e alcaguetes.
Combinaram
almoçar juntos.
E
juntos saíram na hora acertada.
10.
Efe
mal tocou no almoço. Levou todo o tempo a detalhar o infausto ocorrido daquela
manhã.
Marmitão
almoçou o tempo todo, mas não perdeu um só detalhe da narrativa fantástica de
Efe.
Efe
falava e falava e falava.
E
Marmitão ouvia e ouvia e ouvia.
À
guisa de um relatório, mantendo o hábito e vício e costume de um típico
colarinho branco, Efe pôs um ponto final na sua explanação. E fitou Marmitão,
esperando uma reação do amigo.
Marmitão
ainda arrematou uma última garfada, bebeu o resto da cerveja, olhou para os
lados, inclinou-se um pouco à frente aproximando-se mais de Efe, olhou-o nos
olhos e sussurrou.
Fifty fifty, meu velho, fifty
fifty.
11.
Com
o quê? Marmitão não só deu corda à aventura daquela noite, como propôs uma
divisão meio a meio do eventual lucro da operação, fosse lá qual fosse.
Mas
não podiam enfrentar o desconhecido sem um plano.
E
foi o que combinaram fazer.
12.
A
mulher de Efe era a expressão da desconfiança em pessoa. Amuada, ouvia o marido
explicar que naquela noite teria uma importante reunião de trabalho.
Que
precisaria chegar tarde.
Que
não esperasse por ele.
Que
não mandasse as crianças para a cama sem escovar os dentes.
Que
não esquecesse de lhe contar o final do capítulo da novela.
Que
lavasse sua camisa bege com gravata branca para o dia seguinte.
Que
isso, que aquilo.
13.
O
Sujinho, ao contrário do que o nome sugere, não era sujo. Estava mais para uma
birosca bem movimentada, situada num ponto da orla.
Casais
jovens e não tão jovens entravam e saiam. Um vaivém tremendo. Um entra-e-sai frenético.
Um
lugar perfeito para ser observado sem se deixar notar, foi o que Efe concluiu.
A Voz sabia o que estava fazendo.
O
que acontecera com Marmitão? Combinaram de chegar ao local uma hora antes das
nove. Efe permaneceria sentando bebericando uma água mineral sem gás, simulando
uma espera.
E
Marmitão se postaria próximo à entrada, de onde poderia ter uma visão
privilegiada e totalizante do ambiente.
Ele
surgiu com dez minutos de atraso, lançou um olhar discreto de OK para Efe e foi
para o seu posto.
Uma
cena digna de um filme noir, faltando apenas Cadillacs, Pontiacs, glamour
girls, ventiladores de teto girando indolentemente, luzes de neon e uma
pena certeira como a de Dash Hammet para incutir charme à história.
Efe
escrutinou o local. Dondocas para dar e vender. Pensou em Adélia. Embora
nervoso, degustou as lembranças do último encontro. O affair já durava
dois anos. Amor cozinhado em fogo brando, sem solavancos, o necessário para
amenizar as frustrações cotidianas. Melhor assim. E não poderiam avançar
mais na trilha. Por uma razão simples. Adélia era casada. Sem filhos. Trinta e
cinco anos. Segundo casamento. O primeiro foi para o brejo. Era muito jovem.
Casou-se grávida. Perdeu o filho. O marido não suportou a barra. Foi embora
para o exterior. Tempos depois Efe entrou na jogada.
Marmitão
conversava animadamente com uma morena teen, mas com jeito de rodada.
Marmitão não brincava em serviço. Efe receou que ele já tivesse esquecido do
seu papel ali.
Súbito,
uma voz.
–
Você tem um cigarro?
Era
uma jovem vendendo flores. Efe voltou-se com tanta brusquidão na direção dela
que sentiu uma fisgada no pescoço. Lembrou-se do que a Voz havia orientado.
Respondeu então, quase sem ar:
–
Adélia.
A
moça lhe estendeu um buquê de rosas e já estava girando nos calcanhares quando
um tiro se fez ouvir.
14.
Nesses
momentos o seu senso de direção dita que você deve procurar a porta de saída. E
foi o que Efe tentou fazer.
Mas
era difícil achar a saída.
Muito
menos a moça das flores.
Muito
menos Marmitão.
Num
reflexo Efe arrebatou o buquê de rosas, por sorte não havia esquecido dele.
Na
gritaria geral, uma voz tronitruante pôde ser ouvida. Ela vinha do sistema de
som do Sujinho. Alguém pedia peloamordedeus que todos tivessem calma.
Mas
calma é tudo que não se tem numa hora dessas.
Com
muito esforço, e sem compreender como conseguiu, Efe ganhou a saída.
O
bafo da brisa marinha lhe acertou o rosto em cheio. Um alento.
Nem
sinal de Marmitão. E muito menos da florista.
Efe
chamou um táxi e sumiu na escuridão.
Num
fade in, a cena foi se fechando, como num filme noir.
15.
Carrossel,
a vida é um carrossel, foi o que pensou Efe enquanto sua cabeça girava sem
parar e o táxi rodava pelas ruas mal iluminadas e ele se dava conta de que
segurava o tal buquê.
E
do buquê caiu um pequeno pedaço de papel branco em forma de quadrado. Nele, uma
frase breve e enigmática escrita com caneta vagabunda, mas numa caligrafia
clássica.
Ei-la:
Maus
alunos serão punidos.
Efe
sentiu o sangue gelar, ele teve um mau pressentimento.
Pediu
que o motorista do táxi acelerasse.
Precisava
chegar logo em casa.
Rápido.
Celeremente.
Já.
16.
Efe
pagou a corrida. A rua estava deserta. Um cão latiu ao longe. As luzes de
sua casa estavam acesas.
Que
estranho, pensou.
A
mulher certamente ainda estava acordada. Haveria mais uma rodada de cobranças
conjugais costumeiras. O trivial, embora sempre desagradável e exaustivo.
Efe
passou pelo jardim, alcançou a porta, introduziu a chave, girou a maçaneta,
entrou e de repente tudo escureceu.
17.
Efe
levou a mão à cabeça, que doía. Uma protuberância podia ser sentida um pouco
acima da nuca.
Ele
tentou se levantar, mas tudo girou em volta.
Fez
um novo esforço, era difícil abrir os olhos.
Notou
que estava em casa, mas nela não havia ninguém.
Correu
para o quarto das crianças. Nada.
Para
o seu quarto. Nada.
Para
a cozinha. Nada.
Para
o banheiro. Nada.
Para
a sala-de-jantar.
Nada.
Nada. Nada.
A
família tinha sumido.
O
telefone tocou. Efe atendeu.
Era
a Voz.
–
Não faça bobagens.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Eles estão comigo.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Você me traiu.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Eu disse sozinho, sem companhia, solo.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Amanhã cedo na praia, Posto 2, às seis.
Pausa.
Respiração pesada.
–
Lembre-se. Sozinho, solo, sem gracinhas desta vez.
Desligou.
18.
Atarantado,
desorientado, com o coração em disparada, Efe só teve uma idéia. Procurar a
ajuda de Marmitão. Ele já estava metido nesse negócio.
Primeira
chamada. Sem resposta.
Segunda
chamada. Sem sucesso.
Terceira
chamada. Sem êxito.
Quarta
chamada. Fora de área.
O
boa-vida do Marmitão deve ter conseguido companhia e agora estava nas vias de
fato, pensou Efe. Viver em desvario era o seu lema. Era a fórmula que ele havia
achado para suportar a vida amesquinhada de funcionário público.
Efe
pensou em Adélia. Mas essa não é uma saída que Dash Hammett aprovaria. A menos
que Adélia fosse solteira. Efe tomaria um táxi, bateria à sua porta e passaria
a noite em seus braços, envolto em seus cabelos platinados, até o amanhecer.
Rewind.
Efe precisava pensar. Não poderia se tornar refém da Voz, de uma voz que surgiu
do nada e que estava mudando o curso de sua vida.
Precisava
pensar.
Foi
então à cozinha, sentou-se, preparou uma dose tripla de dry martini e em poucos
minutos dormia com a cabeça mergulhada sobre os próprios braços.
19.
O
sol iluminava os olhos de Efe, acordando-o. Como um autômato, ele consultou o
relógio: cinco e meia.
Faltava
exatamente meia hora para o encontro com a Voz.
Efe
se agitou, correu à rua, não havia vivalma, como no dia anterior.
Por
sorte, um vizinho estava de saída naquele momento.
–
Bom dia, Efe.
–
Bom dia, vizinho.
–
Carona?
–
Sim.
–
Para onde?
–
Posto 2.
–
Tão cedo?
–
Sim.
No
caminho discutiram amenidades. Efe mal podia se conter. Quase abriu o bico para
o vizinho. Afinal, se conheciam há anos, jamais tiveram qualquer tipo de
desavença. Contudo, se segurou.
O
sol se abria em esplendor. Um dia e tanto, pensou Efe, que também pensou em
Adélia e também pensou nos filhos.
–
Chegamos, anunciou o vizinho, retirando Efe do momentâneo torpor.
Efe
saiu às tontas, à procura de algum sinal da Voz. Para o Posto 2 acorriam
naquela hora os primeiros corredores, muitos deles em forma deplorável, outros
tantos exalando saúde.
Súbito
um veículo parou a alguns metros dele. E dele saíram os dois filhos e a mulher
de Efe. Na verdade, foram cuspidos do carro, que saiu cantando os pneus em
desabalada velocidade.
Efe
correu ao encontro deles.
Todos
se abraçaram e se beijaram e choraram e depois chamaram um táxi e foram para
casa e lá chegaram.
Efe
queria saber todos os detalhes.
Quem
os havia levado.
Como
passaram a noite.
Como
estavam naquele momento.
Para
desapontamento de Efe, os filhos e a mulher não deram um pio. Naturalmente,
estavam assustados, traumatizados, chocados, foi o que ele concluiu.
No
mesmo dia, Efe os mandou para a casa de uma tia no interior.
Ele
teria que acertar as contas com a Voz.
20.
Dois
dias se passaram. Então a Voz voltou a dar notícias.
Foi
numa noite.
Efe
estava sozinho em casa.
Sentindo
saudades da família.
Saudades
de Adélia.
Saudades
de uma partida do time do seu coração.
Saudades.
Efe
via tevê.
O
telefone.
Era
a Voz.
–
Uma nova chance. Pegar ou largar.
Pausa.
Respiração profunda.
–
Esta noite no Vivendas. Às nove. Em ponto.
Pausa.
Respiração profunda.
–
Repito, última chance.
Pausa.
Respiração profunda.
–
E lembre-se: sozinho, solo, sem truques.
Desligou.
Efe
já estava ficando cheio dessa história. Dessa vez iria sozinho, ou solo,
como dizia a Voz.
Era
hoje ou nunca.
Era
tudo ou nada.
Era
hoje.
21.
Quando
Efe chegou ao Vivendas, um motel barato da zona sul, já havia uma confusão dos
diabos à porta. Caído na calçada estava um homem morto. A polícia já chegara ao
local e improvisara um cordão de isolamento em torno do morto.
Efe
quis saber o que havia acontecido.
Uma
garota bonita se acercou dele e contou.
–
Esse presunto aí é Big Joe, um famoso golpista. Ele vivia de extorquir
funcionários de repartições públicas. Especializou-se nisso. Era nosso cliente.
Efe
olhou bem para o sujeito. Ali estava a Voz em seu último ato.
Sim,
foi a última chance dele.
Efe
voltou-se para a garota bonita e sorriu. Tinha a noite livre. A família estava
no interior. O caso estava encerrado.
A
moça bonita devolveu-lhe o sorriso.
Sim,
por que não?
Efe
abraçou a garota, chamou um táxi, que partiu para bem longe
dali.
/////