Para o poeta Márcio Catunda
Dobrou
a esquina, e arrastou os seus passos cambiantes em minha direção.
Era
Quarta-feira de Cinzas, e ele, com as vestes surradas de um surrado pierrô,
ainda trazia nos olhos o lampejo da folia.
Parou
frente a mim, na dificuldade suprema de parar daqueles que há dias não
conseguiram parar. Fez-me uma saudação, flexionando ligeiramente o joelho
esquerdo. Apesar do ar patético daquela figura humana, o riso não tinha coragem
de pôr a cara a tapa.
Sim,
a tapa, pois havia nele a coragem de portar o manto diáfano e reluzente da
suprema liberdade. Manto este que descia pelos olhos dúbios, varava o pescoço
alquebrado e descia rumo às pernas bamboleantes e, quiçá, ainda festivas.
Falou,
então. No reinado do subtendido, do pretérito mais que caído, do subjuntivo
mais elíptico e efusivo que já vi em qualquer dos meus cinquenta reinados de
Momo.
—
Minha vida pela liberdade! Liberdade, liberdade! Abra as asas sobre nós...
Sua
voz, em seguida, calou. Calado ficou, no repique da tarde extrema, em meio ao
arpejo de uma traquina e indiscreta saudade.
—
Minha família não me entende, sabe.
Professou
tal sentença com o martírio de um degredado. Pus a minha mão direita sobre o
seu ombro esquerdo, como a querer hipotecar-lhe apoio e admiração.
—
Melhor: o mundo não me entende.
Baixou
a face e percebi, de imediato, que seu resto de maquilagem era lavado por uma
lágrima indiscreta.
—
É a vida, amigo! — professei. Para minha decepção. Eu, tão afeito às frases de
efeito, leitor confesso dos grandes oradores, vomitei no regaço daquele pobre
homem uma oração chinfrim: “É a vida, amigo!”.
Melhor
seria o silêncio. Pelo menos esse não ofertaria, para aquele furtivo encontro,
o mofo do lugar-comum, do dito desenxabido sem a força do singular e do
pessoal. “É a vida, amigo!”; tenha a santa paciência.
Como
ele, nesse exato instante, levara os olhos para o corredor do infinito vazio,
não se deu conta da minha gafe.
—
Volto pra casa, mas não vou só. Levo-a comigo. Todos os anos, vou à rua ao seu
encontro.
—...
Com
receio de cair novamente em falta, não traduzi minhas reticências. Apenas
emprestei-lhe os ouvidos à sua confissão.
—
Se ela não vem comigo, acredite, não suportaria a prisão dos dias do resto do
ano. Minha família... o mundo... não me entendem.
Fez
uma espécie de genuflexão, retocou a maquilagem, e saiu, altivo e imperial —
não sem antes ajustar o divino manto de pierrô amarrotado —, a cantar:
Liberdade, liberdade! Abra as
asas sobre nós...
Bom
domingo.
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