Em meio à
escassez, a literatura
Com uma produção pautada no conto
e na poesia, a cena literária de Fortaleza se afirma apesar das dificuldades do
contexto editorial
Há um sentimento gregário que perpassa, desde muito tempo, a literatura do Ceará. Dos neoclassicistas Oiteiros, no início do século XX, ao modernista Grupo Clã, nos anos 1940, ou ao grupo Siriará, nos anos 1980, o escritor cearense tem necessidade de se unir. Esse gesto de aproximação não desaparece na produção contemporânea. Porque o que define essa tendência, antes de ser a afinidade artística, é a necessidade de desaguar contos, poemas, romances e conseguir ser reconhecido por esse trabalho.
Diante de um ambiente arredio e marcado pela escassez, em que tanto público quanto mercado não conseguem garantir a sobrevivência do escritor, a produção literária de Fortaleza surge o mais das vezes sob o signo do “mutirão”: escritores, unidos, fundam uma revista e assim mostram sua literatura. “A gente precisa entender a produção da literatura, da arte em geral, aqui, como um lugar da falta, em que você tem que estar o tempo todo insistindo, preenchendo esse lugar”, analisa o poeta e professor de literatura Carlos Augusto Lima, autor de seis livros.
Professor da Universidade de Fortaleza, o escritor Batista de Lima lembra que há 25 editoras cearenses. Poucas delas têm linha editorial definida. Os entraves na distribuição, por sua vez, ainda são muitos: por não haver distribuidora, a produção acaba circunscrita aos limites do próprio Estado. Além disso, o circuito de livrarias é dominado por megastores, que sufocam as pequenas lojas de livros e dão pouco espaço aos autores cearenses.
“Não temos a tradição de eventos literários permanentes, de espaços para pensar o que estamos produzindo. Falta até a possibilidade de conhecermos uns aos outros”, lamenta Socorro Acioli, autora de mais de uma dezena de livros infantojuvenis que, agora, também se lança no romance adulto com A cabeça do santo. O livro será lançado em 2014 pela Companhia das Letras e pela inglesa Hot Key Books.
Para o escritor e pesquisador Nilto Maciel, autor do importante trabalho Contistas do Ceará — D’A quinzena ao caos portátil, a expressão “literatura cearense” não passa de um rótulo, uma vez que a globalização se incorporou também à produção literária local, seja na linguagem, nos temas ou nos modelos. “Por isso mesmo, é difícil delimitar essa produção contemporânea. Já que, apesar das dificuldades, ela consegue ser fecunda e plural”, afirma Maciel.
OUTRAS TENDÊNCIAS
Se é José de Alencar quem de certa forma funda uma tradição literária brasileira, no Ceará é o contista Moreira Campos, a partir de meados do século XX, que estabelece um caminho narrativo que influenciará as gerações seguintes. Com prosa concisa e precisa na descrição de situações e personagens, Campos anteciparia a escrita curta que ganhou fôlego nos anos 1990. E esse não é o único motivo que justifica a força do conto em relação a outros gêneros. O professor e escritor Batista de Lima observa que a leitura do conto é mais rápida e sua produção, teoricamente, menos trabalhosa quando comparado ao romance.
Assim, o Ceará viveu nos anos 1990 uma uma espécie de efervescência do conto. Prova disso são as revistas dedicadas ao gênero que estouram por essas paragens naquela década. Volta a circular O Pão, em 1992, uma homenagem ao extinto jornal de mesmo nome que pertencia ao movimento literário Padaria Espiritual, grupo que comandou as mentes locais com uma proposta irreverente e inovadora no fim do século XIX. Surgem ainda a Literapia — Revista de Literatura da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (1999), viva até hoje, e o Almanaque de Contos Cearenses (1997), em única edição.
Dessas, foi mesmo o Almanaque que fotografou o espírito de seu tempo. Organizado pelos escritores Pedro Salgueiro, Tércia Montenegro e pela professora Elisângela Matos, a coletânea reuniu grande parte dos contistas que produziam na década de 1990. Estavam lá o próprio Pedro, cuja literatura reelabora o sertão, tirando-o de um regionalismo tacanho, e Tércia, com uma narrativa urbana pondo em questão dramas existenciais. Jorge Pieiro e sua prosa mais concisa e experimental foi outro que colaborou, assim como Dimas Carvalho, saudando o fantástico em seus textos. Além deles, Luciano Bonfim, que traz muito de intertextualidade e poesia para seu projeto literário, ou ainda o autor do romance Galileia, Ronaldo Correia de Brito, que, morando em Recife, saía com sua primeira publicação no Ceará.
Mais do que situar historicamente a produção, apostando nos autores que continuariam (e continuaram) seu trabalho, o Almanaque foi embrião de projeto que viria pelas mãos de Salgueiro e Pieiro em 2005. Caos portátil era uma espécie de almanaque de contos que teve cinco números e misturou a nova geração com escritores mais antigos. Alguns dos selecionados, muitas vezes ainda inéditos em livros, dialogavam dentro das páginas com textos de contistas mais experientes. Embora tentasse ser abrangente do ponto de vista estilístico e temático, a Caos não preenche determinados espaços que outras revistas surgidas também nos anos 2000 acabam ocupando. Entre elas, a Corsário (2006) — nascida virtualmente e capitaneada por Mardônio França — acabou dando nome a um selo editorial com 16 livros publicados até agora. Editada por Manoel Carlos e André Dias, não pode fugir do escopo a revista Pindaíba. São publicações ou aglomerações de escritores que propõem uma intercessão entre literatura e outras artes.
Dessa safra de artistas diversos, destaca-se o poeta Léo Mackellene, que em 2006 estreou com O livro das sombras ou O livro dos mais pequenos silêncios (Mangues&Letras). E, por exemplo, o poeta e cineasta Uirá dos Reis, cujo primeiro livro, publicado pela Corsário, não traz título nem assinatura.
Se Mackellene e Uirá flertam com o experimento em seus poemas, Carlos Augusto Lima avança ainda mais nesse sentido. Manual de acrobacias n. 1 (2009) condensa 72 exercícios, com pequenas variações de um poema para o outro. Outras trilhas — entre as múltiplas da poesia — percorrem Carlos Nóbrega, que começou a publicar em 1988, e Diego Vinhas — que estreia com Primeiro as coisas morrem (2004).
Enquanto Nóbrega aposta numa transfiguração do cotidiano sob uma ótica melancólica e de uma contemplação ativa, Vinhas redimensiona a linguagem para fazê-la outra, própria à sua voz. Já O Poeta de Meia Tigela, que publicou Concerto, N° 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema., tem uma obra pensada para que, como numa peça musical, seus livros dialoguem entre si.
ESTRATÉGIAS
Embora produzido em menor escala, o romance, com potencialmente maior dificuldade de circulação, uma vez que coletâneas e antologias não o comportam, tem nomes dedicados a ele, como Nilto Maciel, considerado guru de uma nova geração e conhecido por seu poder como narrador. Além dele, Carlos Emílio Corrêa Lima, com uma prosa francamente verborrágica e enérgica, e Ângela Gutiérrez (imortal da Academia Cearense de Letras), por vezes analisando o mundo feminino, têm uma trajetória literária que cruza com o romance.
Há poucos anos de volta ao Ceará, Ana Miranda, cujas tramas reavaliam literariamente nossa história social e a biografia de alguns escritores, e Ronaldo Correia de Brito, que em sua obra revisita as raízes rurais a partir de uma perspectiva cosmopolita, são autores que alcançaram reconhecimento nacional no gênero.
Ainda que não o tenham feito deliberadamente, sua saída do Estado é um sintoma do cenário rarefeito do Ceará. Em certa medida, seu reconhecimento adquiriu corpo em virtude da partida. Outro exemplo: Natércia Pontes, que acaba de lançar pela Cosac Naify Copacabana dreams, só viu seus livros ganharem eco quando saiu de Fortaleza.
Ainda assim, quem ficou — caso de Tércia — aprendeu a conviver e mesmo a superar o contexto. Ela está de viagem marcada para Frankfurt, na Alemanha, onde participará em outubro da feira do livro mais importante do mundo no mercado editorial, lançando coletâneas para as quais foi convidada. Além disso, é finalista do prêmio literário Portugal Telecom com O tempo em estado sólido na categoria conto/crônica.
Montenegro é otimista sobre o mercado cearense. Diz, inclusive, acreditar que ele está se expandindo, bem como o espírito de profissionalização do escritor local. No entanto, Socorro Acioli é ainda uma das poucas escritoras de Fortaleza assessoradas por uma agente literária. É hoje agenciada pela respeitada Lúcia Riff, que fundou a mais antiga agência de autores do Brasil. “Parece que ainda falta, por partes dos autores cearenses, a coragem necessária para investir no próprio projeto literário”, comenta.
(Texto publicado em Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná, edição nº 27, de setembro de 2013)
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Há um sentimento gregário que perpassa, desde muito tempo, a literatura do Ceará. Dos neoclassicistas Oiteiros, no início do século XX, ao modernista Grupo Clã, nos anos 1940, ou ao grupo Siriará, nos anos 1980, o escritor cearense tem necessidade de se unir. Esse gesto de aproximação não desaparece na produção contemporânea. Porque o que define essa tendência, antes de ser a afinidade artística, é a necessidade de desaguar contos, poemas, romances e conseguir ser reconhecido por esse trabalho.
Diante de um ambiente arredio e marcado pela escassez, em que tanto público quanto mercado não conseguem garantir a sobrevivência do escritor, a produção literária de Fortaleza surge o mais das vezes sob o signo do “mutirão”: escritores, unidos, fundam uma revista e assim mostram sua literatura. “A gente precisa entender a produção da literatura, da arte em geral, aqui, como um lugar da falta, em que você tem que estar o tempo todo insistindo, preenchendo esse lugar”, analisa o poeta e professor de literatura Carlos Augusto Lima, autor de seis livros.
Professor da Universidade de Fortaleza, o escritor Batista de Lima lembra que há 25 editoras cearenses. Poucas delas têm linha editorial definida. Os entraves na distribuição, por sua vez, ainda são muitos: por não haver distribuidora, a produção acaba circunscrita aos limites do próprio Estado. Além disso, o circuito de livrarias é dominado por megastores, que sufocam as pequenas lojas de livros e dão pouco espaço aos autores cearenses.
“Não temos a tradição de eventos literários permanentes, de espaços para pensar o que estamos produzindo. Falta até a possibilidade de conhecermos uns aos outros”, lamenta Socorro Acioli, autora de mais de uma dezena de livros infantojuvenis que, agora, também se lança no romance adulto com A cabeça do santo. O livro será lançado em 2014 pela Companhia das Letras e pela inglesa Hot Key Books.
Para o escritor e pesquisador Nilto Maciel, autor do importante trabalho Contistas do Ceará — D’A quinzena ao caos portátil, a expressão “literatura cearense” não passa de um rótulo, uma vez que a globalização se incorporou também à produção literária local, seja na linguagem, nos temas ou nos modelos. “Por isso mesmo, é difícil delimitar essa produção contemporânea. Já que, apesar das dificuldades, ela consegue ser fecunda e plural”, afirma Maciel.
OUTRAS TENDÊNCIAS
Se é José de Alencar quem de certa forma funda uma tradição literária brasileira, no Ceará é o contista Moreira Campos, a partir de meados do século XX, que estabelece um caminho narrativo que influenciará as gerações seguintes. Com prosa concisa e precisa na descrição de situações e personagens, Campos anteciparia a escrita curta que ganhou fôlego nos anos 1990. E esse não é o único motivo que justifica a força do conto em relação a outros gêneros. O professor e escritor Batista de Lima observa que a leitura do conto é mais rápida e sua produção, teoricamente, menos trabalhosa quando comparado ao romance.
Assim, o Ceará viveu nos anos 1990 uma uma espécie de efervescência do conto. Prova disso são as revistas dedicadas ao gênero que estouram por essas paragens naquela década. Volta a circular O Pão, em 1992, uma homenagem ao extinto jornal de mesmo nome que pertencia ao movimento literário Padaria Espiritual, grupo que comandou as mentes locais com uma proposta irreverente e inovadora no fim do século XIX. Surgem ainda a Literapia — Revista de Literatura da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (1999), viva até hoje, e o Almanaque de Contos Cearenses (1997), em única edição.
Dessas, foi mesmo o Almanaque que fotografou o espírito de seu tempo. Organizado pelos escritores Pedro Salgueiro, Tércia Montenegro e pela professora Elisângela Matos, a coletânea reuniu grande parte dos contistas que produziam na década de 1990. Estavam lá o próprio Pedro, cuja literatura reelabora o sertão, tirando-o de um regionalismo tacanho, e Tércia, com uma narrativa urbana pondo em questão dramas existenciais. Jorge Pieiro e sua prosa mais concisa e experimental foi outro que colaborou, assim como Dimas Carvalho, saudando o fantástico em seus textos. Além deles, Luciano Bonfim, que traz muito de intertextualidade e poesia para seu projeto literário, ou ainda o autor do romance Galileia, Ronaldo Correia de Brito, que, morando em Recife, saía com sua primeira publicação no Ceará.
Mais do que situar historicamente a produção, apostando nos autores que continuariam (e continuaram) seu trabalho, o Almanaque foi embrião de projeto que viria pelas mãos de Salgueiro e Pieiro em 2005. Caos portátil era uma espécie de almanaque de contos que teve cinco números e misturou a nova geração com escritores mais antigos. Alguns dos selecionados, muitas vezes ainda inéditos em livros, dialogavam dentro das páginas com textos de contistas mais experientes. Embora tentasse ser abrangente do ponto de vista estilístico e temático, a Caos não preenche determinados espaços que outras revistas surgidas também nos anos 2000 acabam ocupando. Entre elas, a Corsário (2006) — nascida virtualmente e capitaneada por Mardônio França — acabou dando nome a um selo editorial com 16 livros publicados até agora. Editada por Manoel Carlos e André Dias, não pode fugir do escopo a revista Pindaíba. São publicações ou aglomerações de escritores que propõem uma intercessão entre literatura e outras artes.
Dessa safra de artistas diversos, destaca-se o poeta Léo Mackellene, que em 2006 estreou com O livro das sombras ou O livro dos mais pequenos silêncios (Mangues&Letras). E, por exemplo, o poeta e cineasta Uirá dos Reis, cujo primeiro livro, publicado pela Corsário, não traz título nem assinatura.
Se Mackellene e Uirá flertam com o experimento em seus poemas, Carlos Augusto Lima avança ainda mais nesse sentido. Manual de acrobacias n. 1 (2009) condensa 72 exercícios, com pequenas variações de um poema para o outro. Outras trilhas — entre as múltiplas da poesia — percorrem Carlos Nóbrega, que começou a publicar em 1988, e Diego Vinhas — que estreia com Primeiro as coisas morrem (2004).
Enquanto Nóbrega aposta numa transfiguração do cotidiano sob uma ótica melancólica e de uma contemplação ativa, Vinhas redimensiona a linguagem para fazê-la outra, própria à sua voz. Já O Poeta de Meia Tigela, que publicou Concerto, N° 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema., tem uma obra pensada para que, como numa peça musical, seus livros dialoguem entre si.
ESTRATÉGIAS
Embora produzido em menor escala, o romance, com potencialmente maior dificuldade de circulação, uma vez que coletâneas e antologias não o comportam, tem nomes dedicados a ele, como Nilto Maciel, considerado guru de uma nova geração e conhecido por seu poder como narrador. Além dele, Carlos Emílio Corrêa Lima, com uma prosa francamente verborrágica e enérgica, e Ângela Gutiérrez (imortal da Academia Cearense de Letras), por vezes analisando o mundo feminino, têm uma trajetória literária que cruza com o romance.
Há poucos anos de volta ao Ceará, Ana Miranda, cujas tramas reavaliam literariamente nossa história social e a biografia de alguns escritores, e Ronaldo Correia de Brito, que em sua obra revisita as raízes rurais a partir de uma perspectiva cosmopolita, são autores que alcançaram reconhecimento nacional no gênero.
Ainda que não o tenham feito deliberadamente, sua saída do Estado é um sintoma do cenário rarefeito do Ceará. Em certa medida, seu reconhecimento adquiriu corpo em virtude da partida. Outro exemplo: Natércia Pontes, que acaba de lançar pela Cosac Naify Copacabana dreams, só viu seus livros ganharem eco quando saiu de Fortaleza.
Ainda assim, quem ficou — caso de Tércia — aprendeu a conviver e mesmo a superar o contexto. Ela está de viagem marcada para Frankfurt, na Alemanha, onde participará em outubro da feira do livro mais importante do mundo no mercado editorial, lançando coletâneas para as quais foi convidada. Além disso, é finalista do prêmio literário Portugal Telecom com O tempo em estado sólido na categoria conto/crônica.
Montenegro é otimista sobre o mercado cearense. Diz, inclusive, acreditar que ele está se expandindo, bem como o espírito de profissionalização do escritor local. No entanto, Socorro Acioli é ainda uma das poucas escritoras de Fortaleza assessoradas por uma agente literária. É hoje agenciada pela respeitada Lúcia Riff, que fundou a mais antiga agência de autores do Brasil. “Parece que ainda falta, por partes dos autores cearenses, a coragem necessária para investir no próprio projeto literário”, comenta.
(Texto publicado em Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná, edição nº 27, de setembro de 2013)
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