Fomos
José Mapurunga, Pedro Salgueiro e eu a um valhacouto do profeta Soares Feitosa.
Era sábado, pertinho do meio-dia. Recebidos pelo portão fechado, batemos
palmas, apertamos teclas na parede, procuramos pelo porteiro, corremos aos
vizinhos. Ninguém dava notícia dele. Íamos já na direção do bar mais próximo
(“vamos tomar umas cervejas” – propusera Pedro), quando a voz do anfitrião nos alertou,
do outro lado da grade (lembrava cadeia).
Mapurunga
é meu amigo desde os idos de 1968, quando milhões de brasileiros se descobriram
nas escolas e nas empresas, nas redações dos jornais e nas igrejas, e se uniram
em minúsculos partidos clandestinos, com o fito de derrubar a ditadura.
Salgueiro é mais recente, nascido exatamente no ano do golpe militar desferido
para derrubar o governo de Jango. Já Soares Feitosa é daquele tempo, porém só o
conheci entre a maturidade e a velhice. Não sei se participou de algum ato de
bravura pela derrubada dos militares.
Minha
intenção naquele sábado se limitava a entregar a Feitosa uns alfarrábios “de
minha lavra” – como se dizia antigamente. Perdi dez minutos diante das quinquilharias
e escolhi os volumes mais estragados pelo tempo, pela poeira, pelo manuseio: Tempos de mula preta, Punhalzinho cravado de
ódio, A guerra da donzela e Pescoço
de girafa na poeira. Para não dar na vista, peguei três menos deteriorados:
Como me tornei imortal, Quintal dos dias
e outro. Prometeu escaneá-los e publicá-los no Jornal de Poesia.
Subidos
ao escritório do poeta, iniciou-se, então, morosa conversa. Eu como ouvinte,
Soares e Mapurunga como dialogantes. Pedro como ouvinte e, de vez em quando,
dialogador. Sobre que dialogavam? O sertão, coronéis, vaqueiros, cunhãs, famílias
e suas tradições, terras, fazendas, gados, traições, homicídios, barbaridades.
Soares falava de “um homem muito brabo, como todo coronel”, sujeito dado a muito
gostar “de um rabo-de-saia”. Tal pessoa se chamava Verolino Rodovalho. É
história encantadora e comprida, contada, em linguagem puramente sertaneja, sem
deixar de ser literária, no romance (ou simplesmente “livro sem fim”), de
título bíblico e sertanejo: Salomão.
Pois esse mandachuva (mesmo no sertão seco há esse tipo de pessoa), casado e
pai, “se enrabichara por uma cabocla nova”. Além disso, “estava a ponto de
largar a casa, os filhos e a mulher legítima”.
Não
farei a sinopse da obra – ainda não a li – nem sequer do capítulo intitulado
“Uma pequena aula de música”. No máximo, direi isto: o escrito está disposto em
sete páginas de computador (tipo tamanho 12) ou cinco partes: primeira sem
título; segunda: “O outro Coronel despacha a cabrocha e morre de morte matada”;
terceira: “Penduraram o matador de parede a parede”; quarta: “As salsas
encarnadas a reverdejar em plena seca”; quinta: “As duas versões de uma mesma
história: qual a legítima?”.
Após a
longa conversa, descemos a escada e chegamos à rua. Deixamos Soares à porta de
uma garagem (iria de carro para casa) e rumamos para uma feijoada regada a
cerveja. O assunto se resumiu à figura ímpar do bardo Soares Feitosa. Aqui e
ali, Pedro abocanhava joelho de porco, enquanto Mapurunga roía osso duro de
roer.
Hora
depois da comilança demorada, avistamos a figura alvacenta de outro vate admirável:
Carlos Nóbrega, chegado de cidades históricas de Minas Gerais, de férias,
sorriso solto, tão envolto em poesia quanto no dia da viagem. Do mesmo modo,
vinha de almoço. Abraçou-nos e sumiu no coração da Aldeota. Meia hora depois,
deixei Mapurunga diante do prédio onde se refugia e conduzi Pedro às proximidades
do Estádio Presidente Vargas, no Benfica. E voltei a pensar em Soares Feitosa,
na surra tomada pelo coronel, por ordem da mãe (desgostosa de ver o filho
desfazer a família): “os irmãos saltaram-lhe no cangote, um grande silibolo; a
irmã já lhe passava um laço pelos pés; o coronel estrebuchou como se fosse um
bicho- brabo” (...). Nada além disso contarei, que a história é de arrepiar.
Li o
capítulo do romance inédito de Soares Feitosa em cinco momentos. Gosto de ler
assim, aos pedaços: Uma página após o petit
déjeuner; outra seguida à conversa com o jardineiro cego; a terceira às
vésperas do almoço; a seguinte depois da soneca da tarde; e a derradeira entre
o café-com-leite e croissants e o
suco de pêssego noturnos. Consagrei-me a ouvir Béla Bartók e acabei
ensandecido. Agarrei o papel com as narrativas de Soares Feitosa e me pus a ler,
em voz alta, o trecho relativo ao suplício de Aurélio, o matador do coronel
Verolino, comparável ao de Jesus Cristo: “Rodavam-no na corda, às tapas. Depois
desfaziam o giro, e Aurélio, novamente às tapas, como se fosse um corrupio em
grande velocidade, até ficar tonto”. Sentia-me também atordoado e, quase a
vomitar sangue, caí na cama, quase morto.
Acordei
por volta das três horas da madrugada. Havia gritaria na rua. Assustei-me,
enrolei-me ao lençol e me lembrei do antigo vaqueiro do coronel, supliciado até
a morte, por vingança. E a expressão definitiva de Tião da Zé (se não tiver
sido outro comerciante), ao ver as putas ao redor do cadáver ensanguentado e
esfacelado de Aurélio: “Deus não existe!”
Corri
ao banheiro e me meti debaixo do chuveiro. A água gelada me deu calafrios.
Fortaleza,
7 de outubro de 2013.
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