A misteriosa irradiação do nome de Marcel Proust
[1871-1922] –, desde a minha infância rural na Várzea do Açu – começou pelo
uso afetivo e recorrente de um adjetivo que, aos meus olhos de menino inquieto
e já dominado pela curiosidade intelectual, tinha o dom de recriar, num Fiat Lux!, o Paraíso na terra.
Esse adjetivo raro – não constaria de todos os dicionários – costumava ser empregado nos textos epigramáticos de Edgar Barbosa, um escritor ático que ao seu elegante estilo acrescenta a mutabilidade da literatura em suas decantações verbais da terra hereditária – o Ceará-Mirim –, guardiã dos ossos dos nossos antepassados e da memória de uma gente paciente e modesta dum burgo onde se forjou uma escola dedicada ao estudo, às letras e às artes da agricultura. Tradição que terá começado com o livro de Madalena Antunes Pereira, contendo as memórias de uma sinhá-moça, e continuou, após a morte de Edgar, com o escritor Nilo Pereira, Maria Lúcia Brandão e Sanderson Negreiros, gênios tutelares do Ceará-Mirim.
Esse adjetivo possuía o reconhecido poder de evocar a nossa província agrária e mitológica e as benesses de um Vale sempre verde, plantando de canaviais que assumiam às vezes a forma de ondulantes paliçadas em torno da pequena vila ou do burgo em que se tornaria o Ceará-Mirim, cheio de tradições e de histórias de um tempo perdido, pois por ali passara parte da riqueza do Rio Grande do Norte, subitamente redescoberto através de um solitário e obscuro exercício da memória involuntária.
Como um desses mínimos gestos que desencadeiam uma reação de proporções imprevistas, sobrecarregadas de significados que somente passam a existir de fato depois de extintos, como a brasa encoberta pela cinza que acende subitamente o fogo arquetípico, ou a estrela morta que continua emitindo sua luz de uma distância quase infinita, esse adjetivo se impôs à minha sensibilidade e desde então passou a conter em essência, para mim, de maneira afetiva toda uma enciclopédia que esclarece ou revalida todo o significado inicial – intuído no primeiro instante –, numa progressão hipnótica, como quando atiramos uma pedra contra a superfície tranquila do lago e o primeiro circulo que resulta do choque entre a pedra e a água deflagra uma distensão de novos círculos que se vão ampliando até a diluição imperceptível ao sentido da visão.
No caso especifico desse adjetivo repleto de sonoridades aveludadas e estranhas, criado a partir do nome de um escritor francês que era o rei dos adjetivos, aprendi com ele que as palavras são talismãs poderosíssimos e que os adjetivos só metem mete e são horrorosos quando manejados por escritores ineptos, desprovidos ou insensíveis à magia ilusionista da literatura, forjadas pelas interrelações que criam as grandes obras, como Combray, pequena e antiga cidade francesa imaginária que resultou da fusão de dois jardins ligados à infância de Marcel Proust.
Há, em toda a sua obra – afiançada pela doença imaginária que se torna real –, uma atmosfera, um clima, um viés de sonho acordado ou de pesadelo lúcido que remetem o leitor ao âmago de um universo literário em abismo ou, para dizermos de outra forma, em processo de mutação, como num quadro clínico em que um [aparentemente] simples resfriado evolui e degenera em pneumonia dupla, numa progressão inesperada que zomba dos cuidados médicos até a parada respiratória e o óbito que, para os que ficam depois de noites e noites de insônia e de aborrecimentos inúteis à cabeceira do moribundo, adquire um sentido misericordioso que alivia ao mesmo tempo o sofrimento do que morreu e o sentimento de culpa daqueles que não foram bastante perspicazes para perceberem no primeiro diagnóstico a gravidade do caso, a debilitação geral do paciente e inépcia do tratamento.
Escrever é o mínimo que se pode esperar de um escritor. E Proust escreveu por toda a vida e teve insônia, preparando-se para receber a Morte, duquesa mais antiga. A insônia que martiriza os melancólicos, quando associada ao ato de escrever o intensifica e contribui, algumas vezes, para criar um tipo especial de escritor que não teria sido possível se dormisse bem e gozasse de boa saúde.
Marcel Proust foi um desses escritores martirizados por uma enfermidade, a principio difusa, e pela insônia – que Albert Camus definiu lapidarmente como algo irrisório e medonho e Borges, talvez sob a fascinação de Poe, viu como tenazes comprimindo o cérebro –, presente desde a sua infância e na infância do seu insone personagem, que se debate na cama porque, num dia especifico, como resultado de uma proibição paterna, não recebera o habitual beijo de sua mãe ao desejar-lhe boa noite, após contar-lhe contos ou de entretê-lo com a leitura de algumas páginas de “François, le champi”.
Como De Quincey – que vagava à noite pelas ruas de Londres –, Proust transformou sua vida em obra – um todo complexo, compósito e obsessivo, pertinaz –, pois sua vida privada estava, como sabemos, estreita e umbilicalmente ligada à sua arte literária.
De alguma forma conseguiu realizar o que Wilde se propusera – transformar a sua vida em arte. E o fez na clausura do seu quarto, em silêncio e solidão, onde o fogo ardia mesmo durante o verão; e sem provocar escândalos como o fez Wilde, embora como o esteta vitoriano que se tornou excessivo em sua vida privada, gozaram ambos dos mesmos prazeres secretos, como amantes do mesmo sexo.
Ele escreve em “O Tempo Redescoberto”, o último dos sete volumes que compõem o romance-rio “Em Busca do Tempo Perdido” que se lê como um todo caudaloso ou em vagas que se quebram criando a sensação de circularidade do Tempo. Ei-lo:
“[...] Havia em mim alguém que sabia mais ou menos olhar mas era uma personagem intermitente, só animada pelo contato de alguma essência geral, manifestando-se em muitas coisas, da qual tirava alimento e alegria...”
Estas palavras fazem parte de uma longa e curiosíssima digressão do Narrador sem nome, ou nominado uma única vez em toda a obra, – evidentemente o próprio Proust, pois também se chamava Marcel –, sobre o penoso desafio que representa para o artista a elaboração de sua obra. E especialmente de uma obra com a qual o seu autor quis, ao mesmo tempo, dar vida a toda uma população, construir como as catedrais medievais um monumento sólido e duradouro, e, através desse processo e do meio que empregou para se expressar, justificar a própria existência.
Não é por acaso que começo pelo fim. Também me alegraria utilizar-me aqui dos recursos e do engenho proustianos, sabidamente complexos e instigantes, porém talvez me falte o que sobrava em nosso autor. Talento, cultura, fortuna.
Proust já havia descoberto então que uma espécie de beleza nasce da multiplicidade dos aborrecimentos e que ao homem fora dado o dom de inventar canções para embalar a dor.
Sabe-se que em 1880, aos nove anos, Proust teve o seu primeiro ataque de asma ou febre do feno que, admite-se hoje, são com frequência doenças causadas por um excesso ou escassez de amor materno.
Paul Morand zomba em versos circunstanciais dessa mania precoce de Proust pela doença que, no fim da vida tornou-se real e lhe trouxe o argumento que o salvou das frequentações mundanas que atrasariam a execução de sua obra tantas vezes pensada e para a qual viveu, colhendo aqui e ali, nos mais elegantes salões e nos mais sórdidos valhacoutos de Paris os elementos que a compõem; vivenciando e experimentado no curso de sua existência ativa, obstinada e observadora. Diz Morand, gracejando em estilo cortesão:
Eu digo que você
Esse adjetivo raro – não constaria de todos os dicionários – costumava ser empregado nos textos epigramáticos de Edgar Barbosa, um escritor ático que ao seu elegante estilo acrescenta a mutabilidade da literatura em suas decantações verbais da terra hereditária – o Ceará-Mirim –, guardiã dos ossos dos nossos antepassados e da memória de uma gente paciente e modesta dum burgo onde se forjou uma escola dedicada ao estudo, às letras e às artes da agricultura. Tradição que terá começado com o livro de Madalena Antunes Pereira, contendo as memórias de uma sinhá-moça, e continuou, após a morte de Edgar, com o escritor Nilo Pereira, Maria Lúcia Brandão e Sanderson Negreiros, gênios tutelares do Ceará-Mirim.
Esse adjetivo possuía o reconhecido poder de evocar a nossa província agrária e mitológica e as benesses de um Vale sempre verde, plantando de canaviais que assumiam às vezes a forma de ondulantes paliçadas em torno da pequena vila ou do burgo em que se tornaria o Ceará-Mirim, cheio de tradições e de histórias de um tempo perdido, pois por ali passara parte da riqueza do Rio Grande do Norte, subitamente redescoberto através de um solitário e obscuro exercício da memória involuntária.
Como um desses mínimos gestos que desencadeiam uma reação de proporções imprevistas, sobrecarregadas de significados que somente passam a existir de fato depois de extintos, como a brasa encoberta pela cinza que acende subitamente o fogo arquetípico, ou a estrela morta que continua emitindo sua luz de uma distância quase infinita, esse adjetivo se impôs à minha sensibilidade e desde então passou a conter em essência, para mim, de maneira afetiva toda uma enciclopédia que esclarece ou revalida todo o significado inicial – intuído no primeiro instante –, numa progressão hipnótica, como quando atiramos uma pedra contra a superfície tranquila do lago e o primeiro circulo que resulta do choque entre a pedra e a água deflagra uma distensão de novos círculos que se vão ampliando até a diluição imperceptível ao sentido da visão.
No caso especifico desse adjetivo repleto de sonoridades aveludadas e estranhas, criado a partir do nome de um escritor francês que era o rei dos adjetivos, aprendi com ele que as palavras são talismãs poderosíssimos e que os adjetivos só metem mete e são horrorosos quando manejados por escritores ineptos, desprovidos ou insensíveis à magia ilusionista da literatura, forjadas pelas interrelações que criam as grandes obras, como Combray, pequena e antiga cidade francesa imaginária que resultou da fusão de dois jardins ligados à infância de Marcel Proust.
Há, em toda a sua obra – afiançada pela doença imaginária que se torna real –, uma atmosfera, um clima, um viés de sonho acordado ou de pesadelo lúcido que remetem o leitor ao âmago de um universo literário em abismo ou, para dizermos de outra forma, em processo de mutação, como num quadro clínico em que um [aparentemente] simples resfriado evolui e degenera em pneumonia dupla, numa progressão inesperada que zomba dos cuidados médicos até a parada respiratória e o óbito que, para os que ficam depois de noites e noites de insônia e de aborrecimentos inúteis à cabeceira do moribundo, adquire um sentido misericordioso que alivia ao mesmo tempo o sofrimento do que morreu e o sentimento de culpa daqueles que não foram bastante perspicazes para perceberem no primeiro diagnóstico a gravidade do caso, a debilitação geral do paciente e inépcia do tratamento.
Escrever é o mínimo que se pode esperar de um escritor. E Proust escreveu por toda a vida e teve insônia, preparando-se para receber a Morte, duquesa mais antiga. A insônia que martiriza os melancólicos, quando associada ao ato de escrever o intensifica e contribui, algumas vezes, para criar um tipo especial de escritor que não teria sido possível se dormisse bem e gozasse de boa saúde.
Marcel Proust foi um desses escritores martirizados por uma enfermidade, a principio difusa, e pela insônia – que Albert Camus definiu lapidarmente como algo irrisório e medonho e Borges, talvez sob a fascinação de Poe, viu como tenazes comprimindo o cérebro –, presente desde a sua infância e na infância do seu insone personagem, que se debate na cama porque, num dia especifico, como resultado de uma proibição paterna, não recebera o habitual beijo de sua mãe ao desejar-lhe boa noite, após contar-lhe contos ou de entretê-lo com a leitura de algumas páginas de “François, le champi”.
Como De Quincey – que vagava à noite pelas ruas de Londres –, Proust transformou sua vida em obra – um todo complexo, compósito e obsessivo, pertinaz –, pois sua vida privada estava, como sabemos, estreita e umbilicalmente ligada à sua arte literária.
De alguma forma conseguiu realizar o que Wilde se propusera – transformar a sua vida em arte. E o fez na clausura do seu quarto, em silêncio e solidão, onde o fogo ardia mesmo durante o verão; e sem provocar escândalos como o fez Wilde, embora como o esteta vitoriano que se tornou excessivo em sua vida privada, gozaram ambos dos mesmos prazeres secretos, como amantes do mesmo sexo.
Ele escreve em “O Tempo Redescoberto”, o último dos sete volumes que compõem o romance-rio “Em Busca do Tempo Perdido” que se lê como um todo caudaloso ou em vagas que se quebram criando a sensação de circularidade do Tempo. Ei-lo:
“[...] Havia em mim alguém que sabia mais ou menos olhar mas era uma personagem intermitente, só animada pelo contato de alguma essência geral, manifestando-se em muitas coisas, da qual tirava alimento e alegria...”
Estas palavras fazem parte de uma longa e curiosíssima digressão do Narrador sem nome, ou nominado uma única vez em toda a obra, – evidentemente o próprio Proust, pois também se chamava Marcel –, sobre o penoso desafio que representa para o artista a elaboração de sua obra. E especialmente de uma obra com a qual o seu autor quis, ao mesmo tempo, dar vida a toda uma população, construir como as catedrais medievais um monumento sólido e duradouro, e, através desse processo e do meio que empregou para se expressar, justificar a própria existência.
Não é por acaso que começo pelo fim. Também me alegraria utilizar-me aqui dos recursos e do engenho proustianos, sabidamente complexos e instigantes, porém talvez me falte o que sobrava em nosso autor. Talento, cultura, fortuna.
Proust já havia descoberto então que uma espécie de beleza nasce da multiplicidade dos aborrecimentos e que ao homem fora dado o dom de inventar canções para embalar a dor.
Sabe-se que em 1880, aos nove anos, Proust teve o seu primeiro ataque de asma ou febre do feno que, admite-se hoje, são com frequência doenças causadas por um excesso ou escassez de amor materno.
Paul Morand zomba em versos circunstanciais dessa mania precoce de Proust pela doença que, no fim da vida tornou-se real e lhe trouxe o argumento que o salvou das frequentações mundanas que atrasariam a execução de sua obra tantas vezes pensada e para a qual viveu, colhendo aqui e ali, nos mais elegantes salões e nos mais sórdidos valhacoutos de Paris os elementos que a compõem; vivenciando e experimentado no curso de sua existência ativa, obstinada e observadora. Diz Morand, gracejando em estilo cortesão:
Eu digo que você
Parece
muito bem;
Você
responde:
Meu caro
amigo,
Somente
hoje
Já morri
três vezes...
É costume dizer-se que a asma era a epilepsia de Proust, num esforço analógico de aproximação com Dostoievski, de quem o autor de “Em Busca do Tempo Perdido” teria extraído a paixão do abismo psicológico, levado a um extremo de lucidez em sua análise das intermitências do coração; exposta em escorço em “Sodoma e Gomorra” que se segue ao volume intitulado de “O Caminho de Guermantes”, no qual anjos decaídos ou homens-mulheres fazem a sua aparição entre vapores de enxofre da mais fina e requintada perversidade, em seguida aprofundada de maneira magistral sob a forma do mais minucioso e agoniante exame do ciúme, em “A Prisioneira”, que correspondem, no conjunto da obra, ao quarto e ao quinto volumes.
Porém, como romancista, Proust estava mais próximo de outro russo, Tolstoi – frequentemente citado pela duquesa de Guermantes –, já presente em seu livro de estreia, “Os Prazeres e os dias” [1896]. Seu épico “Guerra e Paz” terá sido um dos modelos secundários da arquitetura do romance proustiano. Além disso, ambos tiveram saúde delicada e manejaram com indiscutível mestria grandes contingentes humanos. Também souberam extrair verdades profundas de meios sociais distintos.
A Duquesa de Guermantes – uma das personagens mais emblemáticas de Proust –, além de possuir em alto grau aquilo que o Narrador inominado chama de o “espírito de Guermantes”, é leitora contumaz de Tolstoi, autor que muito ensinou a Proust, que soube sempre tirar máximo proveito da experiência alheia e a usou para engrandecer a sua própria obra.
Numa passagem famosa, apresentada sob a forma de comentário sobre a natureza do humor de Oriana, a duquesa – que é inteligente e não respeita as convenções –, interroga o próprio Nicolau, quando da visita do Czar à Paris, acerca dos boatos que davam conta que ele havia mandado matar o grande e incômodo escritor que se colocara ao lado dos camponeses e, encastelado em suas extensas propriedades rurais, atiçava a luta de classes em seu país.
Tolstoi pertencia à nobreza rural; Proust, à alta burguesia parisiense com sólidas raízes na província. Como Tolstoi, Proust percebe que há um encanto na doença que nos aproxima das realidades de além da morte. Talvez, numa alusão a esta passagem de Proust, André Maurois reflete e acrescenta que não basta ser um doente para tornar-se um analista de gênio, mas a doença – como a insônia num escritor de talento – constitui uma das engrenagens de um mecanismo mental que aumenta o poder de análise. Quase se pode dizer, portanto, que as obras, como os poços artesianos, sobem mais alto à medida que o sofrimento tenha cavado mais fundo o coração.
O método proustiano consistia, como sabemos, na observação inteligente e profunda do modelo e na compreensão total das coisas aparentemente desprovidas de significação. Seu modelo é sempre compósito, como num desses jogos armados com os elementos mais díspares, submetidos – no caso da escritura proustiana – ao mais rigoroso processo de elaboração aclaramento das obscuridades. Este procedimento é assim sintetizado numa frase do próprio Proust: É preciso ter visto muitas igrejas para descrever uma.
Proust vai buscar suas sínteses e achados literários nos objetos, nas coisas e nos lugares menos prováveis. Ele não discrimina temas nem personagens, pois percebe a diversidade em tudo, por isso achava igualmente interessante escrever sobre os hábitos de uma duquesa quanto aos de uma criada. Porém, como artista, faz uso da técnica que consiste em dar forma ao informe e tornar o ininteligível claro.
Permitam-me, agora, uma digressão.
É notável a influência de Proust sobre Borges, embora o argentino – como o próprio Proust um gênio da dissimulação e da paródia –, não esclareça nada a esse respeito, talvez porque não agrade aos escritores dever nada aos seus contemporâneos. Porém, tanto Borges como Proust exprimiam-se como escritores autênticos, capazes de tirar lições de tudo e de extrair a essência profunda que dá consistência e singularidade às obras verdadeiramente criadas. E, aqui, eu sugeriria a leitura de um texto de Borges, o conto Pierre Menard, autor do Quixote. Talvez ele pensasse em Proust ao escrevê-lo...
Mas, voltando ao nosso autor. Sua escritura, como a de Borges, resulta de um intricado entrelaçamento de linguagens, de observações sutis e de variações paródicas dos clássicos franceses, entre os quais Saint-Simon, a quem Proust admirava e relia, terá sido das mais significativas; e dos irmãos Goncourt, vitimas costumeiras de sua sátira bem humorada.
Ao narrar, Proust busca o tom da alta indiferença, da indiferença apaixonada, como um virtuose que não quer dar parte de doente. Esse virtuosismo proustiano já está inteiro no primeiro texto – que contribuiu para desacreditá-lo –, como um exercício de estilo que seria incorporado à obra madura, conhecido como “os campanários de Martinville”, inspirado num passeio do autor a Illiers, terra de origem do professor Adrien Proust, onde a família do escritor passava as férias da Páscoa. É um texto, do ponto de vista estilístico, cubista – um texto curiosamente sucessivo, auto-transformante, através do qual descreve as torres de uma igreja provinciana vista de diversos ângulos, durante um passeio do Narrador, então um menino.
Muito elucidativo dos processos adotados pelo autor – que em beneficio de sua obra costumava apropriar-se de todos os recursos possíveis –, merece transcrição:
“[...] Uma ocasião, no entanto – no dia em que o passeio se prolongou bastante tempo além de sua costumeira duração, ficamos contentes de encontrar a meio caminho, quando já retornávamos ao cair da tarde, o doutor Percepied que, como naquele momento passasse velozmente em sua caleça, reconheceu-nos e nos fez regressar com ele –, tive uma daquelas impressões e a abandonei sem antes tê-la aprofundado um pouco [...]. Numa curva do caminho, subitamente senti aquele prazer inefável que não se assemelhava com nenhum outro, quando avistei os dois campanários de Martinville, sobre os quais incidiam os derradeiros raios de sol e que, graças ao movimento da caleça e aos ziguezagues da estrada, pareciam mudar de lugar, e em seguida o de Vieuxvicq que, separado daqueles dois por uma colina e um vale e situado ao longe num planalto mais elevado, parecia no entanto estar bem ao lado deles [...]. Ao observar a forma de sua flecha, o deslocamento de suas linhas, o ensolarado de sua superfície, sentia que não estava exaurindo minhas impressões, que havia alguma coisa por detrás daquele movimento, por detrás daquela luminosidade, alguma coisa que parecia ao mesmo tempo encerrar e ocultar de mim [...]. Sem dizer comigo que a coisa que se ocultava atrás dos campanários de Martinville devia ser algo análogo a uma bela frase, porquanto era sob a forma de palavras do meu agrado que aquilo me havia aparecido, pedi lápis e papel ao doutor e escrevi, apesar dos sacolejos da caleça, e para aliviar a consciência e obedecer a meu entusiasmo [...]”. In “No Caminho de Swann”
Proust tem um olho e um ouvido infalíveis que prestam serviço dobrado na elaboração de sua escritura; uma escritura que se aproveita de todos os estilos e de todas as formas clássicas, modernas e, mesmo revolucionárias, como a cubista, citada há pouco. Uma escritura ao mesmo tempo concreta, como a arquitetura mais sólida; e abstrata, como a música que se irradia por toda a sua obra através da chamada “pequena frase” musical, conhecida, na intimidade, como o “hino nacional” do amor entre Swann e Odette de Crécy, composta por um músico imaginário, Vinteuil –, inspirado em Saint-Saens, um compositor que não era do agrado de Proust, mas de Reynaldo Hahn, o amigo bonito e talentoso a quem o escritor desejava seduzir e agradar.
A “Busca...” não é, a rigor, uma obra de ficção, mas duma espécie nova de imaginação que interpreta e amplia a realidade. Para escrevê-la, preparou-se toda sua vida, pesquisou e inquiriu, pensando que ao escrevê-la justificaria a sua existência, pois acreditava que a imortalidade é possível, sim, mas somente através da criação de uma obra. Essa, a grande obsessão que o dominou e o exauriu e que ele intentou resolver desde o começo. Porém, entregue desde menino e adolescente à nostalgia da elucidação, própria dos artistas, por intuir que a literatura é a forma mais apurada de vida, Proust tornou-se um desses artistas que precisam de conhecimentos sólidos; que precisa conhecer exatamente as coisas sobre as quais escreve. E como alguém que encarou o ato de escrever como uma dificuldade, não recuou dos obstáculos. Escreveu denodadamente, como o soldado que quis ser ao inscrever-se voluntariamente para o serviço militar. Desejava, dessa forma, experimentar todas as sensações na própria fonte da vida. Para um dia descrevê-la, precisava tê-la vivido...
A recorrência de temas e episódios é uma técnica que limita com o estranhamento e a obsessão. Ele intuiu que uma lembrança, um pesar, um prazer, são coisas móveis. Uma mudança de tempo é suficiente para recriar o mundo e a nós mesmos. Proust nos ensina, assim, que o artista não tem necessidade de expressar diretamente seu pensamento em sua obra, para que esta reflita a qualidade desse pensamento. Explicando o seu ponto de vista, ele escrever que:
“[...] Também se pode dizer que o louvor mais alto de Deus está na negação do ateu, que acha a criação demasiado perfeita para que possa prescindir de criador”.
André Maurois destacou as três coisas da vida de Proust que mais importam em sua obra:
1ª.] O célebre episódio do bolinho em forma de concha, chamado de madalena, que aparece pela primeira vez em “Contra Sainte-Beuve”, sob a forma de um pedaço de pão tostado que é molhado no chá;
2ª.] À teoria da madalena – que deflagra a memória involuntária do Narrador – acrescenta-se a sensação provocada por um passo em falso, que remete ao pátio de São Marcos, em Veneza;
3ª.] O interesse de Proust pela careta, que se manifesta na vida pelo dom de reproduzir os tiques das pessoas e, na arte, pelo sentido da caricatura.
Proust praticou as duas formas. Ele foi extraordinariamente dotado de talento para a imitação e a paródia, como sabemos. E, como tal, foi um dos fundadores da Academia Canibal que impunha como regra a todos aquele que desejassem ingressar nos seus quadros, fazer uma careta. Gostava de divertir os amigos, imitando-os com tal propriedade que às vezes feria susceptibilidades.
Jean Dutourd, num comentário à análise de Maurois, confirma que os grandes artistas têm obrigatoriamente essa visão exagerada do mundo, graças a qual ele lhes parece como gigantesco quadro em claro-escuro de onde só emerge o que é digno de ser visto e apreciado. Daí, com frequência, o aspecto irreal maior que o natural de sua obra, que não é senão uma ilusão do leitor ou do espectador, pois é o artista, com o seu olho deformado, que vê melhor.
As caricaturas prevalecem sobre as personagens de Proust. E é precisamente isto que as faz ter uma vida romanesca enorme, como faz a “Busca...” parecer um espelho da sociedade.
Proust entende que não se pinta a realidade a não ser pelo exagero. Os heróis mais comoventes não vivem se quem os retrata se esquece de mostrar seus ridículos, que são efetivamente sua carne, seus músculos e sua humanidade.
Curiosamente, os romancistas medíocres não veem nunca essa carne; seus olhos atravessam como raios x e suas obras são radiografias onde só contemplamos esqueletos. Suas personagens, a desses autores esquemáticos, não têm profundidade nem consistência. São meros bonecos animados por uma mecânica rasa, enquanto em Proust são seres vivos e pensantes.
Não há em toda obra de Proust nenhuma personagem importante que não tenha seus ridículos. Por isso nos reconhecemos neles e os queremos por toda a vida. Nem mesmo a avó querida do Narrador – inspirada na mãe e na avó de Proust – escapa a essa contingência e se apresenta ao leitor como uma maníaca das citações. Essa acuidade do escritor constituía, no plano emocional, uma disciplina exigente e violenta, pois fazia o leitor rir daquelas pessoas a quem o autor mais amava. A risada da Sra. Greffulhe, que serviu como um dos modelos principais da Duquesa de Guermantes parecia-lhe, pela singularidade da sua sonoridade, o carrilhão de Bruges.
O Barão de Charlus assemelha-se a um velho livro da Idade Média, cheio de erros, de tradições absurdas, de obscenidades e extraordinariamente compósito. Já a natureza de Morel, o jovem músico amoral e interesseiro, protegido do Barão, era verdadeiramente como um papel em que fizeram tantas dobras em todos os sentidos que é impossível destrinçar coisa alguma de sua alma. Proust não simpatizava com Balzac, embora usufruísse de sua leitura desde a infância, faz do Barão um balzaquiano fanático:
“[...] O senhor de Charlus era muito inteligente – escreve em “Sodoma e Gomorra” – e é provável que se algum casamento antigo houvesse estabelecido um parentesco entre sua família e a de Balzac, ele sentiria [não menos que Balzac, aliás] – um desvanecimento de que no entanto não podia deixar de vangloriar-se como de uma prova de admirável condescendência”.
Sobre os narizes, escreveu:
“[...] Por uma transposição de sentidos, o Sr. De Cambremer nos olhava com o nariz. Esse nariz do Sr. de Cambremer não era feio, antes um pouco belo demais, demasiado forte, demasiado orgulhoso de sua importância. Arqueado, brunido, luzidio, novo em folha, estava de todo disposto a compensar a insuficiência espiritual do olhar; infelizmente, se os olhos são algumas vezes o órgão em que se revela a inteligência, o nariz [qualquer que seja aliás a intima solidariedade e a insuspeitada repercussão dos traços uns sobre os outros], o nariz é geralmente o órgão onde com mais facilidade se revela a tolice”.
Proust descobriu que é divertidíssimo escrever crítica literária porque o gênero se presta à paródia. Ele disse a Roberto Dreyfus, em 1908, que havia descoberto através desse exercício sempre colocado sob suspeita, principalmente pelos criticados, que era possível detectar características especificas e ao mesmo tempo fazê-las parecer ridículas aos olhos do leitor. Num depoimento esclarecedor, Paul Bourget – que na juventude de Proust rivalizava com Anatole France a preferência dos leitores burgueses – afirmou que o autor da “Busca...” é um espírito que sabe pensar sobre suas leituras.
O pastiche e a paródia, que começaram como brincadeira em Proust, acabaram tornando-se uma forma especial de arte que permeiam toda “Busca...”
Como crítico, isto é, como o escritor de paródias, Proust diverte-se ao mergulhar de novo na sombra o que era radiante há demasiado tempo, e em fazer sair da sombra o que parecia condenado à obscuridade definitiva.
Sua tia Elizabeth, irmã do Prof. Adrien Proust, residente em Illiers, onde nasceu e morreu, inspirou uma de suas melhores caricaturas, a da tia Léonie, que oferece ao Narrador a colherada de madalena dissolvida no chá de tília. Esse episódio, aparentemente banal como um resfriado, daria a chave de toda a obra de Proust.
Hipocondríaca, sofrendo a muitos anos de uma doença imaginária que a mantém refém do seu quarto, já não se alimentava senão de chá e biscoitos. O que o Narrador menino sentiu, ao provar a mistura que lhe era oferecida por sua tia Léonie, isto é, por Elizabeth, nos seria contado depois sob a forma que conhecemos.
Como Elizabeth Amiot, Léonie também era casada e enviuvou. Às vezes era tomada de um verdadeiro pânico, pois temia que o seu “pobre Otávio” não morrera e voltava para levá-la num passeio pelas ruas de Combray...
Combray... Amálgama de Illiers e de Auteuil, nos arredores de Paris, onde o escritor nasceu no dia 10 de julho de 1871, Combray era o resumo afetivo e mitológico daqueles dois Edens da infância de Proust; cidadezinha imaginária como Saint-André-des-Champs, com o seu pórtico esculpido, se tornaria o símbolo de uma França medieval.
Em Combray estão as sementes de toda obra proustiana, que se realiza – para além do convencionalismo literário da época –, como uma obra sinfônica à maneira de Wagner, que algumas décadas antes fizera a sua entrada triunfal em Paris, e era admirado por Proust e pelo seu mestre Baudelaire. Lá, o Narrador sem nome e sem idade – que é sem duvida o duplo do autor –, percorre os caminhos de Swann e de Guermantes, que, com o tempo, vão perdendo a sua aura. De perto, a duquesa – em sua juventude alçada à condição de deusa – parece-lhe inteligente e mesquinha.
Os Guermantes eram uma gente que tinha mais de mil anos de feudalismo no sangue, como diria Swann; e descendiam de Genoveva de Brabante e de Gilberto o Mau, imortalizado nos vitrais da igreja de Combray, onde a duquesa, de passagem por seus antigos domínios, assistia à missa dominical ajoelhada num genuflexório que ostentava o brasão de sua família. Num retrato retrospectivo o Narrador a descreve:
“[...] Os traços da Duquesa de Guermantes que estavam catalogados na minha visão de Combray, o nariz de falcão, os olhos agudos, também pareciam ter servido para recortar – em outro exemplar análogo e delgado, de pele demasiado fina – a face de Roberto quase superposta á de sua tia. Contemplava nele com inveja aqueles traços característicos dos Guermantes, dessa raça que se conservara tão peculiar no meio do mundo em que não se perde, e em que permanece isolada na sua glória divinamente ornitológica, pois parece nascida, nas eras mitológicas, da união de uma deusa e de um pássaro”.
A infância de Proust se passa em quatro cenários que, transpostos e transfigurados por sua arte, tornaram-se conhecidos em todo mundo. O primeiro desses cenários é Paris, onde ele vivia com seus pais, Adrien Proust, médico e professor de grande projeção no meio acadêmico e social, e de Jeanne Weil, de origem judia, que orientou as leituras do filho. Proust tinha ainda um irmão, Roberto, que seguiu a medicina e foi o guardião de sua obra a partir de 1922.
O segundo cenário da infância de Proust é Illiers-Combray, onde a família passava as férias e o jovem Proust, recolhido ao quarto, lia os clássicos e se entregava aos prazeres da masturbação. Relembrando esse tempo, Proust escreve que não há talvez dias de nossa infância que tenhamos tão plenamente vivido quantos aqueles que passamos na companhia de um livro querido. No caso, esse livro era “O Capitão Fracasso”, de autoria de Theophile Gouthier, evocado na “Busca...” sob um novo titulo – François le champi – e um outro autor – George Sand – recurso que demonstram claramente sua técnica e seus propósitos de escritor.
Os últimos cenários da infância de Proust são secundários: a casa do tio Louis Weil, em Auteuil, onde, visitando-o, conheceu a “dama de rosa”, uma prostituta de alto nível, amiga do seu tio, um dos modelos de Odette de Crécy; e as praias da Mancha, roteiro de verão percorrido na companhia da avó materna, Adèle Berncastel; grande apreciadora dos clássicos franceses, gostava de adornar sua conversação e correspondência com citações de seus autores prediletos.
Trouville ou Diêppe e, depois, Cabourg que, amalgamadas, fundidas e depuradas pela escritura proustiana, resultariam na criação de Balbec, palavra arcaica cuja sonoridade feita do ruído dos ventos e das ondas, recria em solo francês uma daquelas longínquas praias orientais de onde algum dia havia partido seus antepassados maternos.
Proust trabalhou durante vinte anos com o intuito de escrever o seu livro, sem chegar, no entanto, às soluções que depois adotaria com tanto êxito. A descoberta da memória involuntária, inspirada em parte das ideias do filósofo Henri Bergson, seu primo, é talvez a contribuição mais importante de Proust à literatura. Depois dele, a literatura não seria mais a mesma. Ela se produz no texto pela coincidência entre uma sensação atual e uma lembrança. Por este processo a lembrança, há muito esquecida vem à tona, involuntariamente, sem o auxilio do intelecto, que Proust considerava o meio mais inadequado para evocar o passado.
Nosso erro – afirma Proust em “A Fugitiva” – está em acreditar que as coisas se apresentam habitualmente tais quais são na realidade; os nomes tais quais como são escritos; as pessoas tais quais como a fotografia e a psicologia delas fornecem uma noção imóvel.
George D. Painter, autor de uma biografia clássica de Proust, afirma, por sua vez, que o escritor acreditava, com acerto, que sua vida possuía a forma e o significado de uma grande obra de arte. Ouçamo-lo:
“[...] Seria tarefa sua selecionar, reagrupar e transmitir os fatos de modo que seu significado universal fosse revelado; a esta revelação da relação entre sua própria vida e seu romance por nascer é um dos significados principais do “Tempo Redescoberto”, que, imitando os movimentos de uma sinfonia, encerra ou recomeça a trama proustiana.
Proust teria fundido cada grupo de casos particulares num todo complexo, universal, e assim extraiu a verdade sobre a poesia dos lugares, do amor, do ciúme ou do modo das duquesas, e, acima de tudo, o significado do mistério de sua própria vida.
A morte da mãe de Proust em 1905, com quem ele viveu os primeiros 35 anos de sua curta existência, representa um rito de passagem para o escritor; corresponde, em termos mitológicos, a uma descida aos infernos seguida de uma ressurreição. Sua dor foi profunda e inenarrável. Porém agora ele podia escrever aqueles livros que, se sua mãe os lesse, ficaria chocada. Agora ele podia deixar de lado as duquesas e associar-se aos prazeres proporcionados por aqueles rapazes do povo que ele conhecera em Orleáns transfigurada no seu livro em Doncieres, na época em que prestara o seu serviço militar voluntário, vivera vida de caserna e conhecera o sexo ou, como diria um seu contemporâneo, “o amor que não ousa dizer o nome”... Contudo, essa liberdade conquistada ao preço da morte da própria mãe, mergulha Proust nas trevas do remorso e da culpa. A essa fase de sua vida, eivada de angústia e remorso, corresponde em seu livro ao tempo em que o Narrador – ou o seu duplo – interna-se numa clínica de repouso.
Começa então, após esse acontecimento capital, a última fase da vida de Proust, quando o vemos refugiado no trabalho e na enfermidade. Durante toda a sua vida, um período de moléstia prolongada coincidia também com um período em que se absorvia em escrever.
Proust escreve em alguma parte do seu romance-rio:
“[...] Só o mal faz observar e aprender e permite decompor os mecanismos que, sem isso, não conheceríamos. Um homem que, todas as noites, cai como uma massa na cama e não vive mais até o momento de acordar e levantar-se, tal homem há de pensar alguma vez em fazer, senão grandes descobertas, pelo menos pequenas observações sobre o sono? Ele mal sabe que dorme. Um pouco de insônia não é inútil para apreciar o sono, projetar uma luz nessa noite. Uma memória sem desfalecimento não é um excitante muito poderoso para estudar os fenômenos da memória”.
Foi sobretudo do seu quarto que ele percebeu a vida exterior; primeiro em Illiers, na casa de sua tia, depois em Paris, em todos os quartos que teve, principalmente aquele famosíssimo quarto forrado de cortiça – para amortecer os derradeiros ruídos da vida–, onde nos últimos catorze anos escreveu e concluiu sua vida e sua obra.
O Narrador da “Busca...”, como o próprio Proust, sentiu-se mal ao visitar uma exposição a que fora, mesmo doente, para verificar in loco uma informação ou tirar uma dúvida.
Assim, os espaços de sua memória e do seu livro, pouco a pouco se cobriam de nomes que, ordenando-se através daquelas famosas frases e parágrafos proustianos, análogos à sua asma, compunham-se em relação uns aos outros, entrelaçando correspondências cada vez mais numerosas, imitando essas acabadas obras de arte onde cada parte recebe sucessivamente das outras a sua razão de ser.
Proust morreu no dia 18 de novembro de 1922, de complicações oriundas de uma bronquite contraída ao sair da casa do Conde Etienne de Beaumont, onde certamente teria ido tirar uma duvida ou colher alguma informação que faltava à sua obra. Sabe-se que nesses últimos anos ele só saía de casa nessa circunstância.
Morreu?, perguntam-se os que o leem e admiram. Também se perguntam os críticos, os professores, os estudantes de letras e todos aqueles que amam a literatura e nela buscam um sentido para a vida. Esta palavra – morreu! –, aplicada a Proust, não faz nenhum sentido. Ninguém está mais vivo do que ele, que acreditava ser a imortalidade possível, sim, mas somente através da criação de uma obra. Essa obra ele a criou com a sua própria vida e desde então nós a seguimos lendo e relendo, há oitenta e seis anos, como o espírito de um artista que continua a modelar muitos anos depois de haver-se extinguido a estátua que esculpiu, o livro que escreveu, o quadro que pintou e que representam sua permanência – no Tempo.
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É costume dizer-se que a asma era a epilepsia de Proust, num esforço analógico de aproximação com Dostoievski, de quem o autor de “Em Busca do Tempo Perdido” teria extraído a paixão do abismo psicológico, levado a um extremo de lucidez em sua análise das intermitências do coração; exposta em escorço em “Sodoma e Gomorra” que se segue ao volume intitulado de “O Caminho de Guermantes”, no qual anjos decaídos ou homens-mulheres fazem a sua aparição entre vapores de enxofre da mais fina e requintada perversidade, em seguida aprofundada de maneira magistral sob a forma do mais minucioso e agoniante exame do ciúme, em “A Prisioneira”, que correspondem, no conjunto da obra, ao quarto e ao quinto volumes.
Porém, como romancista, Proust estava mais próximo de outro russo, Tolstoi – frequentemente citado pela duquesa de Guermantes –, já presente em seu livro de estreia, “Os Prazeres e os dias” [1896]. Seu épico “Guerra e Paz” terá sido um dos modelos secundários da arquitetura do romance proustiano. Além disso, ambos tiveram saúde delicada e manejaram com indiscutível mestria grandes contingentes humanos. Também souberam extrair verdades profundas de meios sociais distintos.
A Duquesa de Guermantes – uma das personagens mais emblemáticas de Proust –, além de possuir em alto grau aquilo que o Narrador inominado chama de o “espírito de Guermantes”, é leitora contumaz de Tolstoi, autor que muito ensinou a Proust, que soube sempre tirar máximo proveito da experiência alheia e a usou para engrandecer a sua própria obra.
Numa passagem famosa, apresentada sob a forma de comentário sobre a natureza do humor de Oriana, a duquesa – que é inteligente e não respeita as convenções –, interroga o próprio Nicolau, quando da visita do Czar à Paris, acerca dos boatos que davam conta que ele havia mandado matar o grande e incômodo escritor que se colocara ao lado dos camponeses e, encastelado em suas extensas propriedades rurais, atiçava a luta de classes em seu país.
Tolstoi pertencia à nobreza rural; Proust, à alta burguesia parisiense com sólidas raízes na província. Como Tolstoi, Proust percebe que há um encanto na doença que nos aproxima das realidades de além da morte. Talvez, numa alusão a esta passagem de Proust, André Maurois reflete e acrescenta que não basta ser um doente para tornar-se um analista de gênio, mas a doença – como a insônia num escritor de talento – constitui uma das engrenagens de um mecanismo mental que aumenta o poder de análise. Quase se pode dizer, portanto, que as obras, como os poços artesianos, sobem mais alto à medida que o sofrimento tenha cavado mais fundo o coração.
O método proustiano consistia, como sabemos, na observação inteligente e profunda do modelo e na compreensão total das coisas aparentemente desprovidas de significação. Seu modelo é sempre compósito, como num desses jogos armados com os elementos mais díspares, submetidos – no caso da escritura proustiana – ao mais rigoroso processo de elaboração aclaramento das obscuridades. Este procedimento é assim sintetizado numa frase do próprio Proust: É preciso ter visto muitas igrejas para descrever uma.
Proust vai buscar suas sínteses e achados literários nos objetos, nas coisas e nos lugares menos prováveis. Ele não discrimina temas nem personagens, pois percebe a diversidade em tudo, por isso achava igualmente interessante escrever sobre os hábitos de uma duquesa quanto aos de uma criada. Porém, como artista, faz uso da técnica que consiste em dar forma ao informe e tornar o ininteligível claro.
Permitam-me, agora, uma digressão.
É notável a influência de Proust sobre Borges, embora o argentino – como o próprio Proust um gênio da dissimulação e da paródia –, não esclareça nada a esse respeito, talvez porque não agrade aos escritores dever nada aos seus contemporâneos. Porém, tanto Borges como Proust exprimiam-se como escritores autênticos, capazes de tirar lições de tudo e de extrair a essência profunda que dá consistência e singularidade às obras verdadeiramente criadas. E, aqui, eu sugeriria a leitura de um texto de Borges, o conto Pierre Menard, autor do Quixote. Talvez ele pensasse em Proust ao escrevê-lo...
Mas, voltando ao nosso autor. Sua escritura, como a de Borges, resulta de um intricado entrelaçamento de linguagens, de observações sutis e de variações paródicas dos clássicos franceses, entre os quais Saint-Simon, a quem Proust admirava e relia, terá sido das mais significativas; e dos irmãos Goncourt, vitimas costumeiras de sua sátira bem humorada.
Ao narrar, Proust busca o tom da alta indiferença, da indiferença apaixonada, como um virtuose que não quer dar parte de doente. Esse virtuosismo proustiano já está inteiro no primeiro texto – que contribuiu para desacreditá-lo –, como um exercício de estilo que seria incorporado à obra madura, conhecido como “os campanários de Martinville”, inspirado num passeio do autor a Illiers, terra de origem do professor Adrien Proust, onde a família do escritor passava as férias da Páscoa. É um texto, do ponto de vista estilístico, cubista – um texto curiosamente sucessivo, auto-transformante, através do qual descreve as torres de uma igreja provinciana vista de diversos ângulos, durante um passeio do Narrador, então um menino.
Muito elucidativo dos processos adotados pelo autor – que em beneficio de sua obra costumava apropriar-se de todos os recursos possíveis –, merece transcrição:
“[...] Uma ocasião, no entanto – no dia em que o passeio se prolongou bastante tempo além de sua costumeira duração, ficamos contentes de encontrar a meio caminho, quando já retornávamos ao cair da tarde, o doutor Percepied que, como naquele momento passasse velozmente em sua caleça, reconheceu-nos e nos fez regressar com ele –, tive uma daquelas impressões e a abandonei sem antes tê-la aprofundado um pouco [...]. Numa curva do caminho, subitamente senti aquele prazer inefável que não se assemelhava com nenhum outro, quando avistei os dois campanários de Martinville, sobre os quais incidiam os derradeiros raios de sol e que, graças ao movimento da caleça e aos ziguezagues da estrada, pareciam mudar de lugar, e em seguida o de Vieuxvicq que, separado daqueles dois por uma colina e um vale e situado ao longe num planalto mais elevado, parecia no entanto estar bem ao lado deles [...]. Ao observar a forma de sua flecha, o deslocamento de suas linhas, o ensolarado de sua superfície, sentia que não estava exaurindo minhas impressões, que havia alguma coisa por detrás daquele movimento, por detrás daquela luminosidade, alguma coisa que parecia ao mesmo tempo encerrar e ocultar de mim [...]. Sem dizer comigo que a coisa que se ocultava atrás dos campanários de Martinville devia ser algo análogo a uma bela frase, porquanto era sob a forma de palavras do meu agrado que aquilo me havia aparecido, pedi lápis e papel ao doutor e escrevi, apesar dos sacolejos da caleça, e para aliviar a consciência e obedecer a meu entusiasmo [...]”. In “No Caminho de Swann”
Proust tem um olho e um ouvido infalíveis que prestam serviço dobrado na elaboração de sua escritura; uma escritura que se aproveita de todos os estilos e de todas as formas clássicas, modernas e, mesmo revolucionárias, como a cubista, citada há pouco. Uma escritura ao mesmo tempo concreta, como a arquitetura mais sólida; e abstrata, como a música que se irradia por toda a sua obra através da chamada “pequena frase” musical, conhecida, na intimidade, como o “hino nacional” do amor entre Swann e Odette de Crécy, composta por um músico imaginário, Vinteuil –, inspirado em Saint-Saens, um compositor que não era do agrado de Proust, mas de Reynaldo Hahn, o amigo bonito e talentoso a quem o escritor desejava seduzir e agradar.
A “Busca...” não é, a rigor, uma obra de ficção, mas duma espécie nova de imaginação que interpreta e amplia a realidade. Para escrevê-la, preparou-se toda sua vida, pesquisou e inquiriu, pensando que ao escrevê-la justificaria a sua existência, pois acreditava que a imortalidade é possível, sim, mas somente através da criação de uma obra. Essa, a grande obsessão que o dominou e o exauriu e que ele intentou resolver desde o começo. Porém, entregue desde menino e adolescente à nostalgia da elucidação, própria dos artistas, por intuir que a literatura é a forma mais apurada de vida, Proust tornou-se um desses artistas que precisam de conhecimentos sólidos; que precisa conhecer exatamente as coisas sobre as quais escreve. E como alguém que encarou o ato de escrever como uma dificuldade, não recuou dos obstáculos. Escreveu denodadamente, como o soldado que quis ser ao inscrever-se voluntariamente para o serviço militar. Desejava, dessa forma, experimentar todas as sensações na própria fonte da vida. Para um dia descrevê-la, precisava tê-la vivido...
A recorrência de temas e episódios é uma técnica que limita com o estranhamento e a obsessão. Ele intuiu que uma lembrança, um pesar, um prazer, são coisas móveis. Uma mudança de tempo é suficiente para recriar o mundo e a nós mesmos. Proust nos ensina, assim, que o artista não tem necessidade de expressar diretamente seu pensamento em sua obra, para que esta reflita a qualidade desse pensamento. Explicando o seu ponto de vista, ele escrever que:
“[...] Também se pode dizer que o louvor mais alto de Deus está na negação do ateu, que acha a criação demasiado perfeita para que possa prescindir de criador”.
André Maurois destacou as três coisas da vida de Proust que mais importam em sua obra:
1ª.] O célebre episódio do bolinho em forma de concha, chamado de madalena, que aparece pela primeira vez em “Contra Sainte-Beuve”, sob a forma de um pedaço de pão tostado que é molhado no chá;
2ª.] À teoria da madalena – que deflagra a memória involuntária do Narrador – acrescenta-se a sensação provocada por um passo em falso, que remete ao pátio de São Marcos, em Veneza;
3ª.] O interesse de Proust pela careta, que se manifesta na vida pelo dom de reproduzir os tiques das pessoas e, na arte, pelo sentido da caricatura.
Proust praticou as duas formas. Ele foi extraordinariamente dotado de talento para a imitação e a paródia, como sabemos. E, como tal, foi um dos fundadores da Academia Canibal que impunha como regra a todos aquele que desejassem ingressar nos seus quadros, fazer uma careta. Gostava de divertir os amigos, imitando-os com tal propriedade que às vezes feria susceptibilidades.
Jean Dutourd, num comentário à análise de Maurois, confirma que os grandes artistas têm obrigatoriamente essa visão exagerada do mundo, graças a qual ele lhes parece como gigantesco quadro em claro-escuro de onde só emerge o que é digno de ser visto e apreciado. Daí, com frequência, o aspecto irreal maior que o natural de sua obra, que não é senão uma ilusão do leitor ou do espectador, pois é o artista, com o seu olho deformado, que vê melhor.
As caricaturas prevalecem sobre as personagens de Proust. E é precisamente isto que as faz ter uma vida romanesca enorme, como faz a “Busca...” parecer um espelho da sociedade.
Proust entende que não se pinta a realidade a não ser pelo exagero. Os heróis mais comoventes não vivem se quem os retrata se esquece de mostrar seus ridículos, que são efetivamente sua carne, seus músculos e sua humanidade.
Curiosamente, os romancistas medíocres não veem nunca essa carne; seus olhos atravessam como raios x e suas obras são radiografias onde só contemplamos esqueletos. Suas personagens, a desses autores esquemáticos, não têm profundidade nem consistência. São meros bonecos animados por uma mecânica rasa, enquanto em Proust são seres vivos e pensantes.
Não há em toda obra de Proust nenhuma personagem importante que não tenha seus ridículos. Por isso nos reconhecemos neles e os queremos por toda a vida. Nem mesmo a avó querida do Narrador – inspirada na mãe e na avó de Proust – escapa a essa contingência e se apresenta ao leitor como uma maníaca das citações. Essa acuidade do escritor constituía, no plano emocional, uma disciplina exigente e violenta, pois fazia o leitor rir daquelas pessoas a quem o autor mais amava. A risada da Sra. Greffulhe, que serviu como um dos modelos principais da Duquesa de Guermantes parecia-lhe, pela singularidade da sua sonoridade, o carrilhão de Bruges.
O Barão de Charlus assemelha-se a um velho livro da Idade Média, cheio de erros, de tradições absurdas, de obscenidades e extraordinariamente compósito. Já a natureza de Morel, o jovem músico amoral e interesseiro, protegido do Barão, era verdadeiramente como um papel em que fizeram tantas dobras em todos os sentidos que é impossível destrinçar coisa alguma de sua alma. Proust não simpatizava com Balzac, embora usufruísse de sua leitura desde a infância, faz do Barão um balzaquiano fanático:
“[...] O senhor de Charlus era muito inteligente – escreve em “Sodoma e Gomorra” – e é provável que se algum casamento antigo houvesse estabelecido um parentesco entre sua família e a de Balzac, ele sentiria [não menos que Balzac, aliás] – um desvanecimento de que no entanto não podia deixar de vangloriar-se como de uma prova de admirável condescendência”.
Sobre os narizes, escreveu:
“[...] Por uma transposição de sentidos, o Sr. De Cambremer nos olhava com o nariz. Esse nariz do Sr. de Cambremer não era feio, antes um pouco belo demais, demasiado forte, demasiado orgulhoso de sua importância. Arqueado, brunido, luzidio, novo em folha, estava de todo disposto a compensar a insuficiência espiritual do olhar; infelizmente, se os olhos são algumas vezes o órgão em que se revela a inteligência, o nariz [qualquer que seja aliás a intima solidariedade e a insuspeitada repercussão dos traços uns sobre os outros], o nariz é geralmente o órgão onde com mais facilidade se revela a tolice”.
Proust descobriu que é divertidíssimo escrever crítica literária porque o gênero se presta à paródia. Ele disse a Roberto Dreyfus, em 1908, que havia descoberto através desse exercício sempre colocado sob suspeita, principalmente pelos criticados, que era possível detectar características especificas e ao mesmo tempo fazê-las parecer ridículas aos olhos do leitor. Num depoimento esclarecedor, Paul Bourget – que na juventude de Proust rivalizava com Anatole France a preferência dos leitores burgueses – afirmou que o autor da “Busca...” é um espírito que sabe pensar sobre suas leituras.
O pastiche e a paródia, que começaram como brincadeira em Proust, acabaram tornando-se uma forma especial de arte que permeiam toda “Busca...”
Como crítico, isto é, como o escritor de paródias, Proust diverte-se ao mergulhar de novo na sombra o que era radiante há demasiado tempo, e em fazer sair da sombra o que parecia condenado à obscuridade definitiva.
Sua tia Elizabeth, irmã do Prof. Adrien Proust, residente em Illiers, onde nasceu e morreu, inspirou uma de suas melhores caricaturas, a da tia Léonie, que oferece ao Narrador a colherada de madalena dissolvida no chá de tília. Esse episódio, aparentemente banal como um resfriado, daria a chave de toda a obra de Proust.
Hipocondríaca, sofrendo a muitos anos de uma doença imaginária que a mantém refém do seu quarto, já não se alimentava senão de chá e biscoitos. O que o Narrador menino sentiu, ao provar a mistura que lhe era oferecida por sua tia Léonie, isto é, por Elizabeth, nos seria contado depois sob a forma que conhecemos.
Como Elizabeth Amiot, Léonie também era casada e enviuvou. Às vezes era tomada de um verdadeiro pânico, pois temia que o seu “pobre Otávio” não morrera e voltava para levá-la num passeio pelas ruas de Combray...
Combray... Amálgama de Illiers e de Auteuil, nos arredores de Paris, onde o escritor nasceu no dia 10 de julho de 1871, Combray era o resumo afetivo e mitológico daqueles dois Edens da infância de Proust; cidadezinha imaginária como Saint-André-des-Champs, com o seu pórtico esculpido, se tornaria o símbolo de uma França medieval.
Em Combray estão as sementes de toda obra proustiana, que se realiza – para além do convencionalismo literário da época –, como uma obra sinfônica à maneira de Wagner, que algumas décadas antes fizera a sua entrada triunfal em Paris, e era admirado por Proust e pelo seu mestre Baudelaire. Lá, o Narrador sem nome e sem idade – que é sem duvida o duplo do autor –, percorre os caminhos de Swann e de Guermantes, que, com o tempo, vão perdendo a sua aura. De perto, a duquesa – em sua juventude alçada à condição de deusa – parece-lhe inteligente e mesquinha.
Os Guermantes eram uma gente que tinha mais de mil anos de feudalismo no sangue, como diria Swann; e descendiam de Genoveva de Brabante e de Gilberto o Mau, imortalizado nos vitrais da igreja de Combray, onde a duquesa, de passagem por seus antigos domínios, assistia à missa dominical ajoelhada num genuflexório que ostentava o brasão de sua família. Num retrato retrospectivo o Narrador a descreve:
“[...] Os traços da Duquesa de Guermantes que estavam catalogados na minha visão de Combray, o nariz de falcão, os olhos agudos, também pareciam ter servido para recortar – em outro exemplar análogo e delgado, de pele demasiado fina – a face de Roberto quase superposta á de sua tia. Contemplava nele com inveja aqueles traços característicos dos Guermantes, dessa raça que se conservara tão peculiar no meio do mundo em que não se perde, e em que permanece isolada na sua glória divinamente ornitológica, pois parece nascida, nas eras mitológicas, da união de uma deusa e de um pássaro”.
A infância de Proust se passa em quatro cenários que, transpostos e transfigurados por sua arte, tornaram-se conhecidos em todo mundo. O primeiro desses cenários é Paris, onde ele vivia com seus pais, Adrien Proust, médico e professor de grande projeção no meio acadêmico e social, e de Jeanne Weil, de origem judia, que orientou as leituras do filho. Proust tinha ainda um irmão, Roberto, que seguiu a medicina e foi o guardião de sua obra a partir de 1922.
O segundo cenário da infância de Proust é Illiers-Combray, onde a família passava as férias e o jovem Proust, recolhido ao quarto, lia os clássicos e se entregava aos prazeres da masturbação. Relembrando esse tempo, Proust escreve que não há talvez dias de nossa infância que tenhamos tão plenamente vivido quantos aqueles que passamos na companhia de um livro querido. No caso, esse livro era “O Capitão Fracasso”, de autoria de Theophile Gouthier, evocado na “Busca...” sob um novo titulo – François le champi – e um outro autor – George Sand – recurso que demonstram claramente sua técnica e seus propósitos de escritor.
Os últimos cenários da infância de Proust são secundários: a casa do tio Louis Weil, em Auteuil, onde, visitando-o, conheceu a “dama de rosa”, uma prostituta de alto nível, amiga do seu tio, um dos modelos de Odette de Crécy; e as praias da Mancha, roteiro de verão percorrido na companhia da avó materna, Adèle Berncastel; grande apreciadora dos clássicos franceses, gostava de adornar sua conversação e correspondência com citações de seus autores prediletos.
Trouville ou Diêppe e, depois, Cabourg que, amalgamadas, fundidas e depuradas pela escritura proustiana, resultariam na criação de Balbec, palavra arcaica cuja sonoridade feita do ruído dos ventos e das ondas, recria em solo francês uma daquelas longínquas praias orientais de onde algum dia havia partido seus antepassados maternos.
Proust trabalhou durante vinte anos com o intuito de escrever o seu livro, sem chegar, no entanto, às soluções que depois adotaria com tanto êxito. A descoberta da memória involuntária, inspirada em parte das ideias do filósofo Henri Bergson, seu primo, é talvez a contribuição mais importante de Proust à literatura. Depois dele, a literatura não seria mais a mesma. Ela se produz no texto pela coincidência entre uma sensação atual e uma lembrança. Por este processo a lembrança, há muito esquecida vem à tona, involuntariamente, sem o auxilio do intelecto, que Proust considerava o meio mais inadequado para evocar o passado.
Nosso erro – afirma Proust em “A Fugitiva” – está em acreditar que as coisas se apresentam habitualmente tais quais são na realidade; os nomes tais quais como são escritos; as pessoas tais quais como a fotografia e a psicologia delas fornecem uma noção imóvel.
George D. Painter, autor de uma biografia clássica de Proust, afirma, por sua vez, que o escritor acreditava, com acerto, que sua vida possuía a forma e o significado de uma grande obra de arte. Ouçamo-lo:
“[...] Seria tarefa sua selecionar, reagrupar e transmitir os fatos de modo que seu significado universal fosse revelado; a esta revelação da relação entre sua própria vida e seu romance por nascer é um dos significados principais do “Tempo Redescoberto”, que, imitando os movimentos de uma sinfonia, encerra ou recomeça a trama proustiana.
Proust teria fundido cada grupo de casos particulares num todo complexo, universal, e assim extraiu a verdade sobre a poesia dos lugares, do amor, do ciúme ou do modo das duquesas, e, acima de tudo, o significado do mistério de sua própria vida.
A morte da mãe de Proust em 1905, com quem ele viveu os primeiros 35 anos de sua curta existência, representa um rito de passagem para o escritor; corresponde, em termos mitológicos, a uma descida aos infernos seguida de uma ressurreição. Sua dor foi profunda e inenarrável. Porém agora ele podia escrever aqueles livros que, se sua mãe os lesse, ficaria chocada. Agora ele podia deixar de lado as duquesas e associar-se aos prazeres proporcionados por aqueles rapazes do povo que ele conhecera em Orleáns transfigurada no seu livro em Doncieres, na época em que prestara o seu serviço militar voluntário, vivera vida de caserna e conhecera o sexo ou, como diria um seu contemporâneo, “o amor que não ousa dizer o nome”... Contudo, essa liberdade conquistada ao preço da morte da própria mãe, mergulha Proust nas trevas do remorso e da culpa. A essa fase de sua vida, eivada de angústia e remorso, corresponde em seu livro ao tempo em que o Narrador – ou o seu duplo – interna-se numa clínica de repouso.
Começa então, após esse acontecimento capital, a última fase da vida de Proust, quando o vemos refugiado no trabalho e na enfermidade. Durante toda a sua vida, um período de moléstia prolongada coincidia também com um período em que se absorvia em escrever.
Proust escreve em alguma parte do seu romance-rio:
“[...] Só o mal faz observar e aprender e permite decompor os mecanismos que, sem isso, não conheceríamos. Um homem que, todas as noites, cai como uma massa na cama e não vive mais até o momento de acordar e levantar-se, tal homem há de pensar alguma vez em fazer, senão grandes descobertas, pelo menos pequenas observações sobre o sono? Ele mal sabe que dorme. Um pouco de insônia não é inútil para apreciar o sono, projetar uma luz nessa noite. Uma memória sem desfalecimento não é um excitante muito poderoso para estudar os fenômenos da memória”.
Foi sobretudo do seu quarto que ele percebeu a vida exterior; primeiro em Illiers, na casa de sua tia, depois em Paris, em todos os quartos que teve, principalmente aquele famosíssimo quarto forrado de cortiça – para amortecer os derradeiros ruídos da vida–, onde nos últimos catorze anos escreveu e concluiu sua vida e sua obra.
O Narrador da “Busca...”, como o próprio Proust, sentiu-se mal ao visitar uma exposição a que fora, mesmo doente, para verificar in loco uma informação ou tirar uma dúvida.
Assim, os espaços de sua memória e do seu livro, pouco a pouco se cobriam de nomes que, ordenando-se através daquelas famosas frases e parágrafos proustianos, análogos à sua asma, compunham-se em relação uns aos outros, entrelaçando correspondências cada vez mais numerosas, imitando essas acabadas obras de arte onde cada parte recebe sucessivamente das outras a sua razão de ser.
Proust morreu no dia 18 de novembro de 1922, de complicações oriundas de uma bronquite contraída ao sair da casa do Conde Etienne de Beaumont, onde certamente teria ido tirar uma duvida ou colher alguma informação que faltava à sua obra. Sabe-se que nesses últimos anos ele só saía de casa nessa circunstância.
Morreu?, perguntam-se os que o leem e admiram. Também se perguntam os críticos, os professores, os estudantes de letras e todos aqueles que amam a literatura e nela buscam um sentido para a vida. Esta palavra – morreu! –, aplicada a Proust, não faz nenhum sentido. Ninguém está mais vivo do que ele, que acreditava ser a imortalidade possível, sim, mas somente através da criação de uma obra. Essa obra ele a criou com a sua própria vida e desde então nós a seguimos lendo e relendo, há oitenta e seis anos, como o espírito de um artista que continua a modelar muitos anos depois de haver-se extinguido a estátua que esculpiu, o livro que escreveu, o quadro que pintou e que representam sua permanência – no Tempo.
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