Esta
história poderia começar numa livraria, um espaço que é de todos e não é de
ninguém, onde ser surpreendido é uma forte motivação para quem ali adentra. Ser
surpreendido por um grande livro, ou não tão grande assim, mas digamos que bom
o suficiente para quem o descobriu, um prazer que pode se tornar ainda mais
relevante se a tal descoberta resultar dos desígnios do acaso. O leitor
tropeçou na obra, sentiu-se atraído pela capa, talvez pelo título, ou por um
início arrebatador. Ele pagou pela obra,
certo de que havia conquistado o direito de avançar num território desconhecido
e emocionante.
Na
história há um homem e uma mulher. Vamos
imaginar que ambos beiram os 50 anos, uma etapa da vida que representa um ponto
de virada, quando não se é mais jovem, mas ainda não se pode ser considerado
velho.
Não
é possível saber o estado civil de ambos. E esta história não terá nomes. Será
sempre ele e ela. Um homem e uma mulher. Homme
et femme.
Vamos
imaginar que eles percorrem a seção de literatura, literatura estrangeira,
examinam com vagar os livros, e o fazem silenciosamente e sem pressa.
É
preciso descrever a mulher, dar a ela um rosto, um corpo, talvez atribuir-lhe
uma personalidade. Mas nada de passado. Esta história não comporta o passado.
Os personagens irão se mover no presente, aqui e agora, pois esta é a história
de um encontro entre um homem e uma mulher que não se conhecem, e que serão
apresentados pelo acaso.
Sim,
o acaso.
A
mulher é alta, magra e desliza com uma elegância natural, acentuando cada
passo, como se o tempo não lhe dissesse respeito. Ela está trajando saia e
blusa de malha. Tem os cabelos curtos e lisos, com raros mas perceptíveis fios
grisalhos. É branca, e seus olhos castanhos transmitem uma curiosidade intensa,
mas sem ansiedade, como se se tratasse de alguém seguro de si.
O
homem é igualmente alto. O cabelo é ainda farto, voltado para trás, com mechas
brancas na altura das têmporas, mas com pouca intensidade. Também ele é branco,
mas seus olhos revelam um discreto cansaço, talvez um ranço de melancolia.
Eles
devem se encontrar de algum modo, pois esse é o ponto chave desta história. É
imperioso que um tome conhecimento do outro, e assim será. Eles vasculham os
títulos com aguçada curiosidade, porém sem pressa. Não parecem procurar um
autor específico, mas se deixam levar pela sucessão de lombadas apetitosas de
um sem-número de títulos.
Mas
é preciso aproximá-los de uma vez por todas. Então eles adentram a mesma
fileira, se dirigem ao mesmo ponto. Quase que ao mesmo tempo, se interessam
pelo mesmo livro. O acaso. Ela estica o braço e retira o livro da estante. Ele
educadamente recua, cedendo a vez. Ela percebe o gesto. Ambos trocam um
sorriso. Eles finalmente se encontraram. Agora um sabe da existência do outro.
Talvez
possamos revelar o autor. Que tal um Philip Roth? Sim, por que não? Mas não é
necessário entregar o nome do título. Tal informação não é relevante para esta
história.
Philip
Roth será o ponto de partida para a comunicação entre esse casal de
estranhos. Eles conversam sobre o livro,
a primeira afinidade entre eles, uma interseção que pode a partir de agora ser
explorada.
A
conversa flui ali entre estantes, mas ela precisa se deslocar para um ambiente
mais propício a que algo mais aconteça. Então ele a convida para ir ao café da
livraria.
Não
vamos revelar as atividades de um e de outro. Eles são um homem e uma mulher.
Não importa o que fazem. Um deve despertar o interesse e a curiosidade do outro
por seus gestos, pelas palavras, pela simpatia, enfim, por uma atração genuína
que venha a nascer entre eles. Não devem ser usados apêndices ou notas de
rodapé na conversa, como profissões, níveis de riqueza ou realizações. Serão
apenas um homem e uma mulher e um rito de sedução baseado apenas nos pequenos
detalhes, no mover de lábios, nos olhares furtivos e reveladores, na distância
calculada das atitudes, no carinho espontâneo, no jeito como movem as mãos ou
como sorriem. Mas, como regra, será permitido falar do livro que os uniu e seu
respectivo autor. Conversam então sobre
Philip Roth, de sua capacidade para explorar os conflitos que advêm dos
relacionamentos, tendo como pano de fundo o judaísmo e a história americana.
No
fundo, ao falar de Philip Roth, eles falam deles mesmos. Então descobrimos que
ele não é casado, mas não sabemos se o foi algum dia. E ela também não vive
mais as agruras e delícias do sagrado matrimônio.
Um
casal maduro, experiente e dono do próprio nariz. É assim que eles devem
aparecer nesta história.
Eles
conversam, sorriem e agora parecem mais íntimos, bebendo com tranquilidade,
cada um, sua xícara de café, sendo que ele mordisca um crepe de banana, pois
havia saído cedo de casa e estava com fome.
Agora
seus olhares se cruzam com mais frequência, e está claro que surgiu um
interesse entre eles. Há um certo erotismo na maneira como ele estuda os lábios
dela, enquanto ela discorre com conhecimento de causa e curiosidade quase
juvenil sobre as delícias de se ler um romance de Philip Roth. “Qualquer um
deles”, ela disse.
Ela
começou a notar as mãos dele, grandes e fortes. Num pequeno gesto de timidez,
desviou o olhar para um ponto qualquer ao imaginar aquelas mãos segurando-a
firme pelos quadris.
Havia
neste ponto uma certa eletricidade no ar, os fluídos amorosos começando a agir
em favor daquele casal.
Vamos
aqui quebrar uma pequena regra do que fora estabelecido. Permitiremos que se
fale um pouco da intimidade de cada um. Assim ficamos sabendo que ela tem uma
filha que mora nos Estados Unidos, e que acaba de dar-lhe seu primeiro neto,
que só conhecia pela internet, mas por quem já “estava muito apaixonada”. Em
uma semana iria visitar a filha e conhecer de perto o netinho americano.
E
ele? Ele tinha um filho e uma filha. Ele morava na Espanha e ela, no Canadá.
Bons filhos, bem sucedidos, mas que ainda não haviam lhe dado um neto, ocasião
que ele aguardava com “uma paixão antecipada”.
O
café está delicioso e o colóquio, muito agradável. Podemos afirmar que há agora
uma “química” entre aqueles dois, estabeleceu-se um estado de confiança tal que
o passo seguinte soa natural, dadas as circunstâncias. São um homem e uma
mulher beirando os 50 anos. Já deixaram para trás as convenções e os joguetes
que podem turvar uma relação. Há um homem e uma mulher e a atração mútua entre
ambos.
Terminaram
o café, ela pagou pelo livro e os dois deixaram a livraria.
Seguiram
em seus respectivos carros para o apartamento dela e a história acaba aqui. O
que aconteceu em seguida não nos é dado revelar, pois é um território restrito
a esses dois amantes. Um homem encontrou uma mulher, e isso é tudo.
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