Recentemente
estivemos com Simone Pessoa e Alexandre Brandão. Hoje é a vez de À flor da pele (Mossoró, RN: Sarau das
Letras, 2013), de Fátima Feitosa; e O
ferroviário: Palmiro dos Santos (São Paulo: LP-Books, 2012), de Arine de
Mello Jr. Lidos, telefonei a Cleto Milani: “Tenho comigo dois opúsculos novos.
Deseja conhecê-los?” Marcamos encontro. Fomos tomar café ao Shopping Benfica.
Quando lesse, fosse à minha morada. Teríamos assunto para boa prosa.
O tilintar do telefone me arrancou das páginas do Galope de Pégaso, de Francisco Carvalho. Uma voz decadente se dizia decepcionada. Voltei às anotações no computador. Eu estaria enganado? No meu entendimento, tanto o romance de Arine como os versos de Fátima alcançavam altos patamares do vernáculo. Acabada mais uma noite, ainda mastigava a decepção do macróbio, quando soou a campainha acoplada ao portão. E, do meio-dia ao anoitecer, nos entregamos, eu e o irascível leitor, à parolagem.
Iniciamos a lengalenga pela obra de Fátima Feitosa. Não guardo
o costume de me afundar nos textos expostos nas abas dos livros, nem nos prefácios
e posfácios. Soletro uma frase aqui, outra ali, a fim de medir o grau de
profundidade da crítica. Quando percebo algum fiapo mais inteligente, mais
agudo, com certa ou muita originalidade, prossigo. Ou quando tenho noção da competência
do crítico. Otto Maria Carpeaux é um desses.
Ao
folhear as páginas de À flor da pele,
tive a curiosidade de examinar as orelhas (a primeira tem assinatura de
Raimundo Antônio de Souza Lopes; outra, de Ângela R Gurgel), assim como o
prefácio (por Terêncio Barros) e a apresentação (pela própria Fátima Feitosa).
Do primeiro captei estas pérolas: “universo
poético cheio de sensualidade”, “devaneio
intimista da poetisa”, “as metáforas
estão inseridas tão sutilmente que se tornam rasgos de pequenos suspiros de
saudade”. Da meia-orelha de Ângela salvei isto: a poesia de Fátima “narra os sentimentos e o encantamento de um
mundo que existe em cada um de nós”.
O
dileto vovô pigarreou: “Basta, seu Nilto. Já entendi. Se os ‘críticos’ não
disseram nada de relevante é porque a poesia criticada não lhes deu chance de
serem intensos ou profundos. E eu concordo: a poesia de Fátima não tem nada de
original. Tem o cheiro e a cor dos verdes tecidos poéticos da adolescência”. O
resenhista abriu a coleção e declamou alguns acordes, à toa, enquanto a
folheava: ‘Eu, fogo! Você, paixão’...
(p. 17); ‘A mistura do nosso suor, / Teus
pelos nos meus’... (p. 55); ‘Mãos de
forte pegada, agarrou’ (p. 109). Tive vontade de chorar e me afastei da
sala. Entretanto, não pude deixar de ouvir o resto do azedume de meu amigo: “O
leitor, até o mais ingênuo, perceberia a boa vontade de dona Fátima e a bonomia
de seus críticos. Infelizmente a biblioteca da poesia brasileira está repleta
dessas indigências literárias”.
Senti
choque terrível, pancada no coração. E sugeri: “Talvez devêssemos nos aplicar
agora ao segundo tomo”. O devasso visitante não terá percebido a minha agonia
e, desatento, perguntou: “O de Arine?” Brinquei: “Não, o de Cecília Meireles”.
E, com toda sisudez possível, dei início à segunda parte da reunião.
As
primeiras linhas d’O ferroviário: Palmiro
dos Santos, de Arine de Mello Jr. não
empolgam o leitor. A mim não empolgaram. “Talvez não estejamos mais na idade
das descobertas”. Cleto completou meu pensamento: “É como se já conhecêssemos
tudo, todos os personagens, todos os lugares, todos os acontecimentos, dos mais
abrangentes aos mais pessoais e domésticos ou familiares. O alpendre da modesta
casa, o breu da noite, a velha estação, os diálogos reproduzidos aos borbotões,
os chavões tão ao gosto dos escritores de livrecos de autoajuda (‘o ciúme faz coisas terríveis’, p. 119).
Tudo tão parecido com aquele romance nunca lido”.
Com a
intenção de não deixá-lo o tempo todo a falar, pus-me a destilar um pouco de
acidez: “Ainda acho divertidíssimos esses romances de enredo rico ou frouxo. Os
jovens gostam disso. Nada de ruminações enfadonhas, como nos romances de Virginia
Woolf”. E ele, o velho fogoso, me espicaçou: “Mereceria enxugamento o romance
de Arine?” Fui rápido: “Sim, mas deixaria de ser romance. Ou esse romance. O
título também parece documentário ou biografia de personagem menor”.
Antes
de encerrarmos a tarde, fiz esse breve comentário: “A criação de Arine, ainda
que baseada apenas na memória (recriação de personagens, recordação de fatos e
conversas), não deixa de ser invenção. Como diz Caio Porfírio: ‘as emoções – para não dizer maldições – vão
se adensando em patamares de surpresas e fulgurações psicológicas inesperadas’.
Como trem a deslizar nos trilhos: primeiro a apitar, mover-se lentamente,
depois a correr, em disparada, rumo ao sertão, ao interior (das personagens?).
Arine é maquinista seguro, experiente, com passagem pela estação da poesia e dois
romances (duas viagens longas), sua experiência de bacharel em Direito e
vivência em cidades pequenas”.
O
escrevinhador de resenhas bateu palmas e fez menção de se erguer. Não conseguiu
logo. Tentei ajudá-lo. Aborreceu-se: “Você ainda se imagina jovem?” Não me
contive: “Não, não se trata de juventude, mas de ser eterno”.
Fortaleza,
7/8 de dezembro de 2013.
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