(Quadro de Badida Campos)
Para
Ítalo Gurgel
Sou
uma caixa de paradoxos. Ao tempo em que o sangue quente, sempre e muito, se me
avoluma na garganta e no peito, adoro ouvir o canoro assobio do silêncio. Bem
como, em quase estado de êxtase, me deparar com um daqueles sujeitos que
mastiga a paz com a doce inocência de uma criança a mascar chicletes.
Para
mim, o verdadeiro sábio, antes de proferir e demonstrar o seu valioso saber,
deve andar sob a proteção do recolhimento. Quem arrota não sabe! — tal máxima
tem, cá em mim, o credo e a rigidez de um sacrossanto dogma.
Certa
feita, há anos, fui apresentado a um “doutor”. Procederam, diante dos meus
olhos, antes da sua chegada, a uma festa de adjetivos na descrição dos seus
“méritos”: notório, atilado, medalhão, altivo, singular... Enfim, todo um
dicionário, sem falar nos “ais e uis” de incontida veneração. Todavia, quando o
pretenso “doutor” chegou e abriu a boca, a vomitar presunção e bazófia, a
outorgar-se, em tonitruante arrogância, o trono do mundo, dei-lhe as costas e,
com nojo, deixei o ambiente. Lá fora, acreditem, consegui finalmente respirar.
Os presunçosos roubam-nos até o oxigênio.
Contudo,
há casos opostos, diametralmente opostos. Uma noite, lembro-me como se fosse
hoje, achegou-se a mim um sujeito com corte e jeito de quem não quer nada, de
quem nada sabe e de que a tudo tem manifesta e veneranda atenção. Em seus
olhos, bem observei, residia a mansuetude dos que não têm pressa; seus lábios
mais pareciam dois ouvidos. Seus gestos, bem, seus gestos falavam sem a
turbidez e o alarde da palavra.
Vi-me,
de repente, cercado de uma paz indescritível, e, sem perceber, passei a remar
no mesmo mar silente.
Estávamos
numa cafeteria, e era um fim de tarde. Minutos após, colhia o trinado e o
gorjeio dos pássaros recolhendo-se na copa das árvores, dava pelo farfalhar das
folhas secas, tangidas pelo aracati, assim como presenciei o namoro de dois
pardais sob uma discreta mesinha mais ao fundo. Coisas, há pouco, consideradas
miúdas por mim, invisíveis ao meu olhar contaminado pelo vírus da pressa e pelo
bacilo do barulho. Não digo que nada falamos. Mas na medida certa, no ponto
exato. Porém, com aquele homem, o leitmotiv
da vida era o silêncio. E ele tudo me explicava na vivência, no exemplo
pessoal. Sem gabolices.
Ele
molhava os lábios com o café, mastigava em compasso de eternidade sua tapioca
com queijo coalho, e corria os olhos pelo céu, lentamente, à cata de flagrar o
inusitado.
Quando
anoiteceu, fui testemunha, levou a face aos céus, como se dando graças pelo
brilho das estrelas e pelo atrevimento lírico do nosso belo luar.
Pouco
depois, despedimo-nos, com um leve aperto de mãos. A partir desse dia, por mais
paradoxal que pareça, passei a entender a sapiência do silêncio.
Bom
domingo.
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