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sábado, 18 de janeiro de 2014

O homem e a cura (Belvedere Bruno)





Fazia um tempão que nem alegria eu tinha. Tudo o que mais gostava, agora jogava fora. Enjoei de tudo: amizades, papo no boteco, sinuca. Pra quê, se era sempre a mesma coisa? O pessoal resmungava: cadê Diógenes? Onde andará metido aquele cara? Vai ver arrumou alguma nega e se mandou. E eu nada. Era comer, deitar e dormir.

Foi quando, certa noite, me apareceu um homem todo de branco, dizendo, com voz de trovão, que eu tinha sido escolhido para curar as doenças do povo. Tocou-me com um raio de luz e depois sumiu. Aquele sonho me impressionou. Parecia real, cruz credo! Foi a única coisa estranha que me aconteceu naqueles dias. De resto, minha vidinha seguiu, num marasmo sem fim.

Um dia, não sei como nem por que, comecei a ler bulas de remédios e livros  sobre ervas. Eram o meu jornal. E tanto li, que me senti doutor. Um  vizinho foi falando para o outro e aí começou o alvoroço. Filas  se formavam diante de minha casa para que eu receitasse. Baixava um troço em mim e a voz no meu ouvido dizia pra fazer isso ou aquilo. Então, tive a ideia de construir um quartinho no fundo da casa para atender o povo. Peguei uma mesa comprida, coloquei em cima livros religiosos, um copo com água, que eu jurava ser benta, e acabei virando uma espécie de Salvador. Vizinhos abandonaram médicos, igrejas diminuíram rituais... Era a população encontrando em mim resposta às suas mazelas.

Tudo mudou quando dois filhos, que moravam em outra cidade, chegaram de surpresa para passar um feriado comigo e se depararam com a situação. Pai, você virou charlatão? Quer ser preso? Eu, exaltado, perdi a compostura. Vão pro inferno! Tô meses com uma fraqueza danada e nem deram sinal de vida.

Aproveitando a presença deles, padres e pastores foram reclamar da evasão de fiéis. Funcionários dos postos de saúde registraram queda nas estatísticas. Os beneficiados revidavam as acusações com passeatas e cartazes: "Queremos Diógenes! Basta de perseguição!"

Meus filhos insistiam para que eu parasse com aquilo. Mas como era bom ser  amado pelo povo! Quem sabe eu podia até virar político? Nada que eu dizia parecia convencê-los acerca de minhas boas intenções. Teimavam em me levar para o interior, onde morava boa parte da família, inclusive eles.

Com tristeza, aceitei ir. Lá chegando, convivia com a chatice. Tristeza do cão. Mulher, nem pensar. Cada uma pior que a outra. Até me faziam lembrar Martinha, mãe de meus filhos que, no dia em que morreu, tomei um porre de cachaça de tanto alívio.  E agora  me sentia mesmo um morto-vivo. Se demorasse mais um pouco ali, virava pó. Que saudade daquelas filas, dos meus doentes, da agitação. Aquilo é que era vida.

Foi então que soube de uma casa mal-assombrada, vazia. Cheguei para o padeiro do bairro que, segundo o povo, sabia de tudo o que rolava na cidade, e perguntei que troço era aquele de fantasma. O cara deu de ombros. Bem, se nem ele sabia, decidi eu mesmo desvendar o mistério.

Entrei na casa chutando a porta, que se desintegrou de velha. Levei um baita susto com os  bichos e a fedentina dos infernos que vinha de dentro.  Saí dando paulada nos cachorros, gatos e gambás, que vinham de todo lado. Fugiram esbaforidos. O terreno dos fundos era um matagal sem fim. Levei semanas para capinar. Nos quartos, sala e varanda, uma poeirada que me sufocava.

Finalmente me mudei. Que casa mal-assombrada, que nada! O lugar estava precisando era de uma boa limpeza. Mesmo assim, resolvi manter a lenda do fantasma. Ajudava a afastar a xeretice. Amigos doaram mesas e cadeiras, pratos, talheres. Nada em bom estado, mas tudo bem, cada um recebe o que merece. Armei uma rede na varanda, que virou meu quarto. Sonhava com os velhos tempos. Era um tal de vir gente me espiar. Eu esbravejava:  Curiosidade mata, meu povo!  Fora!  Meus filhos nem ligavam, já tinham desistido de se  meter na minha vida. Mas precisava fazer alguma coisa,  não ia ficar me balançando na rede que nem um velho.

E lá estava eu, dando uma volta pela cidade, pra ver se criava ideia. Encontrei uma dona pelo caminho, que se chegou, dizendo:  Tenho umas ervas boas pra curar teu joelho capenga. – Capenga é a puta que pariu. Dei uma porrada na quina da mesa. Já tô usando arnica. Quero ver as ervas que  tem. Levou-me ao sitiozinho. Havia, de fato, muitas ervas, mas ela não entendia da coisa porque a especialidade era do  marido, que havia batido as botas há um ano. Um amigo mantinha as plantações. – Vou virar teu freguês! A dona riu e eu vi que não tinha uns dentes na parte de cima. Quando ria, a barriga balançava. Aquilo me divertiu. Gostei da danada, se chamava Dora. Comecei a ir lá  todos os dias e daí veio um roçar aqui, um roçar ali, e pronto. Acabamos dormindo juntos. Que fogo! De repente, até revivi. E revezávamos entre a minha casa e o sítio.

Armamos a mesinha na varanda, sobre ela empilhamos livros de reza e colocamos incenso. A garrafa com água benta dava um ar de respeito. A coisa foi se espalhando. Começava a juntar gente. Pedíamos, em nome de Deus, que parassem com aquela mania de tristeza. Precisavam  sorrir. E o povo ouvia. Com o passar do tempo, começaram a confiar em nossos dons medicinais. E as ervas, além de curar doenças, passaram a melhorar o sexo, tirar timidez, acabar com brochura de homem e frieza de mulher.

À noite, no balanço da rede, Dora e eu conversávamos e víamos como o trabalho compensava.

E a cidade foi ficando feliz que dava gosto!

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