(Quadro de Badida Campos)
De repente, estou muito só, mas muito mesmo. O velho nó no estômago começa a apertar de modo inusitado. Como um alicate delicado, mas fiel à sua função. Decido, pela milésima vez, ir a um psiquiatra. Não é possível repetir sensações nauseabundas todos os anos de uma vida longa. Há que experimentar mudanças sempre, coisa que, cada vez mais, desanimo de levar adiante. Claro que, na minha idade, nada pode ser “para melhor” – penso, com meu realismo de quem já leu e sentiu muito Fernando Pessoa.
Chega uma amiga sem aviso – raridade nos tempos atuais. É vizinha e nunca havia entrado no meu escritório. Convido-a para conhecer tudo e ela para diante das fotos, que exibo com o maior orgulho: meu filho com três anos, seu cabelo e sorriso inimitáveis, o mesmo filho muito mais velho, agora com a filha, minha sogra e meu marido – essa mania de ser a fotógrafa sempre me exclui em dia de festança, Darcy Ribeiro de braços abertos à vida e os dizeres que o tocaram sempre para frente “Depende de nós”, eterno exemplo para os desanimados e, finalmente, mamãe e papai, lindos nos seus quarenta anos, a se olharem com amor.
Que ideia esta de cavoucar fotos íntimas perto do Natal! E para uma senhora que nunca conviveu comigo antes deste apart de hoje. Como pode ela entender a dor da única foto que eu não queria comentar e acabei por fazê-lo: a da amiga de braço dado comigo, que morreu cedo de câncer.
Faço uma baita força para não dar vexame e tiro a vizinha para a sala, quase a empurrá-la, ela que é a única a procurar me ver e agradar. Ingrata, penso que devia ir mais à cobertura onde ela mora, mas nunca obedeço direito aos ditames das obrigações, com todo o meu catolicismo.
Volto à solidão e a dar uma olhada no casal “culpado” de meu nascimento. Lembro-me da estúpida diferença de meus Natais, conforme as mudanças de vida.
Primeiro, a árvore de Natal pouco importava, Jesus na manjedoura, sim. Relembro os presentes inúmeros, a mesona do almoço (meu pai celebrava o Domingo de Páscoa), os convivas, inclusive um ou outro padre, impecavelmente vestidos todos, inclusive a mesa de linho branco, a louça portuguesa Vista Alegre, os cristais, a prataria... Nada de guardanapos de papel. Meu pai à cabeceira, minha mãe à direita e o resto que se espalhasse. Meu Deus, que saudade! Por último, o brinde com vinho do Porto do norte português.
Depois, a celebração com os filhos ainda crianças, um calorão dos infernos que nos obrigou a ficar quase pelados, elegâncias jogadas no lixo, mas uma alegria total. Tantos presentes que o baú do quarto infantil teve que ser esvaziado para que nele coubessem os novos brinquedos. Gritos e risos até à hora de dormir.
E ainda, os Natais de muita dificuldade posta de lado, depois da saída do primeiro marido, celebrado com gente amiga, jovens que não tinham “Programa de Natal” nas famílias, talvez por serem de outras cidades longínquas ou outras religiões. Vinho tinto, cerveja, cada um trouxe um petisco, felicidade a ocupar assentos e assoalho do salão, junto com meus filhos, por certo. Nada de presentes: todo o mundo duro. Isto à noite, entrando pela madrugada dentro. No dia seguinte, simplicidade e boa comida no almoço dos avós de meus filhos.
Casamentos, separações, formaturas, mortes... e o Natal minguou junto com a redução da família. Ainda se tenta um bacalhauzinho de nada, um presunto ou chester de forno, umas castanhas, umas rabanadas, uma ou outra fruta... Tudo diet.
Verdade que, até uns dois anos atrás, as tentativas de retomada da celebração continuaram, numa ou noutra casa. Quase sempre na mais espaçosa. Cada vez com menos presentes e um calorão “da gota”, como diz uma de minhas amigas mais conservadoras de adjetivos e expressões das antigas.
Se não fosse o nosso coral do Colégio Santo Agostinho, que me ajuda a saborear a vida e recorda as canções natalinas antigas (porque novas não as há) em geral herdadas dos protestantes norte-americanos, e a minha Igreja de Santa Mônica, que não deixa de aclamar com presépios e flores o nascimento de Jesus Cristo, a esperança dos homens de fé, eu me internava em lugarejo sem religião ou misticismo e... chorava.
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