(Modigliani, "Nu sentado") |
Janete Clair
tem me visitado. Na véspera de Natal, esteve em minha casa. Não trouxe um litro
de aguardente (que ela tem ciência da minha abstemia) ou um broche de ametista
(pois me considera homem íntegro); entregou-me, sim, exemplar de Nathalie
Sarraute. Imaginem vocês o título. Não fazem ideia? Serei presto: Disent les imbéciles. Eu não
sabia da existência dessa obra. Aliás, só li um romance de Nathalie: Infância. Leitura de muitos
anos atrás. Nem me lembrava dela, embora não seja um desmemoriado. Confuso,
afastei-me da discrição, sem perceber: “Por que você me dá isto?” Tentei
consertar o erro: “Quero dizer: por que você escolheu esta autora?” Ela não se
deixou enredar às malhas de meu palavrório: “Porque o senhor é um erudito".
Não gosto de
receber elogio e, muito menos, favor literário. Para mim, por trás de toda
frase pomposa (ou no seu bojo) vem um bando de marimbondos venenosos. São como
aquele cavalo dos gregos. Estou sempre de sobreaviso. Não, não se trata de
mania de perseguição, paranoia ou outra perturbação psíquica. A vida me ensinou
a ser assim desconfiado. Toda glorificação exagerada me soa como adulação e me
faz ficar com pulga atrás da orelha, sobretudo se vinda de quem não me conhece
ou de novato no mundo das letras. Não me refiro a frases simples e sim ao uso
desmedido de adjetivos do tipo “singular” e “excepcional”, ou vocábulos como
“melhor”, “maior”, “principal”. Se acontecesse uma vez, eu não suspeitaria de
nada. Sinto-me mal quando as bajulações se tornam repetitivas, dia após dia. Pois
o emissor da lisonja se acha no direito de exigir, em troca, louvações
estapafúrdias, como recompensa ou pagamento. E expede pelo correio (sob
registro, com garantia de chegada) um livrinho chinfrim, desses de deixar
qualquer analfabeto sem vontade de aprender a soletrar. “Se você puder escrever
resenha ou artigo – não precisa ser longo...”
Janete Clair
me espiava, embasbacada, como se ouvisse dos lábios de Cristo, ou outro sábio
antigo, a Verdade Única. Interrompi o discurso: “Quer mudar de assunto, falar
da ressurreição da carne, da vida eterna?” Ela se equilibrou no sofá: “Não,
professor, não estou disposta a falar. Só desejo ouvi-lo”. (As meninas e os
meninos das universidades me têm como professor, eu que nunca me postei de
costas para a lousa, o quadro negro ou verde, e sempre estive encolhido no mais
recôndito e escuro recanto da sala de aula.)
Retomei o
sermão (não da montanha, mas da patranha) e fiz a garota se extasiar: “Nunca
recebi louvores desse tipo – e com a constância desses – dos lábios ou das mãos
de escritores do nível de Moreira Campos, Francisco Carvalho, Anderson Braga
Horta”.
Ajeitei-me
na cadeira de balanço e dei prosseguimento à lamúria: Toda exaltação falsa me
deixa abatido. Ser sujeito de graça ou favorecimento literário me parece
demasiadamente incômodo. Durante anos, mantive uma “revistinha de fundo de
quintal” (como disse um leitor). Chamava-se Literatura.
Não perderei tempo com lamentações tardias. Não lembrarei os prejuízos, nem o
tempo perdido a revisar escritos repletos de erros de todo tipo. Não adianta
chorar o leite derramado. Pelo contrário, preciso ver o lado bom de tudo: a
publicação se mantinha às minhas custas e de alguns amigos (Aricy Curvello,
Astrid Cabral, Batista de Lima, Dimas Macedo, Enéas Athanázio, Francisco Miguel
de Moura, João Carlos Taveira, José Peixoto Júnior, Sérgio Campos, Soares
Feitosa e outros menos constantes nas participações). A maior parte das páginas
ocupávamos nós, os colaboradores regulares. A parte menor (cerca de vinte por
cento) se preenchia com prosas e versos de sujeitos desconhecidos ou alheios ao
nosso trabalho caseiro de revisão e arrumação das composições nas páginas em
branco. Quase tudo terminava no cesto do lixo. (Não, não cometia esse delito,
em respeito à natureza; sempre aproveitei, ao máximo, todo e qualquer papel,
principalmente para neles praticar o pecado da criação).
Minha pupila
parecia cochilar no assento. Eu fechava os olhos e a supunha enroscada em si
mesma, feito gatinha manhosa. Ao abrir, eu me sentia mais enganado do que antes
da criação de Eva: ela se encontrava tão atenta quanto rato em cozinha
abandonada. “E onde entra o benefício?” Expliquei-lhe: Alguns sujeitos
costumavam mandar versinhos, historietas, artigos sem verbos e sem advérbios.
Os mais cínicos diziam: “Publicado o meu texto, me envie uns dez exemplares. No
próximo número de minha revista sairá um conto seu”. Os inescrupulosos agiam em
sentido contrário aos cínicos. Primeiro difundiam trecho de minha obra (sem
autorização), juntavam a uns exemplares do impresso seus papéis borrados e os
endereçavam a mim. Por cima de tudo, como invólucro, vinha cartinha ou bilhete:
“Terei muita honra em ser editado por você. Veja estas poesias”. A fim de
evitar essas especulações pecaminosas, nunca remeti (de vontade própria)
colaborações a donos de periódicos literários. Cometi esse erro, sim, nos
primeiros tempos, quando ainda não me tornara impressor de palanfrórios e de
saltérios. A muito custo, faço chegar meus escritos às mesas de jornais e
blogues.
Como a noite
se anunciasse em pios estridentes nas árvores da rua, abri o livro de Nathalie
Sarraute e li, em voz alta, umas frases. Não me lembro mais nem dos verbos, se aimer, se savoir. Se j’aime, se je sais. Janete Clair sorriu e
não me chamou de erudito. Talvez eu tenha ouvido um murmurante “coitado!”
Fortaleza,
dezembro de 2013/janeiro de 2014.
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