Ainda muito moço, em visita a um tio humanista
que vivia enfurnado em sua vasta e bem escolhida biblioteca, descobri em Marcel
Proust uma nova concepção de crítica, mais concisa, mais apaixonada, entendida
sob um ponto de vista mais amplo e, de tal forma realizada, que representaria
ela mesma uma criação literária autônoma e digna da obra que a inspirara.
Creio que Borges pôs em prática essa concepção estética proustiana, especialmente em seus prefácios que, a rigor, constituem pequenos e originais ensaios, razão pela qual têm publicados como obra de criação, tão digna quanto qualquer outra página que, por acaso, tenha escrito, no curso de sua longa e laboriosa existência, toda ela voltada para a magia ilusionista da literatura.
Creio que Borges pôs em prática essa concepção estética proustiana, especialmente em seus prefácios que, a rigor, constituem pequenos e originais ensaios, razão pela qual têm publicados como obra de criação, tão digna quanto qualquer outra página que, por acaso, tenha escrito, no curso de sua longa e laboriosa existência, toda ela voltada para a magia ilusionista da literatura.
Autor de uma cultura enciclopédica posta a
serviço da criação de uma obra polifônica que avulta, em sua literariedade,
como um dos mais originais e perenes monumentos construídos pelo homem, pensou
Proust que a crítica constitui um gênero não-secundário, mas autônomo e digno
como qualquer outro que provém do engenho humano que transforma a ideia – mais
que palavras – em realidade concreta.
Muito antes de escrever o roman-fleuve que o
consagraria, Proust já se expressava como um crítico, ao propor, através de
pastiches deliciosos que se farão presentes em sua obra futura, como que
referendando o leitor em tudo exemplar – nutrido do que mamou no humanismo
literário – que foi por toda a vida. Prova-o e comprova-o as páginas ainda incipientes
de seu livro de estreia, Os prazeres e os dias, na qual assomam, de maneira
embrionária, algumas de suas obsessões que somente alcançariam a expressão
definitiva em sua busca do tempo perdido.
Ainda muito jovem e quando ninguém suspeitava do
gigantesco empreendimento que resultaria na elaboração dos sete volumes de sua
busca do tempo perdido, deu-nos – por assim dizer avant la lettre – uma prova cabal desse novo gênero que alcançaria,
nos últimos anos de sua vida já inteiramente submetida à execução de um projeto
que seria, do ponto de vista literário, o equivalente das grandes catedrais
multisseculares descritas por Ruskin, um dos seus mestres secretos. A essas
experiências chamou de “recréation vivante”, embrião de uma crítica literária
indireta ou do que chamou igualmente de “claire analyse”, um texto mais curto
que o ensaio, apto a introduzir o leitor no corpus da obra sem a reverberação
pretensiosa e monótona da crítica convencional ou acadêmica. A crítica,
verdadeiramente, de um escritor de talento que se debruça sobre os processos
utilizados por outros autores, na tentativa de se aproximar do mistério que
prefigura a obra de arte produzida em plena consciência.
Grande pasticheur,
como escritor e como indivíduo, capaz de imitar com incômoda perfeição seus
amigos e integrantes do círculo íntimo do qual era uma espécie de animador,
transpôs Proust para muito do que escreveu essa expressão do seu talento,
imitando o vocabulário, a sintaxe e os cacoetes de autores, o que às vezes dá
ao leitor do seu roman-fleuve a impressão de uma colcha de retalhos, tamanha a
variedade de escritas que afloram das páginas que elaborou com as minúcias de
um criador que era também, entre muitas outras coisas, um botânico, um
entomologista, um vivissector, um biologista, um naturalista, um psicólogo,
enfim, alguém que fosse ao mesmo tempo caudatário de uma herança de séculos de
cultura, um criador e um crítico em ação.
Não satisfeito em imitar personagens do seu
mundo, parodiava estilos, proporcionando ao leitor, ao discorrer sobre os
autores que amava ou que apenas desejava ridicularizar, o estilo de cada um,
resultando dessa invenção um dos atrativos misteriosos da sua própria arte,
nascida da solidão e do silêncio.
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