Em “O Nascimento da Tragédia” (1872),
Friedrich Nietzsche (1844-1900) define os conceitos de apolíneo e dionisíaco. Da
maneira mais sumária, apolíneo seria a representação das regras e dos limites
individuais. Dionisíaco seria a representação do impulso, da libertação, dos
instintos. A classificação é mais usada para artistas e filósofos. Mas por que
não usar para seres humanos? Desde que sejam pessoas de bem, sensíveis,
nutridoras e não vampirizadoras (essa classificação é minha). É um desafio. Exemplo:
da minha “Santíssima Trindade Literária”, Dostoievski é um dionisíaco. Camus,
apolíneo. E Kafka? O estilo cartorário, até “clássico”, seria apolíneo. Mas a
alma, o espírito premonitório, aquele tipo de “mediunidade” que perpassa seus
textos? Seria, nesse caso, dionisíaco. Quero dizer, às vezes os dois se
embutem. No Brasil, Lima Barreto, Glauber Rocha, Vinícius de Moraes, Raul
Seixas, Clarice Lispector são dionisíacos. Apolíneos? Carlos Drummond de
Andrade, Chico Buarque. Nos trópicos (falo dos artistas) parece que os
dionisíacos preponderam. Já na vida... E Machado de Assis?
Nele, os dois se embutem, apesar de à
primeira vista ser claramente um apolíneo. A busca de um estatuto de respeito
por ser mulato numa sociedade preconceituosa e racista, forjada na escravidão,
faz de Machado um crítico sutil da moral de seu tempo. Cria a Academia
Brasileira de Letras que, no fundo, significa um busca de legitimação
estatuária e oficial, em termos de sociedade. Nele,
os dois conceitos se embutem. E Euclides da Cunha? O barroquismo do texto faz
pendê-lo para o dionisíaco. No futebol, Garrincha e Maradona são dionisíacos, e
Zidane, um apolíneo. Cada leitor poderia fazer a experiência interna de se
classificar. Eu sei, somos muitas vezes os dois.
Insisto: filosofar é fundamental. Na
reforma de ensino, retiraram a filosofia da grade curricular. Tiraram no fundo,
uma oportunidade rara para o brasileiro pensar. Sinceramente, quem não conhece
um pouco de filosofia perde uma grande oportunidade de crescer no tempo de sua
existência. A filosofia nos ensina a viver. Nos últimos 200 anos, a despeito de
todos os sofrimentos, o mundo ocidental vive sob o domínio de uma crença no
progresso, baseada em realizações científicas e empresariais extraordinárias. Tivemos
guerras sem fim, o holocausto, sofrimentos, golpes, exploração: esse otimismo
“público” seria uma grande anomalia. Porque na verdade, os seres humanos
passaram os séculos esperando o pior. No Ocidente, as lições sobre o pessimismo
derivam de duas fontes: os filósofos estóicos romanos e o cristianismo. “Talvez
seja a hora de revisitar esses ensinamentos para aliviar nossos pesares”,
ensina Alain de Botton.
Sêneca (I a. C. – 65 d. C.) seria um
filósofo perfeito para o nosso momento histórico. Vivendo numa época de
tremenda inquietação política (Nero ocupava o trono imperial), Sêneca
interpretava a filosofia como uma disciplina que servia para nos manter calmos
diante de um panorama de constante perigo. Sêneca lembrava no ano 62 que
desastres naturais ou de causa humana serão sempre parte de nossas vidas, por
mais sofisticados e seguros que acreditemos nos termos tornado. O filósofo
escreve que “não existe nada que a fortuna não ouse”, mas lembra que devemos
ter em mente o tempo toda a possibilidade dos mais devastadores eventos.
Recordemos: tivemos duas guerras
mundiais. Basta lembrar o sofrimento que elas causaram. Sêneca diz mais: “Nada nos
deveria ser inesperado. O que é o homem? Um vaso que ao menor tremor, ao menor
impacto, pode quebrar”.
Reli há pouco o belíssimo “Sobre a
Brevidade da Vida”, deste filósofo. Em 62 d. C., Sêneca pede permissão para
retirar-se da vida pública. Nero recusa. O filósofo vive então numa
semi-reclusão e escreve suas melhores obras. Em 65 d. C., é acusado de estar
implicado numa conspiração contra o imperador. Nero ordena que se suicide. “Assim
termina a carreira daquele que, por quase dez anos, governou de fato o Império
Romano”. Com ele, como observa William Li, pela primeira vez a filosofia
estóica teve a experiência do poder. Não há espaço (agora) para meditar sobre a
posição do cristianismo nesse assunto. Correndo o risco de me tornar
superficial para não ficar cansativo, queria lembrar a importância dos
aforismos na obra de Nietzsche. “Além do Bem e do Mal” (1886) é das suas obras
mais importantes, retomando os temas mais decisivos de “Humano, demasiadamente
humano” (1878-80).
Resumindo: para o filósofo alemão, o
homem aspira à imortalidade, mas isso não significa – nem importa – nada, já
que a realidade se repete a si mesma num devir renitente, que constitui o eterno
retorno. Para ele, como observou Marcelo Bakes, o homem só se salva pela
aceitação da finitude, pois assim se converte em dono do seu destino, se
liberta do desespero para afirmar-se soberanamente no gozo e na dor de existir,
ultrapassando os limites da sua condição. Seu pensamento foi tremendamente
deturpado e manipulado por muitos, como por sua irmã Elisabeth e pelos
nazistas. Por exemplo: o conceito de conceito de “super-homem”. Foi
criminosamente deturpado. Nada tem a ver com os carrascos nazistas, nem com os
heróis que veríamos depois nos quadrinhos ou no cinema, ou com gente que malha
em academia. Pelo contrário, o filósofo consideraria esses tipos os mais
obtusos. No fundo, ele fala dos seres maiores que ultrapassariam a
mediocridade, a indolência, a autopiedade, o sentimentalismo reles (como as
telenovelas de hoje em dia), que conseguem sair do rebanho pela sua força
interior, pela sua determinação, pela sua audácia, pela sua bravura, pela sua
grandeza.
E o aforismo? Ele viveu sempre entre a
fronteira entre a poesia e a filosofia. “É um estilhaço de pensamento, uma
máxima espirituosa de fôlego curto e sabedoria imensa”. A tradição do aforismo
é antiga. Hipócrates foi o primeiro escritor de aforismos, já por volta de 400 a. C. O procedimento
aforístico também marcou a obra de Heráclito, a especulação moral de Sêneca, a
observação histórica de Plutarco, as cartas de Marco Aurélio, a ética de
Confúcio e as sentenças de Salomão. A importância do aforismo na obra de
Nietzsche é imensa, como já era em parte no caso e Schopenhauer e, mais ainda
no de Blaise Pascal e Nicolas Chamfort.
Dois exemplos de aforismos no filósofo alemão: “Muito pavão esconde aos olhos
de todos a sua cauda de pavão – e chama isso de seu orgulho.” O segundo: “A
mulher aprende a odiar na medida em que desaprende a – enfeitiçar”.
Filosofemos, amigos! Filosofemos!
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