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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Filosofando com Sêneca e Nietzsche (Emanuel Medeiros Vieira)



                                          
Em “O Nascimento da Tragédia” (1872), Friedrich Nietzsche (1844-1900) define os conceitos de apolíneo e dionisíaco. Da maneira mais sumária, apolíneo seria a representação das regras e dos limites individuais. Dionisíaco seria a representação do impulso, da libertação, dos instintos. A classificação é mais usada para artistas e filósofos. Mas por que não usar para seres humanos? Desde que sejam pessoas de bem, sensíveis, nutridoras e não vampirizadoras (essa classificação é minha). É um desafio. Exemplo: da minha “Santíssima Trindade Literária”, Dostoievski é um dionisíaco. Camus, apolíneo. E Kafka? O estilo cartorário, até “clássico”, seria apolíneo. Mas a alma, o espírito premonitório, aquele tipo de “mediunidade” que perpassa seus textos? Seria, nesse caso, dionisíaco. Quero dizer, às vezes os dois se embutem. No Brasil, Lima Barreto, Glauber Rocha, Vinícius de Moraes, Raul Seixas, Clarice Lispector são dionisíacos. Apolíneos? Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque. Nos trópicos (falo dos artistas) parece que os dionisíacos preponderam. Já na vida... E Machado de Assis?

          Nele, os dois se embutem, apesar de à primeira vista ser claramente um apolíneo. A busca de um estatuto de respeito por ser mulato numa sociedade preconceituosa e racista, forjada na escravidão, faz de Machado um crítico sutil da moral de seu tempo. Cria a Academia Brasileira de Letras que, no fundo, significa um busca de legitimação estatuária e oficial, em termos de sociedade. Nele, os dois conceitos se embutem. E Euclides da Cunha? O barroquismo do texto faz pendê-lo para o dionisíaco. No futebol, Garrincha e Maradona são dionisíacos, e Zidane, um apolíneo. Cada leitor poderia fazer a experiência interna de se classificar. Eu sei, somos muitas vezes os dois.

Insisto: filosofar é fundamental. Na reforma de ensino, retiraram a filosofia da grade curricular. Tiraram no fundo, uma oportunidade rara para o brasileiro pensar. Sinceramente, quem não conhece um pouco de filosofia perde uma grande oportunidade de crescer no tempo de sua existência. A filosofia nos ensina a viver. Nos últimos 200 anos, a despeito de todos os sofrimentos, o mundo ocidental vive sob o domínio de uma crença no progresso, baseada em realizações científicas e empresariais extraordinárias. Tivemos guerras sem fim, o holocausto, sofrimentos, golpes, exploração: esse otimismo “público” seria uma grande anomalia. Porque na verdade, os seres humanos passaram os séculos esperando o pior. No Ocidente, as lições sobre o pessimismo derivam de duas fontes: os filósofos estóicos romanos e o cristianismo. “Talvez seja a hora de revisitar esses ensinamentos para aliviar nossos pesares”, ensina Alain de Botton.

Sêneca (I a. C. – 65 d. C.) seria um filósofo perfeito para o nosso momento histórico. Vivendo numa época de tremenda inquietação política (Nero ocupava o trono imperial), Sêneca interpretava a filosofia como uma disciplina que servia para nos manter calmos diante de um panorama de constante perigo. Sêneca lembrava no ano 62 que desastres naturais ou de causa humana serão sempre parte de nossas vidas, por mais sofisticados e seguros que acreditemos nos termos tornado. O filósofo escreve que “não existe nada que a fortuna não ouse”, mas lembra que devemos ter em mente o tempo toda a possibilidade dos mais devastadores eventos.

Recordemos: tivemos duas guerras mundiais. Basta lembrar o sofrimento que elas causaram. Sêneca diz mais: “Nada nos deveria ser inesperado. O que é o homem? Um vaso que ao menor tremor, ao menor impacto, pode quebrar”.

Reli há pouco o belíssimo “Sobre a Brevidade da Vida”, deste filósofo. Em 62 d. C., Sêneca pede permissão para retirar-se da vida pública. Nero recusa. O filósofo vive então numa semi-reclusão e escreve suas melhores obras. Em 65 d. C., é acusado de estar implicado numa conspiração contra o imperador. Nero ordena que se suicide. “Assim termina a carreira daquele que, por quase dez anos, governou de fato o Império Romano”. Com ele, como observa William Li, pela primeira vez a filosofia estóica teve a experiência do poder. Não há espaço (agora) para meditar sobre a posição do cristianismo nesse assunto. Correndo o risco de me tornar superficial para não ficar cansativo, queria lembrar a importância dos aforismos na obra de Nietzsche. “Além do Bem e do Mal” (1886) é das suas obras mais importantes, retomando os temas mais decisivos de “Humano, demasiadamente humano” (1878-80).

Resumindo: para o filósofo alemão, o homem aspira à imortalidade, mas isso não significa – nem importa – nada, já que a realidade se repete a si mesma num devir renitente, que constitui o eterno retorno. Para ele, como observou Marcelo Bakes, o homem só se salva pela aceitação da finitude, pois assim se converte em dono do seu destino, se liberta do desespero para afirmar-se soberanamente no gozo e na dor de existir, ultrapassando os limites da sua condição. Seu pensamento foi tremendamente deturpado e manipulado por muitos, como por sua irmã Elisabeth e pelos nazistas. Por exemplo: o conceito de conceito de “super-homem”. Foi criminosamente deturpado. Nada tem a ver com os carrascos nazistas, nem com os heróis que veríamos depois nos quadrinhos ou no cinema, ou com gente que malha em academia. Pelo contrário, o filósofo consideraria esses tipos os mais obtusos. No fundo, ele fala dos seres maiores que ultrapassariam a mediocridade, a indolência, a autopiedade, o sentimentalismo reles (como as telenovelas de hoje em dia), que conseguem sair do rebanho pela sua força interior, pela sua determinação, pela sua audácia, pela sua bravura, pela sua grandeza.

E o aforismo? Ele viveu sempre entre a fronteira entre a poesia e a filosofia. “É um estilhaço de pensamento, uma máxima espirituosa de fôlego curto e sabedoria imensa”. A tradição do aforismo é antiga. Hipócrates foi o primeiro escritor de aforismos, já por volta de 400 a. C. O procedimento aforístico também marcou a obra de Heráclito, a especulação moral de Sêneca, a observação histórica de Plutarco, as cartas de Marco Aurélio, a ética de Confúcio e as sentenças de Salomão. A importância do aforismo na obra de Nietzsche é imensa, como já era em parte no caso e Schopenhauer e, mais ainda no de Blaise Pascal e Nicolas Chamfort.  Dois exemplos de aforismos no filósofo alemão: “Muito pavão esconde aos olhos de todos a sua cauda de pavão – e chama isso de seu orgulho.” O segundo: “A mulher aprende a odiar na medida em que desaprende a – enfeitiçar”.

Filosofemos, amigos! Filosofemos!

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