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terça-feira, 27 de setembro de 2005

O pião (Nilto Maciel)




O menino atirou à distância o pião e puxou o cordão. O objeto alcançou o chão, com violência, e se pôs a girar. E tão velozmente girava, que Us imaginou estar ele parado. No entanto fazia voltas no chão, num movimento de translação ao redor de um ponto imaginário.

Aos poucos, o giro se fazia mais lento e Us pôde perceber o movimento de rotação do pião.
Mais alguns giros, e o objeto perdeu o equilíbrio. Entrou em desordem, rolou deitado e foi repousar longe do lugar onde originalmente caíra.

O menino atirou-se em busca do brinquedo. Certamente enrolaria de novo o cordão ao redor do pião e reiniciaria a brincadeira. Us, porém, não esperou o novo espetáculo. Devia se sentir satisfeito. E correu para casa.

– Mãe, compra um pião pra mim.

A mulher resmungou sim ou não e mudou de assunto. Fos-se o filho tomar banho. A hora do almoço não tardava. Se não se apressasse, ia chegar atrasado à escola. Us tomou banho com o pião girando em sua cabeça. Duran-te o almoço falou do brinquedo. A caminho da escola repetiu o pedido à mãe.

Mal teve início a aula, a professora chamou a atenção de Us. Deixasse a conversa para a hora do recreio. Ele falava a um amiguinho sobre o pião que iria ganhar.

Para sua mãe, no entanto, aquilo parecia muito perigoso. Mas ele não via perigos, só via piões. E sonhava esquisitices. Um mundo de piões. Todos girando. Nas calçadas, nas ruas, nos telhados, nos ares. A Lua, um pião enorme e lindo. As estrelas, piões do céu, brinquedos dos anjos.

E se a Terra também fosse um pião gigante a rodopiar no espaço? Brinquedo de Deus, aquele ser poderoso das aulas de religião e das missas de domingo.

Mas como os sonhos durassem pouco, durante o dia Us não se continha e fugia de casa para o país dos rodopios. Esquecia-se do tempo, dos estudos, da mãe. Aprendia a soltar piões. Olhos atentos às mãos dos outros meninos. Daqueles felizardos. E pedia, humílimo, para ao menos enrolar o cordão. Negavam-lhe esse favor, essa caridade. Comprasse ou mandasse fazer um pião.

Ora, a mãe jamais lhe daria dinheiro para comprar tão perigoso brinquedo. De qualquer forma, iria ao carpinteiro. Talvez não custasse tanto um pequeno pião. Não custou nada. O carpinteiro com certeza se apiedou do pobre Us.

E toda a felicidade humana se incorporou ao menino. Tão feliz se sentia, que não carecia de platéia nem de elenco para seu espetáculo. Só de palco, do pião e de si mesmo. E se isolava nos becos, nas pontas de rua, nos terrenos baldios.

Havia, porém, um espectador oculto a ver todo o seu sonho rodar no chão. Um velho escultor. Entalhava uma estátua de Deus-homem, e só lhe faltava o coração. Aquele pião talvez ser-visse.

O menino se assustou e agarrou o brinquedo. Não, não venderia nem daria seu pião. Custara-lhe caro. O homem sorriu. Via mentira nos olhos de Us. Contasse a verdade. Ele também tinha sua via-crucis para contar.

Fizeram-se amigos. E o pião de Us acabou incrustado no peito do Deus do velho escultor.
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segunda-feira, 26 de setembro de 2005

Carlos Emílio Corrêa Lima: epopéia e mito (Nilto Maciel)



É sabido que os missionários europeus para cá vieram com o fito de exercer a missão precípua de “catequizar” nossos nativos, isto é, extirpar do indígena tudo: idiomas, costumes, crenças. E, em consequência, impor-lhes novo sistema de trabalho, nova língua, novos costumes, nova religião – a cultura dos europeus. É também sabido que a dissensão havida entre o poder político e o poder religioso dos dominadores teve origem na disparidade de métodos de integração do indígena à civilização européia.

Os mitos aborígines foram combatidos primeiro pela persuasão da palavra e, a seguir, pelos castigos corporais, como açoite e castração, e pela morte pelo fogo. Os indígenas, ao mesmo tempo em que assistiam a missa e rezavam orações, continuavam praticando suas abusões.
Os mitos dos antigos habitadores desta terra, que os primeiros navegantes europeus acreditaram ser o paraíso terrestre de que falavam outros mitos, desapareceram, assim, sob o tacão das hordas comandadas pelos monarcas cristãos. Esta seria um pedaço da desaparecida Atlântida – reino que há milênios já se comunicava com as civilizações de outros planetas. Depois veio o apocalipse e tudo voltou à estaca zero.

Em A Cachoeira das Eras: a Coluna de Clara Sarabanda, romance de Carlos Emílio Corrêa Lima, uma coluna desce “os sertões brasílicos na direção do sorvedouro do Renascimento” para reescrever aquele passado mítico. Integram-na Antônio Luís (um ex-bêbado que conhece um macaco) e seus quatro companheiros: João José Ribamar (“Defini-lo, aprisionar sua alma para descrevê-lo é tarefa improvável”), Eduardo Bravo (“Tinha uma vasta criação de coelhos”), Mário Almeida (“ligado secretamente com animais e plantas”) e Augusto Lopes (“uma vez relatou para uma audiência maravilhada que havia irremediavelmente adquirido a doença da carnaúba, uma enfermidade terrível que o levaria para fora do tempo e do espaço presentes”). Há um outro “companheiro de jornada”, que “está ausente”. Seu nome é Ludovico, “filho espúrio do célebre professor austríaco Ludwig Schwennhagen”.

Os integrantes da coluna partem da ilha de São Luís do Maranhão para uma viagem tempo e espaço adentro, no afã de reescreverem a história antiga desse país mítico descoberto por fenícios, árabes, portugueses, espanhóis e franceses. “Olha que isso vai ser um fenômeno igual ao da Coluna Prestes, nossos exércitos, se não agirem logo, vão perseguir por muitos anos uma coluna de fantasmas que levará o país aos fundos de um abismo”, informa, espavorido, o secretário de planejamento do governo.

No decorrer da história vão aparecendo os personagens mais incríveis, como Roberto Carlos, “aquele louco da avenida, sempre metido em latas e calotas de automóveis”, que perambula pelas ruas de Fortaleza; como o Dr. Ociru (o Dr. Urico, jovem psiquiatra); como Albimirom; Heródoto; Alexandre da Macedônia; Saint-Exupéry; Ludwig Schwennhagen; Prestes; e muitos outros. Tudo numa linguagem espantosamente elaborada, num caudal de frases sonoras.

A coluna invencível, de loucos e predestinados, percorre este mundo de mitos, ressuscitando-os e insuflando os povos dos sertões a uma viagem mágica e mítica pelos interiores do tempo. A nova Prestes é Clara Sarabanda, a pitonisa da fulgurante roda-viva, a regente da música do universo em contínuo ir e vir. E o tempo vai rolando e rodando como uma cachoeira.

Recriando os mitos perdidos e elaborando novos mitos, Carlos Emílio se converte numa espécie de feiticeiro e conclama contra si os catequizadores modernos, como a televisão, a serviço dos novos monarcas. Conclamará ainda aqueles que, de outra forma, falam a mesma língua dos inquisidores e, travestidos de santos missionários, pregam a idolatria a deuses estrangeiros.

Com A Cachoeira das Eras a literatura se renova, porque na forma volta às grandes epopéias e no conteúdo retorna ao sistema ideológico de Gonçalves Dias e José de Alencar. Por um lado, faz da literatura algo mais do que mera crônica, por outro, dá à matéria literaturada a dimensão que só a arte pode dar – a dimensão mítica.

É bastante difundida a opinião segundo a qual toda grande obra literária tem seu lugar reservado na Biblioteca Universal. Daí a imortalidade de Camões, Cervantes, Dante. Mesmo não sendo escritores de preferência do leitor médio. As empresas editoriais teriam sempre interesse na edição dessas obras. No entanto, entre editar Petrarca e um Ken Follett qualquer, aquelas empresas preferem este. Afinal, objetivam o lucro, acima de tudo. São fabricantes de livros, como poderiam ser de canetas ou punhais.

A sociedade não tem como exigir a reedição de livro nenhum. A menos que seus organismos específicos se fizessem editores. Como as academias de Letras e os sindicatos de escritores. Porque, via de regra, é o autor o principal interessado na publicação de sua obra. Morto, sua obra dificilmente será editada ou reeditada.

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