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sábado, 8 de outubro de 2005

O conto cearense* (Nilto Maciel)




Poeta antes de tudo, especialmente com Lendas e Canções Populares, Juvenal Galeno (Fortaleza, 1836-1931), com suas Cenas Populares, de 1871, é um dos primeiros cultores da narrativa curta no Ceará. Este livro deve figurar, segundo Sânzio de Azevedo, “como precursor, ou mesmo como iniciador do conto em nossa terra”. Mais adiante é categórico: “Com suas qualidades e defeitos, são as Cenas Populares o marco inicial do conto cearense, em pleno Romantismo”.

O segundo nome da história curta cearense, na ordem cronológica, é o de Araripe Júnior. Sânzio assinala: “escreveu obras de ficção romântica, como os romances O Ninho do Beija-Flor (1874), Jacina, a Marabá (1875), Luizinha (1878)”. No entanto, sua vocação era a crítica literária. Teve editado Contos Brasileiros, em 1868.


Braga Montenegro dá a José de Alencar (1829-1877) o título de primeiro contista cearense: “O ponto inicial da evolução do conto cearense retrai a meados do século 19, se incluirmos os Cinco Minutos e A Viuvinha, reunidos num só volume em 1860 (o primeiro em plaqueta, fora do mercado, em 1856), a despeito da intenção do autor que os denomina romances, na categoria de contos; verdadeiros contos ou novelas que são pelo conteúdo estético, pela duração, pelo grau de poesia e símbolo que encerram”.

Montenegro considera como sendo o segundo contista cearense, na ordem cronológica, Franklin Távora. Autor de alguns romances, em 1861 deu a lume o livro Trindade Maldita, subintitulado “Contos no Botequim”.

Já no final da penúltima década do século 19 surgem os verdadeiros primeiros cultores da história breve no Ceará, ligados ao Clube Literário (1887-1888): Oliveira Paiva, Francisca Clotilde, José Carlos Júnior e Rodolfo Teófilo.

Oliveira Paiva escreveu o famoso o romance Dona Guidinha do Poço. Reunidas no livro Contos, em 1976, finalmente as suas narrativas curtas se salvaram do olvido.

Outros contistas, ou poetas e romancistas que também se aventuraram a escrever contos na época do Centro Literário, são: Rodolfo Teófilo e Domingos Olímpio, o criador do romance Luzia-Homem. Da Padaria Espiritual destaca-se Antônio Sales, poeta, romancista (Aves de Arribação), teatrólogo e contista. O nome mais conhecido nesse período é o de Adolfo Caminha. Seu primeiro romance é A Normalista. Sua mais completa biografia é de autoria de Sânzio de Azevedo: Adolfo Caminha (Vida e Obra). De seus contos somente 11 foram reunidos em livro, em 2002, por Sânzio de Azevedo, sob o título Contos, pela Editora da UFC.
Braga Montenegro afirma que “o conto cearense só adquiriu substância e qualidade artísticas após ou simultaneamente à guerra, com novos nomes e novas intenções estéticas”. No início do século XX apenas dois nomes merecem destaque: Gustavo Barroso e Herman Lima, que estreou com Tigipió (1924).

Depois de Gustavo Barroso, o nome mais importante da história curta cearense no início do século XX é o de Herman Lima, que se teria iniciado na elaboração desse tipo de prosa “por influência” da ficção do primeiro, na opinião de Sânzio de Azevedo, que o chama de “mestre incontestável, na teoria e na prática, autor que seria de contos e livros sobre a técnica do conto”.

Destaque deve ser dado a Rachel de Queiroz, nome nacional desde o livro de estréia, o romance O Quinze (1930). Em seus livros de crônicas estão incluídos diversos bons contos.

Na opinião de Sânzio, “o conto moderno só irá consolidar-se definitivamente em nossa terra com o chamado Grupo Clã, já na década de 40”. O surgimento do Grupo Clã e sua revista (as Edições Clã se iniciam em 1943) traz a lume uma plêiade de novos contistas, entre eles Braga Montenegro, Moreira Campos, Fran Martins, Eduardo Campos e Lúcia Martins.

Fran Martins estreou com Manipueira (1934), seguindo-se Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948), O Amigo de Infância (1960) e Análise (1989). Escreveu alguns romances: Ponta de Rua (1937), Poço dos Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco Estrelas ((1950) e A Rua e o Mundo (1962).

Eduardo Campos estreou em 1943, com a coleção Águas Mortas. Seguiram-se, neste gênero, em 1946 Face Iluminada, em 1949 A Viagem Definitiva, em 1965 Os Grandes Espantos, em 1967 As Danações, em 1968 O Abutre e Outras Estórias (constituído por uma seleção dos presumíveis melhores contos), em 1970 O Tropel das Coisas, em 1980 Dia da Caça, em 1993 O Escrivão das Malfeitorias, em 1998 A Borboleta Acorrentada e em 1999 O Pranto Insólito.

Braga Montenegro estreou com Uma Chama ao Vento (contos, 1946), reeditado em 1980 pelas Edições UFC, seguindo-se, em 1976, As Viagens e Outras Ficções, (novelas e contos), mais uma seleção dos Contos Derradeiros, até então inéditos em livro.

Entretanto, de todos os nomes aqui citados, desde Juvenal Galeno e José de Alencar, passando por outros expoentes da literatura cearense, até hoje, somente um pode ser chamado de contista por excelência ou por natureza – Moreira Campos. Os outros foram mais poetas ou mais romancistas. E isto não é apenas uma opinião, é uma constatação. Vejam-se os estudos, as teses, as monografias, as histórias, as enciclopédias – em todos eles, quando o assunto é conto, o primeiro nome cearense é o de Moreira Campos. Deixou as seguintes coleções: Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Vêem Coisas (1987). Seus Contos Escolhidos tiveram três edições, Contos foram editados em 1978 e Contos – Obra Completa se publicaram, em dois volumes, em 1996, pela Editora Maltese, São Paulo.

Além dos quatro grandes nomes do conto cearense surgidos com o Grupo Clã, outros escritores se destacaram no cultivo da narrativa curta após 1960. Os mais importantes são Caio Porfírio Carneiro, talvez o escritor mais vocacionado para a composição ficcional curta no Ceará, depois de Moreira Campos; José Alcides Pinto, embora mais dedicado ao romance e ao poema; e Juarez Barroso.

Caio Porfírio Carneiro tem cultivado a prosa de ficção curta com regularidade. Sua estréia no gênero se deu em 1961, com o elogiadíssimo Trapiá. Seguiram-se Os Meninos e o Agreste (1969), O Casarão (1975), Chuva – Os Dez Cavaleiros (1977), O Contra-Espelho (1981), Viagem sem Volta (1985), Os Dedos e os Dados (1989), A Partida e a Chegada (1995) e Maiores e Menores (2003).

José Alcides Pinto tem sido muito mais poeta e romancista do que contista. Apesar disso, é também nome fundamental do conto cearense. Seu primeiro livro no gênero é de 1965, Editor de Insônia, seguido de Reflexões. Terror. Sobrenatural. Outras estórias, de 1984. Em 1997 ambos foram reeditados, sob o título Editor de Insônia e outros contos. A obra literária de Alcides Pinto está estudada em dois importantes livros: O Universo Mí(s)tico de José Alcides Pinto, de José Lemos Monteiro, e O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto, de Paulo de Tarso (Pardal).

Juarez Barroso deixou as narrativas de Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal (1969), ganhador do Prêmio José Lins do Rêgo, do ano anterior, e Joaquinho Gato (1976).

Seguindo informações de alguns historiadores ou cronistas da Literatura Brasileira, 1975 é o marco de uma nova era. No entanto, bem antes daquele ano se publicaram importantes livros de contos de escritores cearenses, como Mundinha Panchico, de Juarez Barroso, em 1969; A Morte Trágica de Alain Delon, de Francisco Sobreira, em 1972; Os Olhos do Lixo, de Socorro Trindad, no mesmo ano; Pluralia Tantum, de Gilmar de Carvalho, em 1973.

A revista O Saco começou a nascer em 1975 e foi em volta dela que, no Ceará, os novos contistas se tornaram mais ou menos conhecidos no resto do Brasil, iniciando-se um período de edição de seus livros no Rio de Janeiro e em São Paulo e de contos esparsos em jornais e revistas de todo o país. Em 1976 Glauco Mattoso e Nilto Maciel organizaram uma antologia de contos dos novos escritores brasileiros, intitulada Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal.

A seguir viria o Grupo Siriará de Literatura, que continuaria, de certa forma, o trabalho desenvolvido pelo pessoal de O Saco, aglutinando os escritores cearenses em torno de um programa e de uma revista.

Durante os anos 1970 diversos foram os livros de contos de novos escritores cearenses editados em Fortaleza, bem como em outras capitais. O primeiro deles, o já citado livro de Francisco Sobreira. No mesmo ano se publicaram mais três coleções: Exercício Para o Salto, de Cláudio Aguiar; Os Olhos do Lixo, de Socorro Trindad; e A Coleira de Peggy, de Holdemar Menezes. Em 1973 apareceu um dos mais importantes e singulares livros de ficção curta do Ceará: Pluralia Tantum, de Gilmar de Carvalho. Em 1974 Nilto Maciel estreou com Itinerário. Em São Paulo, 1975, veio a lume O Casarão, de Caio Porfírio Carneiro, que havia estreado ainda em 1961 e, portanto, não se enquadra no rol dos novos contistas. O mesmo se pode dizer de Juarez Barroso, com seu Joaquinho Gato, de 1976. Desse ano é O Menino D’água, de Fernanda Teixeira Gurgel do Amaral. No ano seguinte saíram Depoimento de um Sábio, de Cláudio Aguiar, Milagre na Salina (catalogado como romance), de Mario Pontes, e Coisas & Bichos, de José Hélder de Souza, todos então radicados fora do Ceará. No mesmo ano se publicou Tocaia, de Yehudi Bezerra. Os mais velhos continuaram editando narrativas curtas, como Moreira Campos, que em 1978 apresentou Os Doze Parafusos. Naquele ano estrearam duas contistas: Socorro Trindad, com Cada Cabeça uma Sentença, e Glória Martins, com Reencontro. Em 1979 Francisco Sobreira editou A Noite Mágica, e aconteceu a estréia de quatro contistas: Gerardo Mello Mourão, com Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas; Geraldo Markan, com O Mundo Refletido nas Armas Brilhantes do Guerreiro; Airton Monte, com O Grande Pânico; e Paulo Véras, com O Cabeça-de-Cuia.

Moacir C. Lopes estreou com O Navio Morto e Outras Tentações do Mar, em 1995. Carlos Emílio Corrêa Lima em 1984 teve editado o volume Ofos. Barros Pinho publicou A Viúva do Vestido Encarnado, em 2002. Batista de Lima passou a divulgar seus contos mais recentemente: O Pescador da Tabocal saiu em 1997 e Janeiro é Um Mês Que Não Sossega, em 2002.

Como se pode observar, nos anos 1970 não foram poucos os escritores cearenses que se dedicaram à prática da ficção curta, uns de forma tradicional, outros mais voltados para as inovações estruturais; uns obedientes à economia verbal, outros atraídos pelos horizontes mais amplos da narração; uns cautelosos na elaboração das histórias, outros dispostos a inventar mais e mais.

Natércia Campos é nome fundamental do conto cearense após 1980. Autora de Iluminuras (1988). Jorge Pieiro tem se destacado nacionalmente. Incluído, com Pedro Salgueiro, na antologia Geração 90: Manuscritos de Computador, organizada por Nelson de Oliveira, figura ao lado dos melhores cultores do conto no Brasil surgidos a partir de 1990. Na sua opinião, “os que publicaram o que de melhor se leu no final do século XX”. Em 1993 se deu a estréia de Dimas Carvalho no gênero conto, com Itinerário do Reino da Barra. Seguiram-se Histórias de Zoologia Humana em 2002 e, no ano seguinte, Fábulas Perversas. Em 1996 Ronaldo Correia de Brito editou o primeiro livro, As Noites e os Dias, seguido de Faca, 2003, e Livro dos Homens, 2005. Pedro Salgueiro tem editados O Peso do Morto (1997), O Espantalho (1996) e Brincar Com Armas (2000). Em 1998 Tércia Montenegro fez sua estréia com O Vendedor de Judas.

Muitos outros têm publicado contos apenas em jornais, revistas e coletâneas, embora sejam autores de livros em outros gêneros, como Adriano Espínola, Dimas Macedo, Júlio Lira, Túlio Monteiro, Natalício Barroso, Ricardo Guilherme, Sânzio de Azevedo e Soares Feitosa.

(*Síntese do livro Panorama do Conto Cearense (Editora Códice, Brasília/Fortaleza, 2005), de Nilto Maciel)
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Uilcon Pereira, um escritor do século XXI (Nilto Maciel)



Em Teatro às escuras, Eloésio Paulo disseca a obra de Uilcon Pereira com tal profundidade que receio não fazer aqui outra coisa senão perpetrar plágio. Apesar disso, quero escrever duas linhas de impressões após a leitura do segundo livro da trilogia No Coração dos Boatos, o romance Nonadas, publicado em 1983. No ano anterior havia saído Outra Inquisição e em 1984 editou-se A Implosão do Confessionário.

Referi-me a romance. Será Nonadas um romance? Segundo Eloésio Paulo, na resenha “Texto Onírico”, o ficcionista Manoel Lobato “coloca reservas à classificação do texto uilconiano como romance”. Eloésio, no entanto, não tem nenhuma dúvida: trata-se de romance. E esclarece: a trilogia foi inicialmente concebida como um livro único, “tendo sido feita a divisão (em três volumes) por razões econômicas” do editor.

O livro é composto de diálogos, como nas peças de teatro. Ora, o diálogo é o recurso dramático por excelência, segundo os teóricos. Entretanto, no romance de Uilcon os nomes dos personagens não estão postos antes das falas. No Dicionário de Termos Literários, Massaud Moisés escreveu: “No que diz respeito ao romance e teatro, observa-se que apresentam “em comum serem uma história vivida pelas próprias personagens” (João Gaspar Simões, Ensaio sobre a Criação do Romance, 1944, p. 14). No mesmo verbete anotou: “Na verdade, certos romances românticos ou realistas nos dão a impressão de estar “vendo” as cenas a se desenrolar como no palco. Ainda assim, consideráveis são as discrepâncias: enquanto o romance é uma narrativa, o teatro aborrece a narração em favor da ação, do espaço e do espetáculo; aquele ignora os limites temporais, este é obrigado a movimentar-se dentro de certas balizas.”“.

Não seria, pois, nenhum despropósito rotular Nonadas de teatro. O título do livro de Eloésio é bem claro neste sentido: “Teatro às escuras”. Teatro na acepção de palco, talvez. Ora, no livro de Uilcon não há o narrador, como na maioria das peças. O romance é feito de falas dos personagens, perguntas de uns, respostas de outros. E mais nada. Tudo aparentemente caótico, como num imenso caldeirão de culturas: o falar caipira, a gíria urbana, trechos da Bíblia, português arcaico, erudito e popular, trocadilhos, paródia da linguagem policialesca, versos ou fragmentos de versos de poetas, falas de personalidades da cultura de massa, letras de canções da música popular brasileira, glosas de títulos de livros, trechos de entrevistas, alusões a personagens de filmes e a ensaios literários, como anotou Eloésio.

Há em Nonadas os que perguntam e os que respondem, como num grande tribunal de inquisição. São personagens sem nomes, quase sempre. Os que perguntam são às vezes tratados de forma muito respeitosa, porém sempre com ironia: “senhor polícia do sonho”, “senhor diretor deste museu dedicado à memória de Evarista Pim”, “Conde de Fé e Entrevistador General”, “senhor presidente da convocatória nacional”, “mestres da convocatória brasílica”, “douto inquisidor”, “senhor pároco”, “Inspetor da Santa Irmandade”, “senhor juiz auxiliar”, “senhores membros do Conselho Nacional de Censura” etc.

Um dos inquisidores, ao acreditar estarem os convidados “bestando de novo”, tem um acesso de megalomania (p. 77), ameaça virar a mesa, arrombar a festa, recrudescer. O inquirido discorda do inquiridor: “não pode, pois recrudescer é verbos intransitivos, que não pode ser usado para uma ação pessoal.” O inquisidor se irrita: diz-se a única divindade, o próprio demiurgo. “sou o centro imaginário deste conjunto de entrevistas”; “não gosto de convidados que se sentem amedrontados aquando lhes acuo mediante perguntas”; “sou a divindade, o onisciente, o que se disfarça em oniquestionador. é isso. descobri, finalmente: sou o oniquestionador. sou aquele que interroga...”

Os inquiridos são testemunhas de “crimes” praticados pelo herói ou anti-herói, de quem ainda falarei. Como os inquisidores, as testemunhas também não têm nomes: “senhor escrevente juramentado”, “senhor gonfaloneiro da nossa igreja”, “senhor curador de menores”, “senhor cura”, “senhor pároco”, “horoscopista”, “senhor rabino”, “professor” e outros. As perguntas são sempre curtas e grosseiras ou voltadas para a intimidade do acusado, o protagonista ausente. As respostas, ao contrário, são longas e às vezes confusas.

Quem é o personagem principal do romance? Quem é o herói ou anti-herói? De quem falam os inquisidores e os respondedores? Na página 137 do romance lê-se: “briga de língua não vai garantir a democratura aqui no estúdio na câmara escura onde vocês se deixam sabatinar, e ainda a respeito de um assunto único: as sobras de uma vida os pedaços de um quebra-cabeças, imagens esfareladas vidro moído pela memória, entre-retrato em miscelânea da memória sobre Evarista Augusto Sohl podia ser a melhor reportagem que eu nunca escrevi que eu jamais escreverei Evarista Augusto Sohl existe? é uma só? ou é um grupo de vidros combinados?”

O protagonista tem diversos nomes. O mais frequente é Evaristo, seguido de sobrenomes como Mil, Benin, Hitopadaça, Pantchatantra, das Panelas etc. Há ainda variantes como Evarisno Bataie. Há também a forma feminina, Evarista, seguida de sobrenomes como Pim, Euil, Óio, Augusto Sohl etc. Na verdade, o herói ora é homem, ora mulher. Seria um hermafrodita.

Consoante Rosário Farâni Mansur Guérios, no Dicionário Etimológico de Nomes e Sobrenomes, Evaristo (Evaristus, em latim) vem de euáristos (grego), bom (eu) nobre (áristos), isto é, excelente. Uilcon estaria testando a inteligência do leitor, ao apresentar um “herói excelente” com características de bandido, de facínora, de lobo-mau? A carapuça feia de cada um de nós esconderia a bondade? Ou o Mal e o Bem seriam mesmo relativos, dependeriam dos pontos-de-vista das outras pessoas? Evaristo também pode significar “bem recebido”, se vier do grego euarestos. Neste caso, o herói uilconiano, mal recebido, mal aceito por seus semelhantes, seria um antievaristo. Ou o outro lado de Evaristo.

A raiz do nome Evaristo (eva) lembra a primeira mulher, segundo o Gênesis. Como Eva, não tem voz, não fala. A não ser no momento da tentação, quando a serpente lhe dirige algumas perguntas. A personagem do mito bíblico, criada a partir de uma costela de Adão, seria criatura de segunda mão. O homem, gerado diretamente pela mão do Criador, seria criatura de primeira mão. Evaristo não passa também de criatura de segunda mão, moldada não à imagem e semelhança de seus criadores (os entrevistados), mas segundo a ótica, a lembrança, a invencionice de cada um dos “narradores”. Seria um ser em constante mutação: nos nomes, na natureza do sexo, na aparência física, no caráter, na personalidade etc.

As diversas “narrações” e “descrições” (as respostas dadas pelos personagens inquiridos) significam, ainda, que em Nonadas há diversos narradores, isto é, diversos pontos-de-vista. Cada inquisidor e cada inquirido é um narrador. Com o emprego da técnica dos multinarradores, da multiplicidade dos pontos-de-vista, Uilcon avançou para a pós-modernidade no romance, deixando para trás os velhos processos do narrador onisciente, do único narrador na primeira pessoa, do protagonista-narrador, do único narrador-testemunha, do único narrador secundário etc.

O assunto principal dos diálogos, dos interrogatórios, dos questionários é a vida de Evaristo. Os interrogadores querem saber quem foi Evaristo, como os vigiava (seria um espião, um dedo-duro, um alcagüete da polícia?), como se disfarçava, se era cego/cega, quem o/a cegou etc.

Os interrogatórios se realizam em lugar fechado, podendo ser uma sala de tribunal, auditório, estúdio de telejornal etc. Não há nenhuma descrição de ambientes ou do ambiente onde se realizam as entrevistas ou as inquisições. Um dos inquisidores reclama: “chega de tanta literatura. isso vai cansar os queridos telespectadores” (p. 114). Outro também dá a entender estarem num auditório: “o horário do programa está errado, avança tarde da noite” (p. 92), como se se tratasse de um programa de televisão e não de uma audiência na polícia ou num tribunal. Na mesma fala ele havia dito: “não estamos selecionando as questões. precisamos destacar as mais inteligentes. não há tempo para que todas sejam formuladas. e outras vezes caímos em redundância: pergunta-se a mesma coisa aos réus e testemunhas”. E neste trecho há alguma incongruência, pois os entrevistados seriam tão-somente testemunhas, eis que o réu seria Evaristo.

Um dos inquiridos, o governador-geral da colônia chega a gritar: (...) “por favor, gente, ouvintes, meu povo, por favor, eu quero terminar, o senhor me dá licença de usar a palavra?” Há microfones, câmeras de televisão, videocassetes. Os personagens entrevistados dão a este lugar os mais diversos nomes: santo sínodo, porco tribunal, Teatro do Sonho no Espaço Infinito, pseudo-tribunal, plenário do Serviço de Censura da Superintendência Regional da Polícia Federal, centro de estudos e perspectivas de informação internacional etc.

Sempre que algum escritor apresenta novidade nas técnicas de narrar aparecem profetas para anunciarem a impossibilidade de qualquer nova invenção na arte literária, a partir daquele momento. Assim se deu quando surgiram Flaubert, Kafka, Proust, Joyce, Musil, Faulkner, o nouveau roman etc., no âmbito universal, ou Oswald de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Loyola Brandão etc., no Brasil. E surgem os anjos anunciadores do fim do romance, as teorias apocalípticas da agonia derradeira da arte de narrar.

Como escreve Eloésio Paulo no livro mencionado no início deste artigo, “o romance de Uilcon Pereira é uma obra vanguardista no melhor sentido da palavra”.E prossegue: “Escrita na era da pós-utopia, e por isso mesmo vanguarda: atualizada para um momento em que a elaboração literária não comporta mais qualquer otimismo, contentando-se com a possibilidade mais modesta do termo morusiano - a utopia é o livro, o não-lugar onde o escritor se exila do país dos boatos para retratá-lo melhor”.

Não acredito em esgotamento de linguagens, de temas, de estruturas etc. Aqui sou otimista: sempre haverá o que inventar ou reinventar. E tudo o que for inventado ou reinventado será bom. Nonadas que sejam. Porém nonadas de pura invenção.

Salvo engano, meu primeiro contato com Uilcon Pereira se deu em 1987, quando ele residia em Araraquara. Enviei-lhe exemplar de um de meus livros e imediatamente ele me mandou uma carta. Dias depois me ofertou exemplar de “re-lances do Livro de Biúte”: “preciso da sua opinião sobre os meus contemos”. Trata-se de pequeno livro, 32 páginas, fragmentos de um livro maior: “este é um trabalho em curso, ainda no canteiro de obras. Publico re-lances para sondar um pouco as reações dos leitores”, avisa na página inicial.

Antes do “re-lances”, Uilcon havia publicado “No Coração dos Boatos”, trilogia dividida em “Outra Inquisição” (1982), “Nonadas” (1983) e “A Implosão do Confessionário” (1984). Infelizmente, não tive oportunidade de conhecer essa obra.

Ao longo de dez anos, Uilcon e eu mantivemos correspondência regular. Falávamos de nossos projetos e nossas realizações literárias. Não consegui ainda organizar as cartas dele, apesar de ter quase certeza de que me escrevia cerca de cinco ou seis por ano. Não faço cópia das cartas que escrevo, mas devo ter enviado a ele o mesmo número de missivas.

Uilcon não falava apenas de si mesmo. Comentava, com freqüência, os escritos dos outros, como os colaboradores da revista Literatura. E vivia prometendo colaboração. Ora “pequeno texto sobre poesia visual”, ora “8 contozinhos sob o título geral “sobre arte moderna e contemporânea””, ora “ensaio de Elisa Guimarães” (este saiu na edição n.º 8 de “Literatura” e intitula-se “À Margem da Obra de Uilcon Pereira”).

Desde o primeiro momento, impressionou-me muito a originalidade da obra ficcional de Uilcon. Ao mesmo tempo, senti-me incapaz de esposar qualquer opinião ao público. Temia dizer tolices, fazer comparações infundadas, dar rótulos desnecessários à sua obra. Nas cartas, ao contrário, eu me sentia à vontade e fazia comentários aos livros dele.

Quando li “Ruidurbano: entre/vistas” e “Ruidurbano: uma antologia” meu pasmo foi maior. Ora, então a obra intitulada “Ruidurbano” já havia sido escrita. Nas “entrevistas”, Uilcon fala a diversos “entrevistadores”. No entanto, tudo é mentira, invencionice, ficção. Uilcon nunca escreveu um livro intitulado “Ruidurbano”. Melhor dizendo, as “entrevistas” e a “antologia” são fictícias. Logo, o “entrevistado” e o autor “antologiado” são um Uilcon Pereira personagem de Uilcon Pereira. Bem escreveu Camilo Mota (“Fragmentos e refinamentos do Ruidurbano de Uilcon Pereira”): “Qualquer um que se atreva escrever sobre Uilcon Pereira corre um sério risco de se tornar um de seus insuspeitos personagens. Isto porque em sua obra ocorre uma sobreposição de realidade, não se sabendo bem onde começa a ficção, onde existe a fantasia, ou mesmo se existe um Uilcon – que se transforma a cada página através de seus personagens pré-e-pós-cibernéticos. A realidade, por sua vez, passa por um filtro que mais parece um calidoscópio verbal – e o que antes habitava ao nosso lado, repentinamente é arremessado para dentro de um romance, ou de um suposto romance, como é o caso de Ruidurbano”. Na verdade, o livro de “entrevistas” e a “antologia” são dois romances. Ou duas versões de um romance. Duas formas diferentes de um romance. Um metaromance, no dizer de Elisa Guimarães. Pois não se trata de romance na sua forma tradicional (mesmo os romances mais originais, como “Ulisses” de James Joyce, os de Oswald de Andrade, William Faulkner e do Nouveau Roman). Talvez um novo gênero literário, forma híbrida de narrativa ficcional, jornalismo, almanaque, crítica literária, crônica de costumes, humor, deboche... Enfim, romance de romance, meta-romance.

A leitura dos livros de Uilcon me abalou tanto que passei a me ver como um velho escritor, um narrador ultrapassado. Senti-me no século XX, um pequeno contista-romancista do final do século XX. Quase tive vergonha de mim mesmo. E prometi mudar. Não sei se consegui mudar, buscar novas formas de escrever, de inventar. Pus-me a imaginar, a fazer rabiscos, anotações e cheguei a escrever um livro, uma série de pequenas narrativas cujos personagens principais são reis, generais, heróis, santos. Um desses contos é “O Gato Preto de Darwin”, que Uilcon chamou de “obrinha-priminha”. E comentou: “foi integrada, já, ao meu pacote de minis perfeições que vou utilizando nos meus cursos sobre as possibilidades do minimal em ficção (virará livro de ensaio, no futuro)”. Uma das preocupações constantes dele era exatamente isso: a síntese (“única saída para os ventos do verbo, hoje e amanhã” - afirmava). Falei da influência dele em minhas obras mais novas. Ele, que era professor de Literatura e mestre na arte de ler e escrever, não parece ter levado a sério a informação que lhe dei. Talvez não acreditasse na possibilidade de me tornar seu discípulo, seu imitador. Também não acredito nisso. Porque continuo um escritor do século que finda. Ele, Uilcon Pereira, é um escritor do século XXI, do futuro, o criador de uma nova literatura.
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