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quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Emanuel Medeiros Vieira: desespero e morte (Nilto Maciel)



Visão abrangente de todo este leque humano, síntese, por isso, surge o conto dialético de Emanuel Medeiros Vieira. Não é burguês o personagem, nem o é proletário. O homem apenas no meio do redemoinho da grande festa capitalista. O que olha o carnaval, o festim, a orgia, e morre de pasmo. Personagem de folhetim, decadente, macabro herói a carregar às mãos o coração despedaçado. Homem médio, pequeno-burguês infeliz.

A dialética é: na sociedade de consumo tanto são criminosos aqueles que nada têm, como os que, embora tendo, pelo menos algumas moedas, se omitem de participar da “felicidade” ofertada nas vitrines e nos anúncios. E a punição tanto pode ser uma espécie de ostracismo como a internação em hospício, em prisão ou a morte. É dever de todo cidadão comprar automóveis, assistir à televisão, ir aos estádios, acompanhar as modas, freqüentar os supermercados, competir, “ser feliz”, enfim. É uma lei. Os que não a cumprem, ou a ferem, devem ser internados em centros de readaptação ou punidos de forma mais drástica. É preciso retirá-los do lodo, primeiro mostrando-lhes que a felicidade está nas vitrines coloridas e indicando-lhes o bom caminho da regeneração, longe do “álcool, do irracionalismo e da improvisação”. Se não aceitam os conselhos ou se são imunes à máquina publicitária, então é preciso puni-los. Caso resistam, fogo neles, como se faz comumente aos “perigosos bandidos” e como se fez aos Lampiões e, num passado mais distante, aos índios rebelados contra a nova ordem branca. É preciso pôr em prática os esquadrões da morte para os mais recalcitrantes, para os que jamais seriam readaptados, tal como se fazia nos tempos do nazismo. Porque tais indivíduos são marginais, doentes, infelizes, perigosos, bandidos. Alguns são favelados ou mendigos, que andam enfeando a cidade. Outros são vagabundos, alcoólatras, andarilhos. Esta é a denúncia que faz, de saída, Teu Coração Despedaçado em Folhetins.

Feita a denúncia (peça inicial do processo), vai aparecendo a nudez dos acusados, suas vidas sujas são expostas à visitação pública. O processo se tumultua, logicamente, porque são textos independentes entre si. Fosse um romance, o leitor esperaria, talvez, um enredo, uma história em que os personagens se afundassem em crises de angústia e desespero e, por fim, se suicidassem. No entanto, os personagens, como se fantasiados com máscaras idênticas, se mostram todos feridos, chagados, bêbados, desesperados, suicidas, perseguidos, atormentados. Um deles é o pai, no conto “Um Homem Velho, Feio e Bêbado”, que morre “babando, cuspindo, lutando”, após ter abandonado a família e resvalado para o alcoolismo. É preciso, então, interná-lo como louco. Não pode viver entre as pessoas “felizes” que compram automóveis. É um ser perigoso, um contaminador.

A morte desesperada é um dos pilares em que se assenta a prosa de Emanuel Medeiros. Os personagens ou estão morrendo ou morreram. Trazem a morte estampada na cara e uma angústia represada dentro do peito. Um dia, porém, tudo explode. É o fim. Antes disso, constatam que tudo está perdido, como o homem no conto “Pai”. Para desespero dos que ficaram, dos descendentes, dos continuadores dessa angústia. Antes do fim, se embriagam constantemente, se degradam, se prostituem, se trancafiam nas solidões dos quartos infectos e saem pelas ruas à procura de prostitutas a quem possam apertar o pescoço. Ou saem pelo mundo grande, como andarilhos ou perseguidos. Nesta fuga nada encontram, a não ser o mesmo ciclo de horror e desespero, como George Deladre. A vida é, assim, um mero folhetim: “E muitos cigarros e muito álcool e também dor: folhetim”.

Novela policial, de amor? O rótulo não importa. Love Story Paulistana, de Emanuel Medeiros Vieira, é uma historinha amarga, cruel. O policial está em quase todo o curso da ação, na briga entre dois bandos, que acaba envolvendo todos os demais personagens. Tudo coisa corriqueira, sobretudo nas grandes cidades. O personagem-narrador, um “pobre repórter” de 26 anos, ainda cheio de virtudes provincianas, apaixona-se por uma jovem de um desses grupos de bandidos e narra essa paixão. Como repórter, escreve numa linguagem rasteira, pontilhada de gírias. Vez por outra, uma frase bonita, frisada, repetida. Consciente do incômodo causado aos próprios ouvidos, o narrador escreve com ira.

O tema é atraente: uma jovem universitária envolvida com bandidos. Entretanto, o novelista preferiu não a figura de Milena, mas a solidão, a pieguice, a ingenuidade, a insegurança de Marcos, o repórter. Preferiu o tratamento na primeira pessoa, entregando a palavra ao personagem menos atraente do drama.
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As pequenas testemunhas (Nilto Maciel)


Ela nunca se atrasava e sempre saía depois de nós. Cheguei a pensar que ela morasse lá. Ou fosse a dona do prédio. Não podíamos deixar a sala de aula sem a sua permissão. E muito menos passear pelos arredores da escola. Durante o recreio, ficávamos nas imediações das salas, passeando pelo corredor estreito ou olhando para o mato. Uma ou outra árvore apenas. Onde estivéssemos, víamos o campo em toda a sua extensão. Parecia não haver outro prédio além do nosso. Assim, tínhamos ânsia de conhecer aquilo tudo. Embora não tivéssemos esperança de encontrar nada de bonito ou interessante. Queríamos saber, porém, para onde eram levados aqueles homens que diariamente passavam diante da escola, em direção ao campo. Iam cabisbaixos e tristes, algemados, cercados de soldados armados. Nos primeiros dias perguntamos à professora quem eram aqueles homens e para onde iam. Ela permanecia calada por alguns minutos, como sede nada soubesse. Depois respondia: "São inimigos da Pátria e estão presos". A resposta não nos parecia clara. Queríamos saber então o significado de “inimigos da Pátria.” Finalmente ela se zangou. Não queria mais ouvir uma só pergunta sobre aqueles homens. Diante disso, passamos a procurar em nós mesmas respostas às nossas perguntas. "São ladrões", diziam umas. "Mataram criancinhas", diziam outras. Chegamos a trocar insultos, tal a vontade de parecermos as mais sabidas, cada uma se dizendo a dona da verdade. Resolvemos então procurar de novo a professora. Mais uma vez ela se zangou. Insistimos, insistimos. Afinal, respondeu: "Quiseram derrubar nosso governo." Ficamos ainda mais insatisfeitas. Ora, não sabíamos o que era governo, nem onde estava, para poder ser derrubado.

No recreio, voltamos a discutir: "O governo é aquele prédio alto da Rua Marechal Deodoro, onde os soldados moram", dizia uma. "São as ruas, as fábricas, os carros pretos e os prédios altos", dizia outra. "Mas como é que os inimigos vão derrubar as ruas?" Perdíamos nosso tempo de recreio nessa discussão sem fim. Quando aqueles homens tristes passavam por nós, ficávamos também tristes, e perguntávamos a nós mesmas para onde iriam eles. Minutos depois ouvíamos estampidos e nos assustávamos. "O que foi isso?" A professora se irritava: "Vocês estão aqui para estudar e não para se preocupar com os treinamentos dos soldados."

Um dia, algumas de nós chegamos antes dela. Com pressa, poderíamos descobrir tudo. Bastava seguirmos a mesma trilha diariamente percorrida pelos soldados e presos. Alegres, corremos, livrando-nos dos espinhos e das pedras. Adiante, olhamos para trás e não mais vimos o prédio da escola. As mais medrosas quiseram voltar. A maioria, no entanto, insistiu na caminhada. Devíamos descobrir para onde eram levados os "inimigos da Pátria". Quando menos esperávamos, ouvimos tiros. Quisemos correr, assustadas feito passarinhos. Tremíamos de medo. Algumas se puseram a chorar: "Eles vão nos matar". Resolvemos, as mais afoitas, dar alguns passos em direção ao local onde deveriam ter sido dados os tiros. Então vimos alguns soldados de armas na mão, a olhar para dois homens. Com certeza, "inimigos da Pátria". Pareciam com aqueles que diariamente passavam diante da escola, tristes, cabisbaixos, ensangüentados. Apavoradas, voltamos correndo. Cansadas, sem fôlego, contamos nossa aventura para as outras meninas e a professora: Furiosa e nervosa, feito uma louca, pôs-se a gritar: “É tudo mentira; vocês não viram nada disso; aqui ninguém mata ninguém.”

Dias depois, nossa escola foi cercada por um muro muito alto. Mesmo assim, continuamos a ouvir estampidos.

(30 de maio de 1977)

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