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terça-feira, 8 de novembro de 2005

64 D.C. (antologia): Elefante enjeitado (Nilto Maciel)

Capítulos da História de muitos povos estão fielmente narrados em obras de ficção. No entanto, a História (narração metódica de fatos) tem sido, no mais das vezes, falseada ou tornada mera crônica de louvor aos poderosos. Narradores, porém, quase sempre têm exercido o papel de narradores da História de seus povos, fugindo aos métodos científicos e valendo-se da imaginação. Ludwig Sehwennhagen é tido como louco ou, quando tratado com condescendência, como ficcionista. Muitas vezes é difícil distinguir História de história, quer quando o escritor é fiel a um tempo, como no romance histórico, quer quando faz de sua obra uma revelação (apokalypsis), como na obra do mencionado professor austríaco.

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Em 64 D. C. cinco narradores brasileiros contam um pedaço da História do Brasil. Três deles limitam em determinados períodos as suas narrativas. Marques Rebelo se cinge precisamente ao dia D do movimento golpista de 1964, numa cidade do interior em vias de desenvolvimento, com suas pequenas fábricas e outras novidades tecnológicas. A confusão logo se faz, quando os outrora situacionistas passam à oposição, perseguidos pela nova ordem política. Inicia-se um processo de vinditas bárbaras. É quando acodem três especiais cavalheiros, muito ordeiros, contrários aos métodos de castigo (tortura) impostos aos derrotados, e, ciosos de coisas mais importantes do que as pessoas, sejam elas revolucionários, comunistas ou meros oposicionistas. Para o trio é preciso tirar proveito da nova situação. E se dá o primeiro golpe em outro preceito defendido pelos vencedores, instalando-se a corrupção.

O conto de Antonio Callado, sem o humor e a sátira dos demais, é um relato do período subsequente à vitória do movimento, quando a estudantada começou a sair às ruas. Um ex-professor cassado se vê, de repente, envelhecido física e politicamente diante da filha estudante que contesta o regime, arriscando-se a morrer baleada nas ruas.

No conto de Hermano Alves um computador vai aos poucos se tornando o verdadeiro cérebro do regime. Poderia ser interpretado como uma sátira da tecnocratização do sistema, como também da supra-sumidade da informação secreta e, ainda, do controle do país pelos grupos vitoriosos em 1964. Uma narrativa de suspense ou ficção científica, na aparência.

Os contos de Carlos Heitor Cony e Sérgio Porto conduzem uma intensa carga humorística e satírica, não limitados a períodos específicos da História. No conto de Cony é motivo de riso uma figura típica do regime – um oficial das forças armadas. Como nas narrativas de Marques Rebelo e Hermano Alves, o protagonista é pessoa instalada no poder. O seu drama é pessoal, embora o detalhe de sua tragédia de pequeno-burguês esteja umbilicalmente ligado ao contexto social. O síndico do prédio onde mora o militar é posto na crista da crise desencadeada por uma dupla de valdevinos. E termina desmoralizado, traído pela esposa e engasgado diante da tropa para quem discursa.

A história de Stanislaw Ponte Preta é uma alegoria ferina e carregada de humor. O protagonista, como no conto de Hermano Alves, não é um ser humano – é simplesmente um elefante de circo falido. O conto não passaria de uma fabulosa história, com a tradicional estrutura de começo, meio e fim, não tivesse o animal o nome de Brasil. Ou se não tivesse as características de seu homônimo – apenas um “gigante pela própria natureza”. Entretanto, a intriga não precisaria estar situada especificamente após 1964, porque, de qualquer maneira, o Brasil sempre foi um elefante enjeitado, um instrumento de riqueza e lucro que perdeu esta condição por obra e graça dos seus usufrutuários, desde que aqui chegaram os primeiros europeus.

64 D. C. é, no mais, uma colcha de retalhos (sem querer depreciar seus autores) da História recente do Brasil. E, para o leitor que gosta de prosa de ficção e não quer perder tempo lendo maçantes compêndios de História (também sem querer depreciar os nossos historiadores), a coletânea é o melhor em matéria de Brasil pós-64.
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Santa Sekiki (Nilto Maciel)


DO CENÁRIO

Sobre o verde das coisas e o sono das criaturas, caiacu* arrancava, faceira no meio das nuvens – canoa subindo rio, bucui correndo de encontro ao ataque. E no meio do verde compacto – semente na selva – sombria, Sekiki enegrecia o céu com seus olhos de tristeza. O resto, apenas um vozerio perdido na mata, que de quando em quando parecia afundar-se nos abismos de uma surdez infinita, para em seguida ressurgir assustador e tenebroso.

DA PRECE

Os olhos – negros, a luzir, faróis parados no tempo – paralisavam a lua na correnteza indomável do espaço e sussurravam saudades de quem só se ficou. E pediam ao astro grande da noite a volta do amante que se ausentara da serra. Canto mais parecido com choro, de tão triste.



DO AMANTE

Como seus irmãos, Murawó voara cingido de arcos e flechas e tinto de jenipapo. Partiram ao encontro dos caraí, que haviam erguido fortes na beira do mar e já invadiam os sertões e as serras, em busca de sangue, suor e mulher. Quiçá Murawó não voltasse e morto estivesse pelo trabuco inimigo.



DA ESTRATÉGIA

O plano, há muito traçado no oco da serra, dizia ser preciso arrasar Aquiraz, a natiá dos caraí. Seguissem os arcos das tribos mais diversas, das que não aceitassem a existência mortal do poderoso estrangeiro. E desta vez não ficasse um só deles vivo, nem deles uma só palha de pé a lembrar sua presença, como ensinara o Bisamu.



DO AMOR

Sekiki, olhos fitos em caiacu, parecia rezar. Que Murawó regressasse e deixasse, para repasto do jaguar das ribeiras, o cadáver de leite do vencido estrangeiro. Viesse mais forte e mais ágil, e mais belo e mais doce, e tão furioso de amar que não conseguisse dormir nem debaixo da lua nem debaixo do sol.



DO SUSTO

Feito jibóia gulosa engolindo um boi, uma nuvem enorme de mansa avançou para a lua e depressa engoliu-a, fazendo mais noite o mundo dormido. E, nem o engano desfez-se, uma fera pior pareceu se chegar. Eram uns passos macios lhe pisando os ouvidos, que a vontade melhor foi subir à palmeira mais próxima e refúgio buscar na protetora dos céus, já livre e mais bela. E os passos surgiam de entre a folhagem, mas já não feros, porém da negrura da noite.



DA APARIÇÃO

O negrume de umas vestes compridas empurrava à frente uma cruz de madeira. Há muito vinha falando de um deus criador do céu e da terra. Espadas não empunhava, nem fogo fazia sair facilmente das mãos. E, sorrindo, chegou-se e se pôs a falar da beleza da noite e da lua, e de todas as coisas do paraíso terreno, e mais, muito mais, da formosura das criaturas que habitam esta serra tão fresca...



DE OUTRAS PALAVRAS

Tu és a mais formosíssima das criaturas de Deus, e só o prazer de olhar-te já vale morrer trespassado pelo veneno de mil flechas. Este corpo sem cor que o pinte, e sem cheiro que o perfume, e sem forma que o modele, e sem razão que o exista. Teu corpo vale por todas as almas subidas aos céus...



DOS GESTOS AINDA SINGELOS

As mãos azuladas do solitário estrangeiro se tremiam de frio, não diria a floresta, e buscavam arfantes o colo despido, que só pensava em saudade do seu paiacu e agora sorria de ver o bom caraí procurar consolá-la.



DAS INDESCRITÍVEIS AÇÕES

E as mãos se foram enchendo de maiores desejos, já nem frias nem trêmulas, nem ardentes nem inertes, e se misturando à voz, como em ciladas noturnas. E o corpo se foi avantajando, como a nuvem a caminho da lua, qual cataclismo medonho.



DA FUGA

A assustada selvagem pensou de novo em subir à palmeira e desta à lua. E correu pela terra, como se subisse aos céus, deixando o cristão a tremer e gemer: não fuja, não fuja, malvada cunhã; me conceda um pedacinho de amor e me mande após destripar...



DA VISÃO

Pois da lua vê Sekiki vitorioso e armado chegar o amado, montado nas pernas e abanando as asas de um colorido cocar. E vem veloz e grande se faz, antes que outra nuvem lhe tolha o caminho.



DA DESCIDA

Na imensa alegria, Sekiki pára, abre os braços para infinito abraço e a boca risonha e linda para o beijo sem fim, esquecida das mãos e dos gritos do possesso varé. E Murawó se aproxima, já de arco empunhado, como se de tão longe visto tivesse a amada em perigo. E já corre o caminho estreito que a Canindé vai levar, os pés velozes como as patas do buqué.



DO DESFECHO

E estaca o guerreiro e se retesa no chão, a ira apontando a vingança terrível. Uma flecha dispara e assobia na serra e alisa os cabelos de Sekiki, que se volta ao grito de morte do padre caído.



Nota explicativa:

As palavras do glossário abaixo pertencem, foneticamente, à língua cariri, falada por tribos nordestinas extintas, mas achei por bem dar-lhes uma grafia aportuguesada. Na grafia original (entre parêntesis) constam do livro Os Cariris do Nordeste, de Baptista Siqueira, Editora Cátedra, Rio de Janeiro, 1978. Utilizei-as no sentido de dar ao conto uma dimensão regional e tribal, tendo em vista que comumente só se conhece o vocabulário tupi, amplamente absorvido pela língua oficial brasileira, por razões que não cabe aqui dizer.

Afora essa preocupação lingüística, procurei situar o conto no seguinte evento histórico: a cidade de Aquiraz, quando ainda vila, foi quase completamente destruída, a 18 de agosto de 1713, pelos índios chamados Jaguaribaras, Anacés, Paiacus, Jenipapos, Canindés e outros, confederados na luta contra os portugueses e seus descendentes brasileiros, tendo os poucos sobreviventes fugido para o Forte que deu origem à cidade de Fortaleza.



Glossário:

Caiacu (cayaku) = lua
Bucui (bucuy) = flecha de milho
Caraí (caraí) = branco (pessoa)
Natiá (natiá) = taba
Bisamu (bisamú) = feiticeiro
Varé (waré) = padre
Buqué (buké) = veado
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