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sábado, 12 de novembro de 2005

O filho da solitária (Nilto Maciel)


Quando ele voltou, isto é, quando o trouxeram de volta, não o reconheci. Talvez eu já estivesse ficando cega, caduca, velha demais, como diziam. Não, meu filho parecia mesmo outro. Certamente haviam passado muitos anos desde sua partida, pois ele também não me reconheceu. E nem ainda me reconhece.

Com as quatro patas assentadas no chão frio, vive mudo pelos cantos. Eu o aconselho a cantar, de vez que não quer falar. E a correr, já que não deseja andar. Porém ele apenas coaxa e pula, de quando em quando. Como se tivesse medo de estar livre. Resolvo então espantá-lo com a vassoura. Se assim não fizer, a casa pode virar um monturo, cheia de sapos, ratos, bichos de toda espécie. Paro e vejo: ele me olha com resignada profundidade. Depois dá um pulo, outro, mais outro e foge para o quintal. Se me descuido ou quando é noite, está ele novamente no mesmo cantinho, encolhido, os olhos esbugalhados.

No quintal, mete-se na água suja que escorre da lavanderia, na lama formada ao pé do mamoeiro ou no lixo onde se amontoam os restos de comida reservados ao bacorim desaparecido.

Dia desses, a vizinha da direita, ao ouvir aquele remexido na água, pôs a cabeça sobre o muro e perguntou se me haviam devolvido o porco. Enquanto imaginava a resposta, perguntei-lhe se do lado de lá o muro era baixo. Fui buscar um tamborete, porque julguei ter ouvido roncos de porco, explicou-me. A seguir, arregalou os olhos e perguntou: de quem é este sapão? Você está criando ele para engolir cobras? João olhou para a cabeça que falava e deu uns três pulinhos dentro da água. Tive vontade de dizer um desaforo qualquer. Terminei fazendo graça. Eu o queria para apagar brasas. A safada sorriu e disse: deixe de mentira! Ninguém usa mais fogão a lenha nem fogareiro a carvão. E desapareceu. Fiquei apalermada, a olhar para cima do muro. E ainda ouvi a voz risonha e sumida da vizinha gritar: jogue água salgada nas costas dele.

Dias depois, minha vizinha da esquerda veio me perguntar se, na verdade, eu havia resolvido criar batráquios. Ora, que diabo são batráquios? Quando tiver alguma jia grande me avise. Adoro jias.

Hoje me contaram tudo: meu filho esteve numa solitária, acocorado durante não sei quanto tempo.



(26/5/77)
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quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Silveira de Souza: Nós e o fogo (Nilto Maciel)

Os contos (ou relatos, como quer Silveira de Souza) de O Cavalo em Chamas se filiam a duas vertentes distintas da prosa de ficção. Aquela que se projetou em Murilo Rubião e José J. Veiga, e a que se esmerou em Machado de Assis.

A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas. Pode-se chamar de relato “As pulsações”, mas seria desproposital fazê-lo com “Exercícios Burgueses”.

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A maioria dos contos de O Cavalo em Chamas se aproxima da técnica borgeana, quer pelo fantástico das situações, quer pelo enredo. Todavia, dificilmente o leitor médio dissociará o desfecho da narrativa – sempre surreal – do fato narrado. Pelo contrário, por mais fantástico que seja aquele, é quase imperceptível o limite entre o real e o irreal no corpo da narrativa. Exemplos disso são “Questão de Tempo” e “O Braço Direito de Noêmia”. No próprio título do primeiro, esse princípio. Quer dizer, é só uma questão de tempo a transformação do real em irreal. Mera conseqüência.

A metamorfose ou a deformação, nos desfechos, embora irreal, se apresenta como resultado lógico de acontecimentos reais e cotidianos. O leitor pode até imaginá-la, com antecedência. Esses desfechos não poderiam deixar de ser fantásticos. Do contrário, dificilmente o leitor os entenderia como metáforas. O braço de Noêmia, por exemplo, cresce para proteger o personagem-narrador. Se não crescesse desmesuradamente, até transformar-se em jibóia, como o leitor iria associar a idéia de proteção, apadrinhamento, a monstruosidade, coisa suja? Além do mais, esse braço é o direito, ou o da direita.

Noutros contos, entretanto, o elemento fantástico não espera por desfechos. É o que se vê em “Psicocinésia”, em que a filha excita o pai, resultando daí uma fenomenal aceleração de movimentos dos objetos da casa: levitação de cadeiras e pratos, chuva de pedras. O mito do incesto, tão maravilhosamente recriado por Sófocles. Com as mesmas características desta narrativa são “As Pulsações” e “Bugres”, ambas com sabor de mistério.

Embora o irreal esteja presente em quase todo o livro, não é menos verdade que Silveira de Souza seja um machadiano, mesmo nos contos mais fantásticos. Existe, porém, uma profunda diferença de tratamento entre estes e os contos psicológicos. Nuns os personagens são meras representações de entidades abstratas, como o remorso, a vingança, a culpa. A presença deles é imprescindível unicamente por ser impossível escrever prosa de ficção sem personagem. Noutros, importa a relação entre eles.

Em “IRPVII” o tema é a burocracia, já satirizada por inúmeros contistas. Em outros quatro contos a análise psicológica dos personagens assume o primeiro plano. É o que se vê em “Os Pequenos Desencontros” e, sobretudo, em “Exercícios Burgueses”. Bem construídos, num as dificuldades de um casal de reencontrarem o caminho do hotel são a gota d’água para o rompimento da união deles, pretexto para o fim do relacionamento amoroso já minado por “mil pequenos desencontros e frustrações”. O narrador não dá ao leitor, ainda assim, um só indício dessa situação anterior, a não ser nas últimas linhas da narrativa. Noutro, mais machadiano ainda, o clássico triângulo amoroso, duas figuras díspares em diálogo angustiante.

Talvez a visão poética de Jorge de Lima seja isso mesmo que Silveira de Souza conseguiu situar nos seus relatos, porque não estamos imunes às chamas do que chamamos irreal – tão dentro de nós.
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