Os contos (ou relatos, como quer Silveira de Souza) de O Cavalo em Chamas se filiam a duas vertentes distintas da prosa de ficção. Aquela que se projetou em Murilo Rubião e José J. Veiga, e a que se esmerou em Machado de Assis.
A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas. Pode-se chamar de relato “As pulsações”, mas seria desproposital fazê-lo com “Exercícios Burgueses”.
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A maioria dos contos de O Cavalo em Chamas se aproxima da técnica borgeana, quer pelo fantástico das situações, quer pelo enredo. Todavia, dificilmente o leitor médio dissociará o desfecho da narrativa – sempre surreal – do fato narrado. Pelo contrário, por mais fantástico que seja aquele, é quase imperceptível o limite entre o real e o irreal no corpo da narrativa. Exemplos disso são “Questão de Tempo” e “O Braço Direito de Noêmia”. No próprio título do primeiro, esse princípio. Quer dizer, é só uma questão de tempo a transformação do real em irreal. Mera conseqüência.
A metamorfose ou a deformação, nos desfechos, embora irreal, se apresenta como resultado lógico de acontecimentos reais e cotidianos. O leitor pode até imaginá-la, com antecedência. Esses desfechos não poderiam deixar de ser fantásticos. Do contrário, dificilmente o leitor os entenderia como metáforas. O braço de Noêmia, por exemplo, cresce para proteger o personagem-narrador. Se não crescesse desmesuradamente, até transformar-se em jibóia, como o leitor iria associar a idéia de proteção, apadrinhamento, a monstruosidade, coisa suja? Além do mais, esse braço é o direito, ou o da direita.
Noutros contos, entretanto, o elemento fantástico não espera por desfechos. É o que se vê em “Psicocinésia”, em que a filha excita o pai, resultando daí uma fenomenal aceleração de movimentos dos objetos da casa: levitação de cadeiras e pratos, chuva de pedras. O mito do incesto, tão maravilhosamente recriado por Sófocles. Com as mesmas características desta narrativa são “As Pulsações” e “Bugres”, ambas com sabor de mistério.
Embora o irreal esteja presente em quase todo o livro, não é menos verdade que Silveira de Souza seja um machadiano, mesmo nos contos mais fantásticos. Existe, porém, uma profunda diferença de tratamento entre estes e os contos psicológicos. Nuns os personagens são meras representações de entidades abstratas, como o remorso, a vingança, a culpa. A presença deles é imprescindível unicamente por ser impossível escrever prosa de ficção sem personagem. Noutros, importa a relação entre eles.
Em “IRPVII” o tema é a burocracia, já satirizada por inúmeros contistas. Em outros quatro contos a análise psicológica dos personagens assume o primeiro plano. É o que se vê em “Os Pequenos Desencontros” e, sobretudo, em “Exercícios Burgueses”. Bem construídos, num as dificuldades de um casal de reencontrarem o caminho do hotel são a gota d’água para o rompimento da união deles, pretexto para o fim do relacionamento amoroso já minado por “mil pequenos desencontros e frustrações”. O narrador não dá ao leitor, ainda assim, um só indício dessa situação anterior, a não ser nas últimas linhas da narrativa. Noutro, mais machadiano ainda, o clássico triângulo amoroso, duas figuras díspares em diálogo angustiante.
Talvez a visão poética de Jorge de Lima seja isso mesmo que Silveira de Souza conseguiu situar nos seus relatos, porque não estamos imunes às chamas do que chamamos irreal – tão dentro de nós.
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